A Janela da Despensa como Argumento Moral
A primeira coisa que embateu nos olhos de Luisinho ao entrar foi a mesa relhena. A grande mesa oval, bem assente no meio da sala, a transbordar de doçaria e delicadezas. E enquanto os outros miúdos se atiçavam uns contra os outros e saltavam aos gritos por cima dos sofás, Luisinho fora o singular a ir direito ao que mais o comovia e especado diante da mesa posta, religioso ficou a deixar entrar pelas retinas toda aquela pompa e grandeza. E viu, destacada do todo, antes do mais a taça de cristal, redonda, muito trabalhada, da musse de chocolate coberta de nozes; a seu lado, o monumento da tarde, um bolo imenso de claras com morangos e natas batidas, camadas de diversas naturezas sobrepostas, todas elas boas, todas elas harmoniosas, conjugadas num macio cilindro branco que fazia sonhar; vinham depois, deitadas num prato de porcelana chinesa , por cima de uma suspeita de luta entre dragões, as cornucópias, recheadas com doce de ovos. Quase se embaciam os óculos do Luisinho ao contemplar as taças de gelado feito em casa, na máquina de manivela, com sabores de café, de morango, de chocolate, de natas, dispersas sobre a mesa, quase livres de irem para onde lhes apetecesse, mais para junto da travessa dos rolinhos de pão-de-forma com atum e maionese, mais para longe do bolo de ananás enfeitado com ziguezagues de natas, por baixo das quais se sabia estarem um pão-de-ló que não podia sem exagero ser mais amarelo e um creme de manteiga pecaminoso. Desfalece o coração de Luisinho, imune ao caos infantil a que a sala velozmente se chega, ao passar os olhos sobre os três pratos grandes, cama real das sanduíches aparadas, com fiambre e fuagrá autêntico. Recapitulou, saltando a bandeja dos biscoitos de manteiga, que é comida de miúdo e o palhaço de gelatina, transigência inaceitável ao paladar selvagem. E demorou-se com prazer no bolo que ele já conhecia, musse cozida no forno, coberta de chocolate. Na mesinha de apoio, em formação cerrada, os jarros de limonada com muito gelo, sumo de laranja para os menos exigentes, chá gelado e mazagran para as mães.
Luisinho saiu do devaneio com a miudagem a chegar-se à mesa. Teve um repentino movimento de irritação e afastou, em dupla cotovelada, dois rapazinhos gémeos, que repetiram o assalto. Luisinho acabou por se render à evidência de que o arranjo perfeito daquela mesa seria, daí em diante, não mais que uma lembrança. Os bárbaros atacavam as sanduíches, davam cabo do palhaço e descompunham o bolo de claras. Mas reconfortou Luisinho pensar que chegara o momento da consumação. Lançou a mão aos rolinhos de atum e, de olhos fechados, alheio à agitação da sala e das mães que ofereciam delícias em altos brados, mastigou com extrema unção o pão e os recheios, uma, duas cornucópias, uma fatia de bolo de claras que passara à inspecção da mãe, uma fatia de bolo de ananás, uma bom pedaço de bolo de chocolate, este já na completa clandestinidade , e quando, absorto, avançava para a musse, coroação de uma primeira volta abençoada, sentiu antes do mais uma sapatada ligeira nos dedos, depois o olhar reprovador :
- Já chega!, - disse a mãe - o Luisinho rebenta.
Confuso e envergonhado, o menino ainda é capaz - a vontade é muita - de balbuciar que não chegou a comer musse nenhuma.
- Tenho estado a ver, - disse a mãe - e acho que já chega. Lembre-se do que lhe disse o doutor.
- Ora, - disse a mãe do aniversariante - um dia não são dias.
Luisinho, a quem a injustiça feria para além das palavras, manteve-se firme, de barriga encostada à mesa, inamovível, à espera que alguém cedesse. Olhava um a um todos os outros, demorando-se com desprezo num pequenino a quem a mãe enfiava o bolo de chocolate na boca colher a colher, que ele comia enjoado, contrariado! Outro deixara no prato a fatia quase inteira do bolo de claras e entretinha-se a esfaquear o palhaço. Se lhe perguntavam porque não comia, respondia que não gostava! Não gostava de bolo de claras com morangos! Luisinho, incrédulo, corria os olhos de um para outro e todos lhe pareciam estranhos. Loucos!
- Está gorducho, sim, mas é tão engraçado... - dizia a amiga da mãe.
- E esperto que ele é, - dizia outra.
- E bonzinho, -disse outra voz.
- Que sorte, - comentou a amiga da mãe - o meu é um castigo para comer. Ainda ontem tive de lhe ir fazer uns ovos mexidos... - e o resto da história perdeu-se no zunzum da sala. Mas quanto ao assunto em referência, a saber, autorização para avançar para a musse de chocolate, ou mesmo para um biscoito de manteiga bem negociado, nada se concluía.
- O médico diz que não pode estar tão gordo, - disse a mãe. - Faz-lhe mal. Até psicologicamente.
- Ele logo emagrece, quando crescer, - disse alguém.
Luisinho não tem fome. Tem vontade de comer. Tem anseio, desejo. Sente falta. A barriga estava cheia, não se tratava de encher a barriga. Isto nele era uma devoção, não era pecado. Quieto junto à mesa desafiava a mãe e a consciência. Esperou que ambas se distraíssem, para que o instinto prevalecesse. Os saciados foram abandonando aos poucos a mesa do lanche. Luisinho e mãe ficaram sós, frente a frente.
- E um biscoito, posso? - quis ele saber.
- Mais nada, já chega.
- É sempre a mesma coisa, - resmungou o menino - toda a gente pode comer menos eu.
E amuou, visto que não lhe restava mais nada.
*
Sentado nas escadas de pedra do jardim, o magro papo-seco com uma réstea de doce de ginja amorosamente encerrado na palma da mão, Luisinho olhava para a estrada. Esperava, como todas as tardes pela mesma hora, que a Bibi passasse, a caminho de casa. Ouvia o restolhar das galinhas na capoeira, de vez em quando a excitação do galo que carregava sobre elas sem pré-aviso. Daí a pouco, o som mole de uma ameixa a esborrachar-se no chão.
A Bibi vinha cansada de subir e deixou-se cair no degrau, sem fôlego. O Luisinho deu uma viril dentada no pão e ficou a aguardar.
- Dás-me?, -perguntou a Bibi. O Luisinho estendeu-lhe um cantinho do seu lanche, demarcando com os dedos a quantidade de pão que ela podia tirar.
- O que é que foi o almoço? - perguntou.
- Já nem me lembro. Uma porcaria qualquer. Bifes, acho eu. Sou capaz de comer três bifes. A minha mãe fica doida.
- Três bifes? E ela deixa?
- Que remédio, - disse a Bibi. - Eu só faço o que quero, pelo menos é o que a minha mãe diz.
Atravessou o espírito do Luisinho uma pergunta tremenda: seria possível desobedecer à mãe? Possível era, com certeza, visto que havia quem dissesse que o fazia. Podia haver até quem o fizesse de facto. Desobedecer à mãe? Não fazer o que ela queria? A noção era interessante, mas dava-lhe arrepios contemplá-la muito tempo. Luisinho demorava-se a acabar o pão, roendo pontinha aqui, pontinha ali, temendo imaginar o que aconteceria quando não houvesse mais nada para comer.
- Vamos às ameixas? - perguntou a Bibi.
O Luisinho olhou em volta. A mãe devia estar a chegar das compras e a criada estava distraída com a rádio. Era boa altura. A Bibi levantou-se toda lesta e encaminhou-se para a árvore, pisando de propósito as ameixas caídas, sujando as meias de croché com o sumo delas.
- Vais tu ou vou eu?
- Sobe tu, - disse o Luisinho, - eu empurro-te para cima.
A Bibi era inesperadamente ágil para uma menina tão rechonchuda. Depois do impulso inicial, que quase soterrara o Luisinho, desequilibrado com o fardo de tanto peso, num instante estava lá em cima e recolhia nos bolsos da bata as melhores ameixas.
- Tu usas calções de rapaz por baixo das saias? - perguntou, curioso, o Luisinho.
A Bibi acertou-lhe com uma ameixa em cheio no olho. Começou a descer e a praguejar ao mesmo tempo. E o Luisinho sem perceber ao que vinha toda a quela fúria.
- É a estúpida da minha avó que me faz estes calções. E não são de rapaz. São para o frio. Não te atrevas a dizer que são de rapaz.
Agora enfrentava-o, um dos bolsos a transbordar de ameixas e o outro vazio, olhando a direito para ele, muito perto. Luisinho queria apaziguá-la, sem saber como. Ia lançar-lhe a mão à cara para lhe fazer uma festa, mas a mão desviou-se por razões desconhecidas e acabou junto à perna da Bibi, a levantar-lhe a saia e a pedir:
- Deixa-me lá ver.
A Bibi não perdeu tempo a defender-se. Deu-lhe uma palmada na mão, um empurrão que o fez cair e foi-se embora a correr.
Ao abrir a mão que errara, Luisinho encontra lá dentro uma ameixa. Com a força, esmagara-a de tal modo que o sumo escorria por entre os dedos.
Luisinho lambeu a mão, não lhe restava mais nada.
*
Torturado pela fome, Luisinho acorda a meio da noite de um sonho de compotas sobre fatias de pão caseiro. Sem acender a luz, silencioso desce a escada em direcção ao frigorífico. Ele conhecia de cor o interior do frigorífico, a arrumação que a mãe lhe dava, todo o seu conteúdo. Em cima, na porta, manteigas, margarinas; em baixo, o jarro do leite; os legumes organizados nas gavetas, os restos de jantares e almoços hierarquicamente sobrepostos por grau de antiguidade. Muito contra o seu hábito, Luisinho sucumbiu à precipitação. Agarrou no que lhe pareceu maior, sem se preocupar em saber o que era. E ficou no escuro, apenas iluminado pela fraca luz do frigorífico, a escutar os barulhos da casa, segurando pela perna um frango inteiro, assado. É que lhe parecera ouvir a mãe a descer as escadas. Ele bem suspende a respiração, mas o coração bate-lhe tão depressa que não o deixa ouvir. Fecha devagarinho a porta do frigorífico sem largar o frango e dá dois passos, mas sem direcção determinada, posto que não sabe o que fazer. A sua primeira ideia é ir para a sala, onde há mais luz, e dar ali mesmo cabo do frango. Mas a porta da cozinha fechara-se e Luisinho só a encontra no final de muita topada por armários e esquinas de mesas e caneladas em cadeiras e banquinhos. A mãe era grande apreciadora da profusão dos móveis, mesmo na cozinha.
Luisinho está no sopé das escadas, o gordo frango assado preso pela perna, a olhar para cima. Agora é que ouviu mesmo a mãe acender a luz da mesinha-de-cabeceira, vestir o roupão, tossicar. O pai acordou e perguntou-lhe se não conseguia dormir. Luisinho tremeu à voz serena da mãe:
-Pareceu-me ouvir barulho lá em baixo.
Paralisado, sózinho no escuro, o menino teve o impulso inútil de esconder o frango atrás das costas, lambuzando o belo roupão de seda que o tio lhe dera. Mas quando viu a figura da mãe aparecer no topo das escadas, deitou a correr pela sala, em direcção à porta da rua. O pai fechava-a sempre com as duas voltas da chave e punha-lhe, por maior garantia, uma corrente de segurança. Era o único a fazê-lo entre os vizinhos, gostava de citar um provérbio que Luisinho nunca conseguia reproduzir e que tinha a ver com barbas de molho e trancas à porta.
A mãe vinha a meio das escadas e viu o rapazinho colado à parede. Não distinguiu o que ele trazia na mão, mas percebeu imediatamente que surpreendera uma actividade ilícita.
- Luisinho? - chamou ela - O que é que o menino anda a fazer?
O Luisinho atravessou a sala correndo, passou em velocidade o guarda-vento que dava para a copa e procurou uma saída. E a única saída era a janela da despensa. Luisinho empurrou a porta e entrou, naturalmente sem o costumado prazer, no quartinho onde se amontoavam as provisões. Às vezes, quando se sentia mais triste, pedia à mãe para lá ir com ela, só olhar e cheirar. E contemplava com saudade as prateleiras dos açúcares, os ovos frescos na cestinha, os belos frascos do feijão e do grão. Agora, que estava com pressa, subiu para o banquinho, foi direito à janela pequena e abriu-a. Passou, em primeiro lugar e para maior segurança, o braço que continha o frango assado para o lado de fora, depois o outro braço, depois içou o peito e muito em breve percebeu que ficara entalado. O rabo do Luisinho não cabia na janela.
Foi mortificado que ouviu a mãe abrir atrás dele a porta da despensa. Esperou que ela dissesse alguma coisa, enquanto tentava desentalar a barriga o suficiente para se deixar escorregar para dentro e receber a censura com alguma dignidade. Mas ela não dizia nada e ele não estranhou. Imaginou o que ela via, o banquinho tombado, as pernas dele bamboleando sem apoio, o corpo disforme no roupão de seda azul, cortado ao meio pela moldura da janela. E imaginou o que ela imaginava e não via: o frango enxovalhado, preso pela perna, a apanhar ar na mão direita de Luisinho, que o empunhava como a bandeira da autêntica desgraça. O meio corpo embaraçado, o peso da culpa de Luisinho, era isto que ela via.
A mãe deu-se tempo de fechar a porta da despensa e ir calmamente de roda ver o espectáculo pelo lado de fora. Nessa altura já o frango se decepara pela perna, deixando o Luisinho na posse de uma única coxa, perdido o resto no canteiro dos lírios, já então provável pasto de formigas e bichos sem valia. A mãe postou-se em frente da parte superior de Luisinho. Ele sabia que o que ela dissesse lhe havia de ficar para a vida toda.
- Está a ver, meu filho querido, - disse a mãe - se o menino fosse mais magrinho, tinha passado na janela.
E afastou-se pelo jardim, sacudida de riso, do riso imoral que o Luisinho não lhe pôde nunca desculpar.
Luisinho saiu do devaneio com a miudagem a chegar-se à mesa. Teve um repentino movimento de irritação e afastou, em dupla cotovelada, dois rapazinhos gémeos, que repetiram o assalto. Luisinho acabou por se render à evidência de que o arranjo perfeito daquela mesa seria, daí em diante, não mais que uma lembrança. Os bárbaros atacavam as sanduíches, davam cabo do palhaço e descompunham o bolo de claras. Mas reconfortou Luisinho pensar que chegara o momento da consumação. Lançou a mão aos rolinhos de atum e, de olhos fechados, alheio à agitação da sala e das mães que ofereciam delícias em altos brados, mastigou com extrema unção o pão e os recheios, uma, duas cornucópias, uma fatia de bolo de claras que passara à inspecção da mãe, uma fatia de bolo de ananás, uma bom pedaço de bolo de chocolate, este já na completa clandestinidade , e quando, absorto, avançava para a musse, coroação de uma primeira volta abençoada, sentiu antes do mais uma sapatada ligeira nos dedos, depois o olhar reprovador :
- Já chega!, - disse a mãe - o Luisinho rebenta.
Confuso e envergonhado, o menino ainda é capaz - a vontade é muita - de balbuciar que não chegou a comer musse nenhuma.
- Tenho estado a ver, - disse a mãe - e acho que já chega. Lembre-se do que lhe disse o doutor.
- Ora, - disse a mãe do aniversariante - um dia não são dias.
Luisinho, a quem a injustiça feria para além das palavras, manteve-se firme, de barriga encostada à mesa, inamovível, à espera que alguém cedesse. Olhava um a um todos os outros, demorando-se com desprezo num pequenino a quem a mãe enfiava o bolo de chocolate na boca colher a colher, que ele comia enjoado, contrariado! Outro deixara no prato a fatia quase inteira do bolo de claras e entretinha-se a esfaquear o palhaço. Se lhe perguntavam porque não comia, respondia que não gostava! Não gostava de bolo de claras com morangos! Luisinho, incrédulo, corria os olhos de um para outro e todos lhe pareciam estranhos. Loucos!
- Está gorducho, sim, mas é tão engraçado... - dizia a amiga da mãe.
- E esperto que ele é, - dizia outra.
- E bonzinho, -disse outra voz.
- Que sorte, - comentou a amiga da mãe - o meu é um castigo para comer. Ainda ontem tive de lhe ir fazer uns ovos mexidos... - e o resto da história perdeu-se no zunzum da sala. Mas quanto ao assunto em referência, a saber, autorização para avançar para a musse de chocolate, ou mesmo para um biscoito de manteiga bem negociado, nada se concluía.
- O médico diz que não pode estar tão gordo, - disse a mãe. - Faz-lhe mal. Até psicologicamente.
- Ele logo emagrece, quando crescer, - disse alguém.
Luisinho não tem fome. Tem vontade de comer. Tem anseio, desejo. Sente falta. A barriga estava cheia, não se tratava de encher a barriga. Isto nele era uma devoção, não era pecado. Quieto junto à mesa desafiava a mãe e a consciência. Esperou que ambas se distraíssem, para que o instinto prevalecesse. Os saciados foram abandonando aos poucos a mesa do lanche. Luisinho e mãe ficaram sós, frente a frente.
- E um biscoito, posso? - quis ele saber.
- Mais nada, já chega.
- É sempre a mesma coisa, - resmungou o menino - toda a gente pode comer menos eu.
E amuou, visto que não lhe restava mais nada.
*
Sentado nas escadas de pedra do jardim, o magro papo-seco com uma réstea de doce de ginja amorosamente encerrado na palma da mão, Luisinho olhava para a estrada. Esperava, como todas as tardes pela mesma hora, que a Bibi passasse, a caminho de casa. Ouvia o restolhar das galinhas na capoeira, de vez em quando a excitação do galo que carregava sobre elas sem pré-aviso. Daí a pouco, o som mole de uma ameixa a esborrachar-se no chão.
A Bibi vinha cansada de subir e deixou-se cair no degrau, sem fôlego. O Luisinho deu uma viril dentada no pão e ficou a aguardar.
- Dás-me?, -perguntou a Bibi. O Luisinho estendeu-lhe um cantinho do seu lanche, demarcando com os dedos a quantidade de pão que ela podia tirar.
- O que é que foi o almoço? - perguntou.
- Já nem me lembro. Uma porcaria qualquer. Bifes, acho eu. Sou capaz de comer três bifes. A minha mãe fica doida.
- Três bifes? E ela deixa?
- Que remédio, - disse a Bibi. - Eu só faço o que quero, pelo menos é o que a minha mãe diz.
Atravessou o espírito do Luisinho uma pergunta tremenda: seria possível desobedecer à mãe? Possível era, com certeza, visto que havia quem dissesse que o fazia. Podia haver até quem o fizesse de facto. Desobedecer à mãe? Não fazer o que ela queria? A noção era interessante, mas dava-lhe arrepios contemplá-la muito tempo. Luisinho demorava-se a acabar o pão, roendo pontinha aqui, pontinha ali, temendo imaginar o que aconteceria quando não houvesse mais nada para comer.
- Vamos às ameixas? - perguntou a Bibi.
O Luisinho olhou em volta. A mãe devia estar a chegar das compras e a criada estava distraída com a rádio. Era boa altura. A Bibi levantou-se toda lesta e encaminhou-se para a árvore, pisando de propósito as ameixas caídas, sujando as meias de croché com o sumo delas.
- Vais tu ou vou eu?
- Sobe tu, - disse o Luisinho, - eu empurro-te para cima.
A Bibi era inesperadamente ágil para uma menina tão rechonchuda. Depois do impulso inicial, que quase soterrara o Luisinho, desequilibrado com o fardo de tanto peso, num instante estava lá em cima e recolhia nos bolsos da bata as melhores ameixas.
- Tu usas calções de rapaz por baixo das saias? - perguntou, curioso, o Luisinho.
A Bibi acertou-lhe com uma ameixa em cheio no olho. Começou a descer e a praguejar ao mesmo tempo. E o Luisinho sem perceber ao que vinha toda a quela fúria.
- É a estúpida da minha avó que me faz estes calções. E não são de rapaz. São para o frio. Não te atrevas a dizer que são de rapaz.
Agora enfrentava-o, um dos bolsos a transbordar de ameixas e o outro vazio, olhando a direito para ele, muito perto. Luisinho queria apaziguá-la, sem saber como. Ia lançar-lhe a mão à cara para lhe fazer uma festa, mas a mão desviou-se por razões desconhecidas e acabou junto à perna da Bibi, a levantar-lhe a saia e a pedir:
- Deixa-me lá ver.
A Bibi não perdeu tempo a defender-se. Deu-lhe uma palmada na mão, um empurrão que o fez cair e foi-se embora a correr.
Ao abrir a mão que errara, Luisinho encontra lá dentro uma ameixa. Com a força, esmagara-a de tal modo que o sumo escorria por entre os dedos.
Luisinho lambeu a mão, não lhe restava mais nada.
*
Torturado pela fome, Luisinho acorda a meio da noite de um sonho de compotas sobre fatias de pão caseiro. Sem acender a luz, silencioso desce a escada em direcção ao frigorífico. Ele conhecia de cor o interior do frigorífico, a arrumação que a mãe lhe dava, todo o seu conteúdo. Em cima, na porta, manteigas, margarinas; em baixo, o jarro do leite; os legumes organizados nas gavetas, os restos de jantares e almoços hierarquicamente sobrepostos por grau de antiguidade. Muito contra o seu hábito, Luisinho sucumbiu à precipitação. Agarrou no que lhe pareceu maior, sem se preocupar em saber o que era. E ficou no escuro, apenas iluminado pela fraca luz do frigorífico, a escutar os barulhos da casa, segurando pela perna um frango inteiro, assado. É que lhe parecera ouvir a mãe a descer as escadas. Ele bem suspende a respiração, mas o coração bate-lhe tão depressa que não o deixa ouvir. Fecha devagarinho a porta do frigorífico sem largar o frango e dá dois passos, mas sem direcção determinada, posto que não sabe o que fazer. A sua primeira ideia é ir para a sala, onde há mais luz, e dar ali mesmo cabo do frango. Mas a porta da cozinha fechara-se e Luisinho só a encontra no final de muita topada por armários e esquinas de mesas e caneladas em cadeiras e banquinhos. A mãe era grande apreciadora da profusão dos móveis, mesmo na cozinha.
Luisinho está no sopé das escadas, o gordo frango assado preso pela perna, a olhar para cima. Agora é que ouviu mesmo a mãe acender a luz da mesinha-de-cabeceira, vestir o roupão, tossicar. O pai acordou e perguntou-lhe se não conseguia dormir. Luisinho tremeu à voz serena da mãe:
-Pareceu-me ouvir barulho lá em baixo.
Paralisado, sózinho no escuro, o menino teve o impulso inútil de esconder o frango atrás das costas, lambuzando o belo roupão de seda que o tio lhe dera. Mas quando viu a figura da mãe aparecer no topo das escadas, deitou a correr pela sala, em direcção à porta da rua. O pai fechava-a sempre com as duas voltas da chave e punha-lhe, por maior garantia, uma corrente de segurança. Era o único a fazê-lo entre os vizinhos, gostava de citar um provérbio que Luisinho nunca conseguia reproduzir e que tinha a ver com barbas de molho e trancas à porta.
A mãe vinha a meio das escadas e viu o rapazinho colado à parede. Não distinguiu o que ele trazia na mão, mas percebeu imediatamente que surpreendera uma actividade ilícita.
- Luisinho? - chamou ela - O que é que o menino anda a fazer?
O Luisinho atravessou a sala correndo, passou em velocidade o guarda-vento que dava para a copa e procurou uma saída. E a única saída era a janela da despensa. Luisinho empurrou a porta e entrou, naturalmente sem o costumado prazer, no quartinho onde se amontoavam as provisões. Às vezes, quando se sentia mais triste, pedia à mãe para lá ir com ela, só olhar e cheirar. E contemplava com saudade as prateleiras dos açúcares, os ovos frescos na cestinha, os belos frascos do feijão e do grão. Agora, que estava com pressa, subiu para o banquinho, foi direito à janela pequena e abriu-a. Passou, em primeiro lugar e para maior segurança, o braço que continha o frango assado para o lado de fora, depois o outro braço, depois içou o peito e muito em breve percebeu que ficara entalado. O rabo do Luisinho não cabia na janela.
Foi mortificado que ouviu a mãe abrir atrás dele a porta da despensa. Esperou que ela dissesse alguma coisa, enquanto tentava desentalar a barriga o suficiente para se deixar escorregar para dentro e receber a censura com alguma dignidade. Mas ela não dizia nada e ele não estranhou. Imaginou o que ela via, o banquinho tombado, as pernas dele bamboleando sem apoio, o corpo disforme no roupão de seda azul, cortado ao meio pela moldura da janela. E imaginou o que ela imaginava e não via: o frango enxovalhado, preso pela perna, a apanhar ar na mão direita de Luisinho, que o empunhava como a bandeira da autêntica desgraça. O meio corpo embaraçado, o peso da culpa de Luisinho, era isto que ela via.
A mãe deu-se tempo de fechar a porta da despensa e ir calmamente de roda ver o espectáculo pelo lado de fora. Nessa altura já o frango se decepara pela perna, deixando o Luisinho na posse de uma única coxa, perdido o resto no canteiro dos lírios, já então provável pasto de formigas e bichos sem valia. A mãe postou-se em frente da parte superior de Luisinho. Ele sabia que o que ela dissesse lhe havia de ficar para a vida toda.
- Está a ver, meu filho querido, - disse a mãe - se o menino fosse mais magrinho, tinha passado na janela.
E afastou-se pelo jardim, sacudida de riso, do riso imoral que o Luisinho não lhe pôde nunca desculpar.