A Cama de Pregos
Espanta-o que não estejam diferentes. Por baixo do velho que fita, amuado, a colcha da cama, continua a ver perfeitamente seu irmão Páris. Vê-o com vinte e poucos anos, por alturas da última grande cena de pugilato fraternal. Não se lembra do seu próprio lábio rachado, nem dos socos sem jeito que trocaram, nem do motivo deles. Para sempre o irmão lhe ficou na memória como esse que, desistindo de lutar, o ameaçara de longe, fugindo e chorando, na desvantagem risível que sempre tivera de se esganiçar quando se exaltava. Páris gaguejava, de braço erguido, à procura da palavra que mais pudesse magoar à distância. Desejo ele mesmo contraditório, pois não era o próprio Páris a guinchar que nada poderia alguma vez magoar Adónis?
São, portanto, os mesmos dois irmãos, agora velhos. Aumentadas apenas algumas diferenças na aparência: Páris mais magro, mais narigudo, mais corcovado e Adónis mais sólido com os anos, entroncado, mais vermelho, o mesmo gesto voraz de pôr a mão sobre o peito, sempre pronto. E havia a diferença fatal: Páris estivera morto, fora recuperado à força, e da morte não ganhara senão abatimento e uma grossa falta de paciência para a vida comum. Isto já ele possuía em quantidade antes de morrer, pelo que, no facto, pouco mudara depois da crise , a não ser para os outros.
Adónis fica na soleira da porta, o pé direito ligeiramente adiantado. Mas não hesita muito tempo, reconheceu logo o vinco de Páris entre as sobrancelhas, ao fim de vinte anos - e avança para o irmão como quem toma remédio, duma assentada. Pára em frente da cadeira de rodas, reprime a vontade de ajeitar o cabelo ralo disposto da direita para a esquerda em arc-en-ciel de orelha a orelha, senta-se sobre a colcha de rosas diminutas, escolhe as palavras:
- Então? - diz . - Como é que isso vai?
A cunhada entra nessa altura com um copo de leite.
-Ele nunca se esqueceu, nunca perdoou - diz ela. - Aquilo que aí vês é obra tua.
Referia-se ainda à querela sobre a mobília da sala de jantar. O pai defunto, a mãe defunta, os tios e as tias arrumados, não restara senão a mobília da casa : da sala, dos quartos, o bengaleiro da entrada. Fez-se o rol, não era possível dividir com justiça. Havia uma taça de cristal, havia um espelho, havia o quadro com a pequena gravura, havia os retratos, como guardar uns e perder outros? Adónis jogou a moeda ao ar. Foram para ele, diante de um Páris emudecido de ressentimento pela leviandade do irmão, a mesa e as cadeiras de pinho enegrecido pelo uso e pelo tempo . Adónis vendeu tudo a peso , incluindo a mobília sentimental, logo de seguida. Dizia que queria ir numa viagem ao Oriente. Tinha quarenta e cinco anos, vivia ainda como um jovem, disto e daquilo, sem obrigações.
- A colite do Páris,- disse a cunhada - é daí. Da colite, veio o coração. Do coração, o ataque. E aí o tens, numa cadeirinha de rodas. Um dia fui dar com ele já roxo, estendido no chão da cozinha, todo a arfar, com um lanho ali na testa...
Contemplaram ambos a testa muda de Páris, que baixara mais a cabeça. Em vez do lanho, vislumbraram apenas as sobrancelhas dele, resguardo das atenções.
- Mas é por isso mesmo que eu cá vim - interrompeu Adónis.- Para pedir desculpa, primeiro. E depois dizer ao Páris que o quero compensar no que for possível.
-Compensação, agora...- lamentou a cunhada.
-Que dizem os médicos?
Depressa, a cunhada desrespeitou cada um dos físicos na respectiva especialidade. Vinha um e era duma maneira, outro diferente, nem a língua ela conseguia entender, mas ao fim o que se percebia não dava grande coisa. Era mais pela cara deles que ela tirava o sentido da doença. A cunhada gostava mais dos graves, que a tratavam sempre por senhora dona, quaisquer que fossem os resultados das análises. Havia uns que enganavam muito, os sacaninhas sorriam e abanavam a cabeça tristemente ao mesmo tempo. Desses ela dizia:
-Um sonso. Nunca mais lá voltei.
Páris encolheu os ombros. Havia nele ainda um grande sentido da oportunidade. Não falara, não levantara a cabeça. Pendiam-lhe as mãos dos braços da cadeira. Adónis fixava-se ou no rosto da cunhada ou na porção de colcha que o irmão contemplava. De vez em quando, olhava em volta, com um meio sorriso.
- Sabem que estive no Oriente, na China, na Índia, no Paquistão. Trouxe de lá uma peça muito preciosa, que faz autênticos milagres em casos como este.
Era a cama de pregos do célebre Faquir Mudami, proficiente em todas as artes do sofrimento e auto-mortificação, que ainda continuava a fazer, embora praticamente canonizado, experiências dolorosas em si mesmo e nos seus discípulos com espírito de sistema.
- Tu vens cá ao fim de vinte anos para nos fazeres uma desfeita destas? Depois de nos roubares a mobília da sala e de seres a desgraça do teu irmão, tu vens cá oferecer uma cama de pregos?
-Não é uma cama de pregos, é a cama de pregos do Faquir Mudami, que tem propriedades curativas inigualáveis. Já foi experimentada por vários pacientes meus e deu sempre resultados maravilhosos.
-Pacientes teus?- articulou finalmente Páris. - Em que raio de vigarice é que te meteste agora?
E foi especialmente claro. Muitas vezes tinha dificuldade em controlar a língua, que se lhe entaramelava nos molares, ou dificuldades anteriores à língua, quando a cabeça não se lembrava das palavras, mas desta vez as frases que disse podiam ser logo passadas a papel. E depois de as dizer, bebeu finalmente de um trago o copo de leite que descansava na mesinha de cabeceira.
- Acredita em mim. Confia. Este Faquir Mudami, com quem eu estudei uns cinco anos, não é dos que engolem espadas inteiras, mas é um santo, um grande homem. Sempre jejuou muito para se purificar, ficava tudo admirado de o ver em pé ou a rezar em posições muito desconfortáveis. O conforto é o diabo para a alma. A sua cama não impede de dormir, apenas dá um sono diferente, mais espiritual. Era um iogui, também, sabes o que é? É...
- Come este copo - interrompeu o Páris.- Se és tão faquir, podes comer vidro.
-Não acreditas em mim.
-Faz o que te digo e acredito.
-Não acreditas, ou não me pedias provas.
Páris pegou no copo e estendeu-o ao irmão. A doença não lhe alterara a visão de pormenor. Reparou que saíam pêlos das orelhas de Adónis e isso encheu-o de um grande contentamento.
- É sem compromisso - disse Adónis- se não ficarem satisfeitos, devolvem-me a cama e assunto encerrado.
-Porque é que não te vais mas é embora? Não achas que já gozaste que chegasse?
Adónis levantou-se de repente, com alívio. Assim terminava uma visita que não augurava muito desde o princípio. Mas a partida estava ganha: procurara ajudar o irmão e a cunhada, eles tinham recusado. Há dois anos que voltara a Lisboa e insistira, pelo menos duas vezes. Da primeira vez, fora mal recebido ao telefone. A cunhada fingira não o reconhecer. Adónis? Não conhecemos cá nenhum Adónis! O senhor , se não se importa, desliga e não incomoda. Deixara passar uns meses. Num ócio a que o forçava a falta de trabalho, tentara de novo a reconciliação. Acabava assim. Entrara, oferecera, punham-no fora. Estava despachado.
Páris, na cadeira, ainda pensou seguir o paradigma do que se ri diabolicamente na vitória, mas faltou-lhe o nervo. Ficou a sorrir quase, de copo na mão, débil, sem garra. Teve pena. Teria sido um bom final, se a realidade fosse o que sempre ambicionámos. Mas estava cansado, tinha sono e vontade de urinar e tudo isso lhe pesava demais, para ainda por cima ter de se rir diabolicamente do irmão - o palhaço, aldrabão, agora armado em faquir.
Longo tempo debateram, Páris e a mulher, o fenómeno Adónis. Tudo nele lhes parecia repelente. Páris escavou fundo no passado para encontrar as diversas formas de mentira de que o irmão era o culpado e ele a vítima. Tinham sido mentiras evidentes, como esta de estudar cinco anos com o faquir Mudami, tinham sido mentiras que só eram descobertas por acaso, cruzando alguém na rua que casualmente desconfirmava o que Adónis tentara fazer acreditar, tinham sido omissão, dissimulação, invenção, falsificação de factos e dizeres - Páris viera a saber que a mobília parental não era de pinho, madeira vil, como Adónis afirmara para a desqualificar, mas de cerejeira, bem mais valiosa. Não chegara com certeza para pagar a viagem à Índia, mas a intenção era malévola e era a intenção que matava.
Páris defendeu que Adónis mentia por maldade, com intuito de criar uma expectativa, viciado no prazer de assistir à desolação do outro, mas a mulher, que não o conhecia tão bem, e no intuito talvez apenas de contrariar o enfermo, julgava saber que Adónis muitas vezes nem sequer tinha a percepção de estar a mentir. Era um traço de individualidade, que o definia, como ser peludo e pernicurto. Não deixava, por isso, de ser grave e lesivo para todos. Para ele próprio, que vivia num mundo de fantasias, para os outros, que se viam forçados a não o levarem a sério. Páris, sobretudo, não via grande diferença entre mentir por maldade ou sem querer, dado que os resultados eram os mesmos. Era a confiança que estava em causa. A confiança abalada na raiz.
Após este colóquio, Páris caíu em letargia. Deixou de comer, não disse uma palavra durante dias. A mulher preocupou-se, invectivou-o, fez-lhe ameaças. Se não comia, morria. E ele abria um pouco a boca, esforçava-se por engolir, fechava os olhos encovados, e bolsava. Não era capaz. Veio o médico com o soro, vigiaram-no, julgaram que estava de novo à morte. O coração, no entanto, mantinha-se firme, ao leme. Batia regular. Indiferente ao sofrimento de Páris.
Veio o Natal , passou o feriado de Ano Novo e Páris melhorou. Sentava-se na cama e charlava com a mulher e uma vizinha que gostava de doentes e de doenças. Pelos finais de uma tarde tão inactiva como outras, saindo a vizinha pela porta com muita recomendação, Páris perguntou à mulher:
-Tu tens aí o número do meu irmão? Estava capaz de falar com ele por causa daquilo da cama.
A mulher fixou-se nele como se o visse pela primeira vez.
-Enlouqueceste? Qual cama?
Referia-se ele, bem entendido, à cama do faquir Mudami, que lhe parecera, mesmo assim, inocente e bom homem. Conseguira , nesse tempo que os outros julgavam morituro e afinal era reflexivo, desenganchar a personalidade do faquir da do seu autor, Adónis - e crer numa, detestando a outra. Não se pode dizer, por outro lado, que Páris e a mulher tivessem esgotado todas as possibilidades terapêuticas. É conhecido o calvário dos que, descoroçoados com a incompetência da medicina oficial, se entregam a todo o tipo de piedosas aldrabices que funcionam mais ao nível da esperança psicológica do que nos rins. Páris não era desses. Dera-se por paralisado, embora não o estivesse , pois era perfeitamente capaz de se levantar da cama e sentar-se na cadeira, levantar-se da cadeira e deitar-se na cama; e dera-se por incurável, embora ninguém lho tivesse prognosticado. A morte seria um imenso alívio. Primeiro e sobretudo para ele, cuja curiosidade pelo sono absoluto era a um tempo benção e maldição.
Páris sentia uma grande dificuldade em explicar por que raio se lhe insinuara no espírito a ideia de procurar o irmão e reclamar a cama de pregos do faquir Mudami. O longo jejum a que se forçara, as noites sem sono, a remoer, a rememorar as injúrias de Adónis, levaram-no insensivelmente a considerar-se bastante próximo desse santo homem que dormia sobre pregos para não se esquecer do corpo. Era isso que Páris sentia sobretudo: uma impossibilidade de se esquecer do corpo, quando lembrá-lo não lhe dava prazer e não tinha qualquer utilidade. Um peso morto. A costela ascética de Páris nascera, provavelmente, com ele. Quem sabe se não faria já exercícios de auto-controlo , encolhido em posições muito desconfortáveis a um canto do ventre de sua mãe, no mesmo ventre em que Adónis se espojaria mais tarde, de papo para o ar, ocupando o espaço todo?
Por alturas do Natal, insensível e semi-morto em sua cama de casal, Páris vira, na doce madrugada, a planar sobre a cómoda , a cama de pregos do faquir Mudami. Vira-a nitidamente, rodando a um lado e a outro, apresentando-se sob todos os ângulos ao olhar semi-cerrado de Páris, qual um belo produto numa montra comercial. Era feita de madeira rude, escura, e tinha a forma de uma escova-de-fatos gigantesca, mas uma escova de planta quase quadrada, mais a puxar à palmatória. Em vez do pêlo, estavam os pregos , colocados em malha muito cerrada, de pontas achatadas à força de martelo, fazendo um lençol metálico côncavo, a superfície que recebia as costas pele-e-osso do faquir .
Em meio de Janeiro, tinha Páris reunido coragem suficiente para pedir à mulher o número de telefone do irmão. Ela olhara-o de tal maneira que Páris achara por bem calar-se e começar as buscas furtivas pela casa, quando a mulher saía para as compras. Não estava o número na agenda junto ao telefone. Não estava na mesinha-de-cabeceira, não estava na velha escrivaninha da sala, mais passada para lá do que para cá, com um suporte do tampo desaparecido e outro perro, o que fazia da designação de escrivaninha um eufemismo gentil, como chamar decorador de interiores ao trolha que vem assentar o azulejo. Páris, febrilmente rodando pela casa na cadeirinha, espiolhara todos os prováveis esconderijos. Uma tarde, brilhantemente, lembrou-se da lista telefónica. Havia um Adónis, mas não era Moreira. Decidiu telefonar, sentindo talvez como possível que todos os Adónis de Lisboa fossem amigos entre si. O número fora alterado, as informações telefónicas desconheciam o paradeiro do irmão e Páris viu-se obrigado a perguntar de novo à mulher.
Ela não aceitou bem a insistência. Que coisa queria ele? Que ideia era esta do faquir? Que nova loucura teria de suportar agora? Subindo de tom, a mulher surpreendeu-se até a si mesma numa disjuntiva final : ou Páris desistia do irmão e do faquir ou desistia dela. Iria viver para casa da vizinha. Continuaria a vir trazer-lhe as refeições, mas recusava-se a cohabitar com um tresloucado que perseguia uma cama de pregos, cuja existência era tudo menos provável.
Perante o silêncio de Páris, que fitava muito determinadamente a colcha das rosas, de costas voltadas para a janela como era seu hábito, a mulher fez a trouxa e pôs-se à porta. Antes de sair atirou-lhe um pequeno papel amarrotado, que aterrou aos pés da cama. Páris não contemplou longamente o papel, embora compreendesse que a transacção lhe saía talvez excessivamente cara. Digitou o número e ouviu a voz de Adónis na gravação. Apresentava-se aquele como médico naturista e iridólogo e pedia que deixassem o contacto. Foi o que Páris fez, seco e ressentido.
Adónis apresentou-se no dia seguinte. Os olhos de Páris viram-no triunfante. Quando o irmão se sentou no puído cadeirão de braços, já Paris se arrependia de ser quem era.
- E a cama?- perguntou.
Estava guardada num armazém em Mem Martins, onde o agitado naturista depusera as preciosidades das viagens. Tinha lá o rosário de mil contas do sufi Abdullah e a espada que matara Rami, o derviche, caindo ele , por decreto divino, sobre a lâmina, em êxtase dançante. Contou que trouxera ervas medicinais em grandes sacas, mas que agora lhe apodreciam e perdiam as virtudes, por causa da humidade ali de Sintra.
- Tu não terás por acaso uma arrecadação? É que se está a estragar tudo...São plantas raríssimas, é uma pena. Eu tenho poucos doentes, as pessoas agora têm mais saúde, parece, comem mais legumes, bebem leite, tudo isso tem consequências.
Quando deu por si, Páris estava a prometer ao irmão o espaço livre dentro do armário do quarto contíguo para as ervas exóticas. Em troca, Adónis traria a cama.
- Mas precisas de treino - disse ele. - Não penses que é qualquer um que se pode dar ao luxo de dormir numa coisa daquelas. Eu devo é ficar contigo uns dias, para te ires aclimatando. Que é feito da tua mulher?
No final da tarde, Adónis ficou de se mudar para casa do irmão, com a cama e as plantas. Havia também uns utensílios de cozinha que eram especialmente afeitos ao cozimento das poções, e esses viriam também. Páris, ainda ao concordar, já se arrependia intimamente de tudo. Sempre lhe parecera que o irmão ganhava, desde que nascera, ganhava todas as partidas. Durante a noite pensou numa forma de se livrar dele, ficando ao mesmo tempo com a cama que lhe pertencia. Durante a noite, tudo se esclareceu. Diria ao irmão:
- Eu não tenho afinal espaço para ti, nem para as tuas coisas. A minha casa dá à justa para mim e para a cama do faquir.
Isto lhe disse na manhã seguinte, ao que Adónis respondeu:
- Compreendo. Não te preocupes, eu trago a cama ainda hoje e dou-te as instruções.
Mas ainda se sentou um bocado a tomar uma tisana que tinha fabricado, e depois de um silêncio ritual, traçou a perna curta e expôs:
- Este faquir Mudami é um tipo engraçado. Bebe que nem uma esponja, desrespeitando todos os preceitos da religião, e faz jejum. Dorme na cama de pregos, sozinho, mas tem pelas redondezas mais de vinte filhos. E reza, dias e noites, depois de espancar os discípulos.
-É um hipócrita!- gritou Páris.
-Isso não sei. Não foi o que me pareceu. Deus também não é sempre bom, não é verdade? Mas é sempre bom o que Ele faz.
Páris sentiu que voltava a ter alguma sensibilidade nas pernas. Sentir, gelou-o. Pensou, mas muito rapidamente, no diabo. Em Adónis e no diabo. Fechou os olhos.
- Danado. Isso não se diz.
O efeito de Adónis sobre Páris, há cinquenta anos, ou hoje mesmo, sempre idêntico. Um mentia, o outro tornava-se pequeno inquisidor. Um faltava à verdade, o outro apontava o dedo. Um inventava uma história, uma heresia, o outro fazia-se moral. Páris, que não acreditava em nada senão na prisão do seu corpo, diante de seu irmão Adónis que lhe dizia banalidades sobre Deus, surpreendia-se quase seminarista. E roía-se de inveja - Adónis tinha sobre ele efeito, e ele nenhum sobre Adónis.
Adónis sorriu, ajeitou as meias de cor creme que respiravam calmamente pelos furinhos dos sapatos, e calou-se. À saída, arrastando duas leves sacas de serapilheira com as suas ervas, disse que voltaria em breve, era só encontrar alguém que o ajudasse a carregar a cama. Informou que, sendo pequena, a cama não deixava de ser pesada. E que era preciso ter cuidado para não a pôr na intersecção de correntes eléctricas que podiam alterar-lhe as propriedades.
Deixou Páris entregue à mais perfeita descrença. Se pudesse, sem se magoar, bater fisicamente com a cabeça nas paredes, culpando-se de ingenuidade, de crendice, de estupidez absoluta, tê-lo-ia feito. Apenas deu por si a bater com a mão no peito devagar, distraidamente, sem conseguir deixar de remoer todas as contradições do irmão: primeiro o faquir jejuava e rezava até espantar a comunidade pela sua resistência, depois, afinal, era um bebedolas que não se tinha em pé , e o santo homem transformava-se num fornicador colérico que fazia filhos aos pares e distribuía pancada pelos discípulos. Que virtudes poderia ter a cama de um homem assim? Chegava Páris afinal à questão propriamente dita, por caminhos ínvios, muita reflexão inconsútil, e levantou a cabeça, ficou suspenso, teria arrebitado a orelha , ao ruído da única pergunta acertada:
- Que doença pensa ele que eu tenho , para me propor esta cura?
Já não era a cama que perseguia. Queria saber, de uma vez por todas, o que pensava Adónis sobre ele. Telefonou, ouviu a gravação, deixou mensagem. Esperou Adónis e o cumprimento da promessa. Adónis desaparecera. Páris encontrava recursos inéditos para procurar o irmão. Pagou à vizinha, às escondidas da mulher, para que se chegasse a casa de Adónis, lhe deixasse um papel por baixo da porta. Telefonou à vizinha de Adónis, de quem conseguira o número pelas informações, alegando emergência, para que chamasse o irmão. Tudo infrutífero. De noite, ligava de meia em meia hora, até às três e quatro da manhã.
A mulher voltou para casa, mas mantinha-se afastada. Páris ouvia-a arrastar móveis e costurar na velha máquina. Não era um som que lhe fizesse companhia, antes o irritava, porque não podia habituar-se a um ruído que não era regular. Era uma coisa que acontecia de vez em quando, e isso esgotava-lhe a paciência.
Passaram quinze dias sobre a última visita de Adónis, depois três semanas. Quando ia quase fazer um mês, Páris deixou de esperar. Deu-se o fenómeno da noite para o dia, literalmente. Páris deitou-se obsessivamente preocupado, a remoer juízos, a projectar, a anotar as suas queixas para a próxima conversa com o irmão, e acordou calmo, límpido, feliz. Desactivado. Nessa tarde, virou-se para a janela e sentiu curiosidade pelo que se passava na rua. Viu uma mulher de saltos altos a correr atrás de um menino que lhe fugia, a rir, para o meio da estrada, onde passava naquele momento o eléctrico. Viu o gesto que fez o guarda-freio, a descompostura que pregaram ao menino, que continuava rindo, pequenino, ao colo da mãe. Interessou-o um violinista cego, com a caixa de esmolas pendurada ao pescoço, que era objecto de escárnio de dois rapazes, um branco e um negro, que se faziam passar por seus ajudantes para lhe ficarem com os proventos. Chegava-lhe o som raquítico do violino, tocando uma espécie de fado com qualquer coisa de vienense, e via a aflição do cego que escutava, de cabeça à banda, o tumulto dos passantes e estranhava a falta de esmoleres. Viu passar autocarros. Ouviu buzinas e discussões entre automobilistas. Uma carrinha parou a descarregar fogões. A fila aumentava, Páris via de cima os braços dos condutores, fazendo gestos, para o par de tranquilos rapazes que transportavam, conversando, as mercadorias para a loja. À porta, parado, um indiano de bata azul, observava a cena, em silêncio , com a mão direita na bochecha. Veio de dentro um igual, que parou a seu lado. Depois disse qualquer coisa, e voltaram ambos para a loja. Nessa altura já o mais incomodado dos automobilistas deixava o carro e se dirigia à carrinha, que começou a abanar energicamente. Os dois indianos saíram de novo, observaram, entraram. Um deles veio ainda cá fora enxotar dois cães de rua, um muito gordo e outro muito comprido, que se levantaram, fingiram pôr-se a andar, esperaram que ele entrasse e sentaram-se de novo, dois passos mais à frente. Páris divertia-se enormemente. Considerou chamar a mulher e partilhar com ela tais especialidades lisboetas. Mas os termos da relação entre eles não eram os melhores, e não seria uma simples cena de rua a transformá-los.
Dormiu mal, Páris, nessa noite, cheio de imagens vívidas da Almirante Reis. No sono, não conseguiu encontrar nunca o singelo prazer de ter curiosidade pelos factos comuns. Tudo lhe aparecia monstruoso, ameaçador, e a rua era um imenso rio de lixo e pó, por onde o vento soprava, levando consigo jornais , sacos de plástico, um ou outro boné , caixas de papelão.
Na manhã seguinte, Adónis tocou à campainha. Vinha, de uma assentada, trazer a cama de pregos e despedir-se. Voltava para a Índia, dizia.
- Fazer o quê?- perguntou o irmão.
Adónis queixou-se de não ter lugar no Ocidente. Disse ainda qualquer coisa sobre a sabedoria multimilenar de outras civilizações, com os tufos de pêlos nas orelhas e a perna curta traçada, remexendo na meia de cor creme . Páris imaginou que ele estaria metido num tráfico qualquer, possivelmente droga, ou mulheres, uma coisa sórdida e perigosa.
Puseram-se então a considerar onde ficaria instalada a cama de pregos. A mulher, que ocupava o resto da casa, não aparecera a cumprimentar Adónis. Isto era sinal de que a cama do faquir teria de encontrar um espaço no quarto de Páris. Que era acanhado e tinha a mobília indispensável .
- Põe-se ali ao alto, encostada à parede.
Adónis, muito lesto, chegou à escada a chamar os rapazes.
- Tragam lá a cama ! - gritou do alto.
Avistando os dois efebos morenos que faziam favores ao irmão, Páris teve um baque. Tráfico de rapazes, seria? Não, não era possível descer tão baixo. Adónis dava-lhes instruções com exactidão. Passem pela vossa direita, levantem mais meio metro, com cuidado, ponham primeiro o vosso lado direito no chão, segurem por baixo com as duas mãos, encostem à parede a trinta graus. Páris, ainda deitado na cama, e saciada a primeira curiosidade, olhava para a janela. Completadas as operações de entalamento da cama de pregos entre a cómoda e o armário, Adónis disse:
- Então, que tal?
- Obrigado, - disse Páris. - Acho que fica bem.
A cama não era como imaginara e vira. Era uma simples placa de madeira prensada, a esfarelar-se nos cantos, com uns poucos pregos de aço novos semeados aqui e ali. Era, claramente, uma coisa feita à pressa pelo próprio Adónis, quem sabe se no tal armazém suposto em Mem Martins, onde guardava o rosário, a erva e a espada.
- Agora dou-te as instruções, porque isto tem os seus quês. Para usares com utilidade a cama de pregos do faquir Mudami podes escolher uma de duas vias: ou aprendes a levitar, de modo a não tocar com as costas nos pregos - o que leva tempo - , ou controlas a dor. Para controlar a dor tens três tipos de exercícios: de relaxamento, de concentração e de imaginação. Primeiro inspiras, um, dois, três, quatro, cinco, seis e pensas em cada parte do teu corpo...
Os rapazes, da ombreira da porta, olhavam alternadamente para Adónis e para o irmão. Páris, presa das piores suspeitas, imaginando os horrores cometidos por Adónis no Oriente e no Ocidente, ia fingindo ouvir e assentindo a tudo o que ele dizia, não se atrevendo a olhar para os rapazes. Um deles disse:
- Desculpe, senhor Moreira, nós vamos andando, beber um café - e apertou a camisa que trouxera aberta por cima da camisola de alças.
Adónis não interrompeu as explicações, fez só um gesto para dizer que tinha ouvido. A ideia era , então, através de todos esses exercícios, conseguir um tal estado de concentração espiritual, que a dor física não deixaria de existir em si mesma, mas perderia totalmente o valor negativo e passaria a constituir um troféu para o sofredor. Mas não era um resumo de vinte minutos que iria transformar Páris num iogui. Foi isto que o irmão lhe disse, já de pé, com urgência de sair e seguir a sua vida. Escreveu, numa caligrafia infantil, um número de telefone nas costas de um envelope e estendeu-o ao irmão:
-Olha, este é o homem que te pode ajudar. É Mestre António, chamam-lhe assim. Vive na Estefânia, ali ao jardim Constantino.
- Isso para aí está tudo cagado dos pombos - disse o Páris.
Assim despediu o irmão. Adónis nem se voltou, já ia atrasado para os rapazes. Páris ficou com o envelope na mão, percebeu que era uma conta de electricidade por pagar. Uma conta calada. Ainda sorriu.
Posta ao alto, encostada à húmida parede antiga, a placa de madeira prensada com sua dúzia de pregos reluzentes meios tortos tinha o ar de um resto de qualquer coisa. As costas de um armário, o estrado de uma cama, o fundo de uma cómoda, uma coisa incompleta a que outras se deviam acoplar para serem o que são. Páris procurava não olhar. Voltava cadeira de rodas para a janela e ficava a sentir a luz na cara. Quando dava por si, estava a inspirar um, dois, três, quatro, cinco, seis.