À conversa
Tive, durante uns anos, um vizinho que me tocava à campainha pelas nove da noite. Supunhamos que vinha pedir o martelo emprestado. À meia-noite, esquecido da razão da visita, tinha-nos a todos à porta, uns ainda com a faca de fruta e a maçã meio-descascada nas mãos, outros com o jornal posto em leque à cintura e mole como um pano de loiça. A conversa à porta nunca se transformava em conversa sentada porque estava permanentemente à beira de acabar. E estava permanentemente à beira de acabar porque nunca se transformava em conversa sentada. Feitas as primeiras despedidas ao fim de meia-hora, o vizinho recordava-se do martelo . No entanto, quando alguém se preparava para o ir buscar e se punha a caminho da arrecadação, já a conversa se estabalecera sobre outro tema igualmente interessante, que levava a outro e a outro, até ninguém se lembrar de perguntar como tudo aquilo começara. Estas conversas em pé, à porta, a que técnicamente acabámos por chamar “conversação transiente”, tinham qualidades especiais que fomos a pouco e pouco esclarecendo. Ela tem, desde logo, duas características fundamentais : a primeira é que a conversa de pé à porta, tal como a maior parte das actividades que se realizam de pé e de passagem, não se assume como uma verdadeira conversa. Daí uma regra que parece aplicar-se a todas as conversas deste tipo, e é ela que nunca se avança muito num assunto, mas avança-se pouco em muitos assuntos. A “conversação transiente”, de que temos exemplo comum num encontro casual de rua, termina com “havemos de falar” ou “depois falamos”, como se não tivéssemos justamente acabado de o fazer.
A outra característica geral da “conversação transiente” - a característica que nos deixava especados à porta - é a sua gigantesca potencialidade de inflexão. Quase cada palavra de cada frase pode constituir uma espécie de nó rodoviário, permitindo que ou um ou outro ou ambos os interlocutores façam disparar a conversa em sentidos imprevisíveis. A mera frase “a minha mulher foi ao supermercado” pode originar , e naquele caso particular certamente originava, uma miríade de bifurcações, uma constelação dendrítica de ligações e ramificações.
Tentei, é verdade, - o meu entendimento está desenhado assim- encontrar um método de prever a regularidade destes desvios. Argumentei, perante o pasmo geral, que haveria talvez zonas da frase em que a probabilidade de desvio seria mais alta do que noutras. Disse que seriam os substantivos. Parece, pelo menos empiricamente, que os termos “mulher” e “supermercado” podem provocar mais divergências no sentido da conversação do que o possessivo “minha” ou o tempo do verbo “ir”. Um exame ligeiramente mais aturado revelou afinal que seria totalmente impossível, sem estudos estatísticos aprofundados (e mesmo assim!) concluir se haverá na frase lugares mais carregados de potencialidade divergente do que outros.
De vizinhos ficámos amigos. Esta é uma daquelas pessoas extraordinárias que têm os saberes da vida ordinária. Conhece os nomes das peças das bicicletas, onde se compram, quanto custam, conhece as marcas dos motores dos barcos, das armas de fogo, dos patins em linha, acompanha os ralis, conhece a física do ressalto, as partes de um edifício, a qualidade dos vinhos, a história das artes e ofícios, como se fazem tintas, como se chamam os elementos químicos , e tem uma vida cheia de lugares que, descritos por ele, parecem magníficos e exóticos embora se situem ali nas vizinhanças de Peniche.
A nossa época do ténis começa (e acaba, infelizmente) no princípio da Primavera. O que mais apreciamos na actividade prioritariamente física e monótona do ténis- dado que nenhum de nós é dado à competição , valorizando apenas o facto de corrermos de um lado para o outro feitos parvos sem qualquer objectivo determinado - é a conversação. Conversamos primeiro sob a forma de comentários jocosos àcerca da destreza e agilidade de cada um de nós (sou muito apta a irritar-me quando falho uma bola, e isto acontece com alguma frequência) ; mas, ao fim de vinte minutos, já nos vamos chegando progressivamente à rede, os comentários sem fôlego transformam-se em frases completas e quando damos por nós estamos sentados a conversar - e passaram os vinte minutos do intervalo.
Porque, como acontece com todos os conversadores, a requisição do martelo, o jogo do ténis ou qualquer outro fenómeno ou manifestação, são meros pretextos - e ficam as bolas espalhadas, a raquete estacionada a um canto, enquanto falamos ao sol pela manhã fora.
A outra característica geral da “conversação transiente” - a característica que nos deixava especados à porta - é a sua gigantesca potencialidade de inflexão. Quase cada palavra de cada frase pode constituir uma espécie de nó rodoviário, permitindo que ou um ou outro ou ambos os interlocutores façam disparar a conversa em sentidos imprevisíveis. A mera frase “a minha mulher foi ao supermercado” pode originar , e naquele caso particular certamente originava, uma miríade de bifurcações, uma constelação dendrítica de ligações e ramificações.
Tentei, é verdade, - o meu entendimento está desenhado assim- encontrar um método de prever a regularidade destes desvios. Argumentei, perante o pasmo geral, que haveria talvez zonas da frase em que a probabilidade de desvio seria mais alta do que noutras. Disse que seriam os substantivos. Parece, pelo menos empiricamente, que os termos “mulher” e “supermercado” podem provocar mais divergências no sentido da conversação do que o possessivo “minha” ou o tempo do verbo “ir”. Um exame ligeiramente mais aturado revelou afinal que seria totalmente impossível, sem estudos estatísticos aprofundados (e mesmo assim!) concluir se haverá na frase lugares mais carregados de potencialidade divergente do que outros.
De vizinhos ficámos amigos. Esta é uma daquelas pessoas extraordinárias que têm os saberes da vida ordinária. Conhece os nomes das peças das bicicletas, onde se compram, quanto custam, conhece as marcas dos motores dos barcos, das armas de fogo, dos patins em linha, acompanha os ralis, conhece a física do ressalto, as partes de um edifício, a qualidade dos vinhos, a história das artes e ofícios, como se fazem tintas, como se chamam os elementos químicos , e tem uma vida cheia de lugares que, descritos por ele, parecem magníficos e exóticos embora se situem ali nas vizinhanças de Peniche.
A nossa época do ténis começa (e acaba, infelizmente) no princípio da Primavera. O que mais apreciamos na actividade prioritariamente física e monótona do ténis- dado que nenhum de nós é dado à competição , valorizando apenas o facto de corrermos de um lado para o outro feitos parvos sem qualquer objectivo determinado - é a conversação. Conversamos primeiro sob a forma de comentários jocosos àcerca da destreza e agilidade de cada um de nós (sou muito apta a irritar-me quando falho uma bola, e isto acontece com alguma frequência) ; mas, ao fim de vinte minutos, já nos vamos chegando progressivamente à rede, os comentários sem fôlego transformam-se em frases completas e quando damos por nós estamos sentados a conversar - e passaram os vinte minutos do intervalo.
Porque, como acontece com todos os conversadores, a requisição do martelo, o jogo do ténis ou qualquer outro fenómeno ou manifestação, são meros pretextos - e ficam as bolas espalhadas, a raquete estacionada a um canto, enquanto falamos ao sol pela manhã fora.