Visitar Amigos e outros contos
"Vamos ver se consigo mostrar-te a cidade. Ainda não tínhamos apertado o cinto de segurança, já ele me anunciava os circuitos e os pontos de interesse. De mãos no volante, vigiando a estrada, conta-me o último sonho. Não tem a hesitação própria dos sonhos, põe apenas facto atrás de facto, aconteceu isto e eu fiz isto e depois deu-se esta outra coisa curiosa. É assim há trinta anos, onde quer que nos visitemos no largo globo terrestre, ele em Moscóvia, eu em Cambrígia, eu na Oxónia e ele em Munique, e assim por diante, uma conversação interrupta e ininterrupta, começando nestes sonhos esquisitos que ele tem um par de dias antes de eu chegar. A alegria que sempre trago em revê-lo sofre um pouco. Vislumbro, entrevejo, na sombra do que para mim é o sonho dele, ser mais um terno estorvo no momento. Mas a força do reencontro, registando algures o sonho também ensina a menosprezá-lo, e põe-no no seu devido lugar, entre parênteses. Conto-lhe eu as peripécias da viagem, depressa esquecidas pelo trunfo de outras tantas peripécias e pela grande presença do presente, tão avassaladora que tem de ser vivida com moderação. Rimos porque não chove, rimos do trânsito que não há, e a conversa começada dois dias antes ao telefone continua pela autoestrada. O que o sonho dizia, repetiu o director do departamento por telemóvel. Paco era chamado de urgência como cicerone de um grupo de historiadores chineses e não podia acompanhar-me. “Mas eu dou-te os links”, disse, e suavizou o golpe. Nessa primeira noite, enquanto ele atendia o telemóvel e depois centrava toda a sua existência no écran do computador, deixei-me estar discretamente a pestanejar no sofá até adormecer. Ele enviou-me os links perto da meia-noite. Enquanto se escapulia da sala sem um ranger de porta, eu sonhava algo repetitivo e mediano, meninas dentro de jaulas e mães que julgam não estar à altura de si próprias. Era um lugar exótico, muito arborizado, que fazia pensar num jardim zoológico e numa marquise. Talvez tenha vindo daí o apetite de bosques ao acordar. O “meu” quarto, assim designado pelo hábito de apartamentos dispersos pelo mundo ao longo de décadas, apresentava-se linear e limpo. Um colchão no chão, roupa de cama imaculada, uma lâmpada excessiva presa ao tecto por um fio. Era afinal o quarto das visitas, que o Paco deixava inconcluso, numa abstracção de hotel, até se mudar para outro apartamento perto de outra universidade de acolhimento algures no mundo. Aí fiz a temível insónia das três da madrugada, dominada pela preocupação de não conseguir voltar a adormecer em tempo útil, o que se cumpriu".
(Visitar Amigos, 2024)
www.publico.pt/2024/09/27/culturaipsilon/entrevista/luisa-costa-gomes-dificuldade-aceitar-autoridade-tambem-palavras-2105418
DE PASSAGEM
4
Encenação António Pires, Teatro do Bairro, Lisboa, Janeiro 2024
O jovem ROBERTO tirou um ano para ver o mundo. Chamem-lhe viagem iniciática, naquela tradição perdida do Grand Tour romântico. Vai de bicicleta, uma concessão à modernidade, de mochila às costas, sem rumo, desenhando paisagens aquáticas onde as encontra. Quando chega ao topo de uma montanha, no ermo, encontra ANTÓNIO, que nele se retirou, em conflito com a Natureza circundante. ANTÓNIO, doente, luta com a sua incapacidade de pôr termo à vida. ROBERTO apercebe-se, ao cair dessa noite, que lhe roubaram a mochila com tudo o que ele tinha. Dividido entre procurar os seus bens e deixá-los seguir caminho, decide passar a noite em casa de ANTÓNIO. E este usa o bom ROBERTO como arma involuntária para se suicidar. Pelas mesmas pitorescas montanhas deambulam, pedestres, dois cavalheiros cuja generosidade raia os limites da loucura. DOMINGOS e AUGUSTO são testemunhas benévolas das consequências do “crime” de ROBERTO. Pelas serranias floridas anda também MARIA RITA, com seu filho e marido, procurando (mas não excessivamente) o pai desaparecido.
DE PASSAGEM (HISTORIAL)
PASSAGEM começou por ser uma opereta em cinco actos, escrita em Inglês, cujo tema eram diversas formas de economia. Data de 1985 e chamava-se Just passing through. Tinha, na versão original em Inglês e nas versões anteriores a esta em Português, toda uma secção sobre a economia de mercado, representada por um grupo de romanis de opereta, que tudo roubavam para vender, estabelecendo uma permanente atmosfera de desconfiança, mas também da alegria das feiras, da energia do engano e da manipulação, ou seja, o júbilo do valor acrescentado, do valor inventado, do valor concreto de uma ilusão.
As personagens de Domingos e de Augusto, que no original eram Percy e Boyle, representavam a terrível economia do potlatch, praticada por algumas tribos do Canadá como os Kwakiutl, hoje praticamente extintos, et pour cause, e também na Melanésia. O potlatch é uma competição pela dádiva, em que o valor e a qualidade dos bens dados como presente são sinais do prestígio de quem dá. Dar é a medida do estatuto social dentro da tribo: quem mais dá, mais pode e mais vale. Isto cria uma verdadeira competição pelo endividamento, escravizando, no final, a pessoa que oferece, obrigando quem recebe a retribuir de forma ainda mais generosa, e escravizando por sua vez aquele que recebeu. É uma economia da perversão da dádiva, que foi substituída nas versões em Português por uma economia da dádiva pura, que provoca um prazer quase viciante – lembramos o Fra Ginepro, companheiro de Francisco de Assis, que não podia ver um pobre sem lhe dar a túnica, aparecendo na choupana dos frades sempre nu! Maria Rita, a mãe (com o marido em efígie, como grande parte das mães), representa a economia que nunca aparece contabilizada, a economia do amor humano, que se revela ofuscante no amor materno: dádiva narcísica, um dar-recebendo, uma troca que nos primeiros anos se faz sobretudo consigo própria, projectando na figura do filho imagens de si e de outros seres por si construídos. Faz pensar no poema de Herberto Helder : “No sorriso louco das mães batem as leves/ gotas de chuva. Nas amadas caras loucas batem e batem/os dedos amarelos das candeias./Que balouçam. Que são puras./Gotas e candeias puras. E as mães/aproximam-se soprando os dedos frios./Seu corpo move-se/pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões/e órgãos mergulhados,/e as calmas mães intrínsecas sentam-se/nas cabeças filiais./Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado/vendo tudo,/e queimando as imagens, alimentando as imagens/enquanto o amor é cada vez mais forte./E bate-lhes nas caras, o amor leve./O amor feroz.”
É curioso que se pense no Beckett do À espera de Godot quando se lê De Passagem. Salvaguardadas todas as devidas distâncias, Percy e Boyle foram homenagem. Domingos e Augusto estão em muitos aspectos deliberadamente construídos para serem o anti-Vladimir e o anti-Estragon, sem serem antíteses ponto a ponto. São homens que, como queria Bruno Schulz, “amadurecem para a infância”. Dois passeantes cuja candura, brio, alegria, deslumbramento genuíno e moral pelas belezas do mundo, cuja joie de vivre e optimismo tresloucado querem ser uma afirmação amorosa, humorosa e humorística sobre a nossa breve e tormentosa e feliz passagem por este vale de lágrimas.
Luísa Costa Gomes
Revisto em Abril, 2023
Link do livro DE PASSAGEM(editora o únicoeasuapropriedade, teatro 1,2019/)
www.amazon.com/PASSAGEM-Portuguese-LU%C3%8DSA-COSTA-GOMES/dp/1704204399
Encenação António Pires, Teatro do Bairro, Lisboa, Janeiro 2024
O jovem ROBERTO tirou um ano para ver o mundo. Chamem-lhe viagem iniciática, naquela tradição perdida do Grand Tour romântico. Vai de bicicleta, uma concessão à modernidade, de mochila às costas, sem rumo, desenhando paisagens aquáticas onde as encontra. Quando chega ao topo de uma montanha, no ermo, encontra ANTÓNIO, que nele se retirou, em conflito com a Natureza circundante. ANTÓNIO, doente, luta com a sua incapacidade de pôr termo à vida. ROBERTO apercebe-se, ao cair dessa noite, que lhe roubaram a mochila com tudo o que ele tinha. Dividido entre procurar os seus bens e deixá-los seguir caminho, decide passar a noite em casa de ANTÓNIO. E este usa o bom ROBERTO como arma involuntária para se suicidar. Pelas mesmas pitorescas montanhas deambulam, pedestres, dois cavalheiros cuja generosidade raia os limites da loucura. DOMINGOS e AUGUSTO são testemunhas benévolas das consequências do “crime” de ROBERTO. Pelas serranias floridas anda também MARIA RITA, com seu filho e marido, procurando (mas não excessivamente) o pai desaparecido.
DE PASSAGEM (HISTORIAL)
PASSAGEM começou por ser uma opereta em cinco actos, escrita em Inglês, cujo tema eram diversas formas de economia. Data de 1985 e chamava-se Just passing through. Tinha, na versão original em Inglês e nas versões anteriores a esta em Português, toda uma secção sobre a economia de mercado, representada por um grupo de romanis de opereta, que tudo roubavam para vender, estabelecendo uma permanente atmosfera de desconfiança, mas também da alegria das feiras, da energia do engano e da manipulação, ou seja, o júbilo do valor acrescentado, do valor inventado, do valor concreto de uma ilusão.
As personagens de Domingos e de Augusto, que no original eram Percy e Boyle, representavam a terrível economia do potlatch, praticada por algumas tribos do Canadá como os Kwakiutl, hoje praticamente extintos, et pour cause, e também na Melanésia. O potlatch é uma competição pela dádiva, em que o valor e a qualidade dos bens dados como presente são sinais do prestígio de quem dá. Dar é a medida do estatuto social dentro da tribo: quem mais dá, mais pode e mais vale. Isto cria uma verdadeira competição pelo endividamento, escravizando, no final, a pessoa que oferece, obrigando quem recebe a retribuir de forma ainda mais generosa, e escravizando por sua vez aquele que recebeu. É uma economia da perversão da dádiva, que foi substituída nas versões em Português por uma economia da dádiva pura, que provoca um prazer quase viciante – lembramos o Fra Ginepro, companheiro de Francisco de Assis, que não podia ver um pobre sem lhe dar a túnica, aparecendo na choupana dos frades sempre nu! Maria Rita, a mãe (com o marido em efígie, como grande parte das mães), representa a economia que nunca aparece contabilizada, a economia do amor humano, que se revela ofuscante no amor materno: dádiva narcísica, um dar-recebendo, uma troca que nos primeiros anos se faz sobretudo consigo própria, projectando na figura do filho imagens de si e de outros seres por si construídos. Faz pensar no poema de Herberto Helder : “No sorriso louco das mães batem as leves/ gotas de chuva. Nas amadas caras loucas batem e batem/os dedos amarelos das candeias./Que balouçam. Que são puras./Gotas e candeias puras. E as mães/aproximam-se soprando os dedos frios./Seu corpo move-se/pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões/e órgãos mergulhados,/e as calmas mães intrínsecas sentam-se/nas cabeças filiais./Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado/vendo tudo,/e queimando as imagens, alimentando as imagens/enquanto o amor é cada vez mais forte./E bate-lhes nas caras, o amor leve./O amor feroz.”
É curioso que se pense no Beckett do À espera de Godot quando se lê De Passagem. Salvaguardadas todas as devidas distâncias, Percy e Boyle foram homenagem. Domingos e Augusto estão em muitos aspectos deliberadamente construídos para serem o anti-Vladimir e o anti-Estragon, sem serem antíteses ponto a ponto. São homens que, como queria Bruno Schulz, “amadurecem para a infância”. Dois passeantes cuja candura, brio, alegria, deslumbramento genuíno e moral pelas belezas do mundo, cuja joie de vivre e optimismo tresloucado querem ser uma afirmação amorosa, humorosa e humorística sobre a nossa breve e tormentosa e feliz passagem por este vale de lágrimas.
Luísa Costa Gomes
Revisto em Abril, 2023
Link do livro DE PASSAGEM(editora o únicoeasuapropriedade, teatro 1,2019/)
www.amazon.com/PASSAGEM-Portuguese-LU%C3%8DSA-COSTA-GOMES/dp/1704204399