TROIANAS, de Eurípedes
MUSEU ARQUEOLÓGICO DO CARMO
Tradução: LUÍSA COSTA GOMES
Encenação: ANTÓNIO PIRES
Interpretação: MARIA RUEFF, ALEXANDRA SARGENTO, SANDRA SANTOS, VERA MOURA, JOÃO BARBOSA, HUGO MESTRE AMARO, FRANCISCO VISTAS e os alunos finalistas da ACT – Escola de Actores Álvaro Aragonez, André Vazão, Beatriz Garrucho, Carlota R. Marques, Carolina Azevedo, Carolina Lopes, Eva Fornelos, Gonçalo Pinto, Inês Gomes, Inês Mata, Inês Meira, Pedro Nunes, Rafael Costa Diaz e Rui Teixeira.
Música e Direcção Coral: LUÍS BRAGANÇA GIL
Movimento: PAULA CARETO
Cenografia: JOÃO MENDES RIBEIRO
Figurinos: LUÍS MESQUITA
MUSEU ARQUEOLÓGICO DO CARMO
Tradução: LUÍSA COSTA GOMES
Encenação: ANTÓNIO PIRES
Interpretação: MARIA RUEFF, ALEXANDRA SARGENTO, SANDRA SANTOS, VERA MOURA, JOÃO BARBOSA, HUGO MESTRE AMARO, FRANCISCO VISTAS e os alunos finalistas da ACT – Escola de Actores Álvaro Aragonez, André Vazão, Beatriz Garrucho, Carlota R. Marques, Carolina Azevedo, Carolina Lopes, Eva Fornelos, Gonçalo Pinto, Inês Gomes, Inês Mata, Inês Meira, Pedro Nunes, Rafael Costa Diaz e Rui Teixeira.
Música e Direcção Coral: LUÍS BRAGANÇA GIL
Movimento: PAULA CARETO
Cenografia: JOÃO MENDES RIBEIRO
Figurinos: LUÍS MESQUITA
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Fotos por Luísa Ferreira
CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE
Troianas é a segunda peça de uma trilogia com que Eurípides foi a concurso nas festas em honra de Dionisus, no ano de 415 A.C. Das peças anteriores, Alexandros e Ganimedes, restam apenas poucos fragmentos. Com esta tragédia, Eurípides ficou em segundo lugar no concurso. Talvez se consiga perceber porquê. Ninguém gosta de se ver retratado como um selvagem. De facto, o ponto de vista dominante é o da Rainha de Tróia, agora escrava atribuída ao vil e traiçoeiro Ulisses. Nenhum dos outros pontos de vista tem a sua força, a sua grandeza, nem a sua dignidade. E o seu é um lamento ora indignado, ora patético, pela destruição caótica, que esmaga, humilha e desrespeita até o que é sagrado para vencidos e vencedores. Aqui, a hybris, a arrogância da omnipotência, é do vencedor. A vitória leva-o à presunção de que pode fazer tudo. Troianas é um longo prólogo aos seus futuros sofrimentos, vaticinados por Cassandra, a sacerdotisa de Apolo, filha de Hécuba, e arrematada para concubina de Agamémnon. A sequência de horrores é tal que envergonha até o mensageiro. Taltíbio é essa figura de soldado meio Chveik, que faz o possível por passar a mensagem de que não tem qualquer responsabilidade no morticínio que é obrigado a anunciar.
Troianas é uma tragédia que pede compaixão pelos inimigos. Que pede humanidade na guerra e racionalidade na destruição. Que pede justiça quando estão em causa o amor próprio e o interesse. Que pede respeito por quem se viu privado de tudo e silêncio para que se oiça o seu lamento. Todos são valores excelsos que levantam a fasquia do humano – e os exércitos reunidos dos Gregos, vencida Tróia por um estratagema mesquinho, não ficam bem na imagem. Pode debater-se se Eurípides estaria a comentar a recente expedição à ilha de Melos, saqueada e destruída no inverno de 416-415 A.C. ou episódios das Guerras do Peloponeso que opôs Atenas a Esparta, e cujos primeiros conflitos menores remontavam a 460 A.C. Mas o que não falta no século são conflitos para assunto de tragédia. O século V A.C. começara com a guerra contra os Persas e as duas batalhas decisivas, Maratona e Salamina, foram vencidas pelos Atenienses. Depois da formação da Liga de Delos consolida-se a hegemonia ateniense no Egeu e a constituição do seu império. É natural que se discutisse em Atenas o sentido desta civilização e desta devastação, do que significava ser “ateniense” e não “bárbaro”. E Eurípides põe na boca de Cassandra, essa verdade tão simples: os Gregos vieram “não porque lhes faltasse terra onde viver, ou vissem destruídas as altas torres das suas cidades”. Vieram por ganância, que fingiram ser amor-próprio ferido, e não deixaram pedra sobre pedra. Troianas põe em cena a tragédia das mulheres: sacrificadas aos deuses, raptadas, tratadas como “mero saque”, como diz Andrómaca, viúva de Heitor, rei de Tróia. É um verdadeiro manual de sobrevivência para as classes oprimidas. As personagens femininas são arquétipos ainda hoje reconhecíveis: Hécuba, a Velha Rainha-Matriarca; Andrómaca, a Mulher Séria cuja seriedade é motivo da concupiscência masculina; Cassandra, a Louca-Delirante, possuída pelo deus, cuja virgindade sagrada é motivo da concupiscência masculina; Helena, a Bela Com Senão, Deusa e Hetaira, cuja beleza vivida é motivo…etc. E o coro das escravas, a quem não resta mais do que imaginar o futuro amo, e esperar que ao menos viva num país fértil e seja bom e feliz.
Esta tradução procura estar perto da letra (por vezes, admito, excessivamente perto) do texto de Eurípides, que é, valha-nos Deus, um autor muito pouco dado aos enfeites. A frase é clara e escorreita e diz o que é preciso. Nem se pediam enfeites em temas tão dolorosos. Valem as ideias e o que elas fazem. Comecei por traduzir do inglês a tradução/dramaturgia de George Theodoridis, depois com Tim Eckart fiz a revisão a partir do texto grego, o que alterou substancialmente o tom e a atmosfera da tradução portuguesa.
Luísa Costa Gomes
A TRAGÉDIA DA GUERRA
Não seria exagero dizer que As Mulheres Troianas de Eurípedes é o cânone do teatro anti-guerra. Esta tragédia fala da tragédia da guerra; da trivialidade ubíqua que a despoleta e do nihilismo inevitável que a segue. O autor respeita com profunda devoção a narrativa de Homero, o bardo que cantou a mensagem mais anti-bélica de sempre. (…) Países inteiros invadidos e devastados, famílias inteiras, almas quebradas e exiladas no esquecimento por motivos que desafiam toda a lógica humana e toda a compreensão. Razões triviais. Desejos carnais, orgulho, arrogância. Ganância. O agon d´ As Troianas, o seu conflito nuclear, é entre duas rainhas: Helena de Esparta e Hécuba de Tróia. A primeira é famosa pela sua beleza sem rival, a outra pelas suas inigualáveis qualidades maternas. A primeira não perdeu nada. Quando a guerra termina, ao fim de dez anos, o marido leva-a de novo para casa, onde continua a reinar como se nada se tivesse passado. A segunda, Hécuba, luta para sobreviver, para ver algum sentido nas perdas que sofreu, no terrível abismo de desespero em que se vê lançada. (…) Ésquilo ou Sófocles teriam culpado os deuses: um ou outro mortal, no passado remoto, terá enfurecido algum deus e agora este mortal terá de pagar pelos pecados do outro mortal, um antepassado, normalmente um homem. Eurípedes nunca faz isto: é, indubitavelmente, um humanista. Os humanos fazem mal a outros humanos e devem sofrer as consequências. Mas as duas rainhas não têm razão quando se acusam uma à outra. Eurípides coloca o culpado no centro do palco. É Menelau, o grande Rei de Esparta, que ele apresenta como o paradigma mais claro da culpa, o criador principal desta imensa tragédia. É ele simultaneamente o juiz e o criminoso. E tal fenómeno ocorre com implacável regularidade também no nosso tempo: “A justiça está nos interesses dos poderosos” como afirma Trasímaco na República de Platão.
George Theodoridis
No ano em que a companhia do Teatro do Bairro escolheu a Música como disciplina
para estabelecer o diálogo entre o Teatro e as diversas artes, convidámos o compositor
Luís Bragança Gil para tratar musicalmente os coros da tragédia.
PROCESSO CRIATIVO PARA ESTA INTERPRETAÇÂO DAS TROIANAS
A minha abordagem na criação musical não se restringiu a um retomar dos processos criativos dos gregos. Nem tão pouco a outras técnicas de composição polifónicas como o já citado contraponto do Renascimento ou a fuga do Barroco. Porque considero esta peça teatral uma obra que atravessa os tempos, capaz de espelhar os conflitos terríveis da nossa contemporaneidade, decidi dar-me a liberdade criativa de atravessar o texto numa diagonal intemporal, com gestos musicais sem preocupações de classificação. Trabalhando essencialmente o Coro, personagem que vai pontuando todo o texto, quis que ele expressasse o grito surdo que habita em todos nós, a revolta e a ternura que nós não conseguimos soltar para fora, o absurdo e a beleza que existe em cada ser humano que vive numa comunidade, seja ela qual for. Ouso dizer que espero transmitir a minha vontade de expressar musicalmente o quanto esta peça teatral mexe comigo, me perturba e me encanta, o quanto faz mover a minha imaginação e a minha curiosidade pelo mundo. Pela vida.
Luis Bragança Gil
Julho 2019
Troianas é a segunda peça de uma trilogia com que Eurípides foi a concurso nas festas em honra de Dionisus, no ano de 415 A.C. Das peças anteriores, Alexandros e Ganimedes, restam apenas poucos fragmentos. Com esta tragédia, Eurípides ficou em segundo lugar no concurso. Talvez se consiga perceber porquê. Ninguém gosta de se ver retratado como um selvagem. De facto, o ponto de vista dominante é o da Rainha de Tróia, agora escrava atribuída ao vil e traiçoeiro Ulisses. Nenhum dos outros pontos de vista tem a sua força, a sua grandeza, nem a sua dignidade. E o seu é um lamento ora indignado, ora patético, pela destruição caótica, que esmaga, humilha e desrespeita até o que é sagrado para vencidos e vencedores. Aqui, a hybris, a arrogância da omnipotência, é do vencedor. A vitória leva-o à presunção de que pode fazer tudo. Troianas é um longo prólogo aos seus futuros sofrimentos, vaticinados por Cassandra, a sacerdotisa de Apolo, filha de Hécuba, e arrematada para concubina de Agamémnon. A sequência de horrores é tal que envergonha até o mensageiro. Taltíbio é essa figura de soldado meio Chveik, que faz o possível por passar a mensagem de que não tem qualquer responsabilidade no morticínio que é obrigado a anunciar.
Troianas é uma tragédia que pede compaixão pelos inimigos. Que pede humanidade na guerra e racionalidade na destruição. Que pede justiça quando estão em causa o amor próprio e o interesse. Que pede respeito por quem se viu privado de tudo e silêncio para que se oiça o seu lamento. Todos são valores excelsos que levantam a fasquia do humano – e os exércitos reunidos dos Gregos, vencida Tróia por um estratagema mesquinho, não ficam bem na imagem. Pode debater-se se Eurípides estaria a comentar a recente expedição à ilha de Melos, saqueada e destruída no inverno de 416-415 A.C. ou episódios das Guerras do Peloponeso que opôs Atenas a Esparta, e cujos primeiros conflitos menores remontavam a 460 A.C. Mas o que não falta no século são conflitos para assunto de tragédia. O século V A.C. começara com a guerra contra os Persas e as duas batalhas decisivas, Maratona e Salamina, foram vencidas pelos Atenienses. Depois da formação da Liga de Delos consolida-se a hegemonia ateniense no Egeu e a constituição do seu império. É natural que se discutisse em Atenas o sentido desta civilização e desta devastação, do que significava ser “ateniense” e não “bárbaro”. E Eurípides põe na boca de Cassandra, essa verdade tão simples: os Gregos vieram “não porque lhes faltasse terra onde viver, ou vissem destruídas as altas torres das suas cidades”. Vieram por ganância, que fingiram ser amor-próprio ferido, e não deixaram pedra sobre pedra. Troianas põe em cena a tragédia das mulheres: sacrificadas aos deuses, raptadas, tratadas como “mero saque”, como diz Andrómaca, viúva de Heitor, rei de Tróia. É um verdadeiro manual de sobrevivência para as classes oprimidas. As personagens femininas são arquétipos ainda hoje reconhecíveis: Hécuba, a Velha Rainha-Matriarca; Andrómaca, a Mulher Séria cuja seriedade é motivo da concupiscência masculina; Cassandra, a Louca-Delirante, possuída pelo deus, cuja virgindade sagrada é motivo da concupiscência masculina; Helena, a Bela Com Senão, Deusa e Hetaira, cuja beleza vivida é motivo…etc. E o coro das escravas, a quem não resta mais do que imaginar o futuro amo, e esperar que ao menos viva num país fértil e seja bom e feliz.
Esta tradução procura estar perto da letra (por vezes, admito, excessivamente perto) do texto de Eurípides, que é, valha-nos Deus, um autor muito pouco dado aos enfeites. A frase é clara e escorreita e diz o que é preciso. Nem se pediam enfeites em temas tão dolorosos. Valem as ideias e o que elas fazem. Comecei por traduzir do inglês a tradução/dramaturgia de George Theodoridis, depois com Tim Eckart fiz a revisão a partir do texto grego, o que alterou substancialmente o tom e a atmosfera da tradução portuguesa.
Luísa Costa Gomes
A TRAGÉDIA DA GUERRA
Não seria exagero dizer que As Mulheres Troianas de Eurípedes é o cânone do teatro anti-guerra. Esta tragédia fala da tragédia da guerra; da trivialidade ubíqua que a despoleta e do nihilismo inevitável que a segue. O autor respeita com profunda devoção a narrativa de Homero, o bardo que cantou a mensagem mais anti-bélica de sempre. (…) Países inteiros invadidos e devastados, famílias inteiras, almas quebradas e exiladas no esquecimento por motivos que desafiam toda a lógica humana e toda a compreensão. Razões triviais. Desejos carnais, orgulho, arrogância. Ganância. O agon d´ As Troianas, o seu conflito nuclear, é entre duas rainhas: Helena de Esparta e Hécuba de Tróia. A primeira é famosa pela sua beleza sem rival, a outra pelas suas inigualáveis qualidades maternas. A primeira não perdeu nada. Quando a guerra termina, ao fim de dez anos, o marido leva-a de novo para casa, onde continua a reinar como se nada se tivesse passado. A segunda, Hécuba, luta para sobreviver, para ver algum sentido nas perdas que sofreu, no terrível abismo de desespero em que se vê lançada. (…) Ésquilo ou Sófocles teriam culpado os deuses: um ou outro mortal, no passado remoto, terá enfurecido algum deus e agora este mortal terá de pagar pelos pecados do outro mortal, um antepassado, normalmente um homem. Eurípedes nunca faz isto: é, indubitavelmente, um humanista. Os humanos fazem mal a outros humanos e devem sofrer as consequências. Mas as duas rainhas não têm razão quando se acusam uma à outra. Eurípides coloca o culpado no centro do palco. É Menelau, o grande Rei de Esparta, que ele apresenta como o paradigma mais claro da culpa, o criador principal desta imensa tragédia. É ele simultaneamente o juiz e o criminoso. E tal fenómeno ocorre com implacável regularidade também no nosso tempo: “A justiça está nos interesses dos poderosos” como afirma Trasímaco na República de Platão.
George Theodoridis
No ano em que a companhia do Teatro do Bairro escolheu a Música como disciplina
para estabelecer o diálogo entre o Teatro e as diversas artes, convidámos o compositor
Luís Bragança Gil para tratar musicalmente os coros da tragédia.
PROCESSO CRIATIVO PARA ESTA INTERPRETAÇÂO DAS TROIANAS
A minha abordagem na criação musical não se restringiu a um retomar dos processos criativos dos gregos. Nem tão pouco a outras técnicas de composição polifónicas como o já citado contraponto do Renascimento ou a fuga do Barroco. Porque considero esta peça teatral uma obra que atravessa os tempos, capaz de espelhar os conflitos terríveis da nossa contemporaneidade, decidi dar-me a liberdade criativa de atravessar o texto numa diagonal intemporal, com gestos musicais sem preocupações de classificação. Trabalhando essencialmente o Coro, personagem que vai pontuando todo o texto, quis que ele expressasse o grito surdo que habita em todos nós, a revolta e a ternura que nós não conseguimos soltar para fora, o absurdo e a beleza que existe em cada ser humano que vive numa comunidade, seja ela qual for. Ouso dizer que espero transmitir a minha vontade de expressar musicalmente o quanto esta peça teatral mexe comigo, me perturba e me encanta, o quanto faz mover a minha imaginação e a minha curiosidade pelo mundo. Pela vida.
Luis Bragança Gil
Julho 2019