AIRBNB & NUVENS - uma rádio novela
Teatro Nacional de S. João
texto: Luísa Costa Gomes
versão cénica e encenação: Manuel Tur
objecto cénico Pedro Tudela espaço cénico Ana Gormicho desenho de som e sonoplastia Joel Azevedo jingle
Tiago Simães desenho de luz Cárin Geada figurinos Anita Gonçalves reflexão crítica e documental Gil Fesch assistência de encenação Maria Inês Peixoto direção técnica Zé Diogo Cunha produção administrativa e executiva Mafalda Bastos, Ludovica Daddi
interpretação Diana Sá, Eduardo Breda, João Castro, Pedro Almendra, Teresa Arcanjo vozes
Alexandrino Fortes, António Parra, Emília Silvestre, Joana Mesquita, Luís Araújo, Mário Santos, Pedro Manana, Raquel Rosmaninho, Tiago Simães
coprodução A Turma, Teatro Virgínia, Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, Teatro Nacional São João
dur. aprox. 1:15 M/12 anos
Saber mais em https://www.tnsj.pt/pt/espetaculos/5984/airbnb-nuvens-uma-radio-novela
Teatro Nacional de S. João
texto: Luísa Costa Gomes
versão cénica e encenação: Manuel Tur
objecto cénico Pedro Tudela espaço cénico Ana Gormicho desenho de som e sonoplastia Joel Azevedo jingle
Tiago Simães desenho de luz Cárin Geada figurinos Anita Gonçalves reflexão crítica e documental Gil Fesch assistência de encenação Maria Inês Peixoto direção técnica Zé Diogo Cunha produção administrativa e executiva Mafalda Bastos, Ludovica Daddi
interpretação Diana Sá, Eduardo Breda, João Castro, Pedro Almendra, Teresa Arcanjo vozes
Alexandrino Fortes, António Parra, Emília Silvestre, Joana Mesquita, Luís Araújo, Mário Santos, Pedro Manana, Raquel Rosmaninho, Tiago Simães
coprodução A Turma, Teatro Virgínia, Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, Teatro Nacional São João
dur. aprox. 1:15 M/12 anos
Saber mais em https://www.tnsj.pt/pt/espetaculos/5984/airbnb-nuvens-uma-radio-novela
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PREFÁCIO
Escrevo estas palavras no dealbar de uma nova era. Que era será, não sei dizer. Mas o espírito da época que esta comédia quis parodiar is no more. Escrevi Airbnb&Nuvens para celebrar o país renascido das cinzas da troika. Diria que se tratou de um alegre leilão, vindo da necessidade, mas também de uma certa nonchalance em relação aos valores antigos do decoro e recato dos nossos interiores. Na glória das vendas por grosso e a retalho de recursos e património, nos alugueres de tudo, incluindo as camas em que dormíamos, a nova ordem acabou por nos obrigar também, algumas vezes, a recuperar as que tínhamos remotamente abandonado. E aquilo que fora paradigma aberrante para os anos setenta do século passado, uma ideia global não-operária de trocas e baldrocas entre particulares, foi até ao início de 2020 uma realidade cómoda, conveniente, e depois, quando começou a resultar em euros, eufórica, triunfal. Agora, de um dia para o outro, reclusos, órfãos dos navios de cruzeiro, os airnbn de Lady Bradbury às moscas, aproveitam para arejar. O país, ameaçado, é de novo uma “comunidade”.
A peça é um palimpsesto. Arqueologicamente, a camada mais antiga é muito antiga, composta a partir das ruínas de projectos imaginados nos idos de noventa, inseridos, reconfigurados e rescritos em 2015 na intriga do elevador. Naquele tempo, vivíamos o regime do terror da dívida e estávamos bastante empenhorados. O mote era a fatalidade do empreendedorismo para os pobres e do conluio com o Estado para as empresas com poder de alavanca. Em 2019, a realidade objectiva das penhoras não melhorara muito, em alguns casos até se agravara (sobretudo em questões de dívidas pequenas no crédito ao consumo), mas não estava já no centro do pesadelo. O centro era uma almofada de nuvens e o airbnb.
Quando o encenador Manuel Tur me propôs escrever uma rádio-novela, veio ao encontro do meu interesse de sempre pela rádio e pelo potencial comédico da novela radiofónica. O que se perde com a ausência que promove a fantasia, a identificação projectiva e o desvario amoroso, ganha-se na rádio-ao-vivo em sinestesias e confusão eidética, com actores que dizem que estão a fazer o que nós vemos que realmente não estão. Nisto, não é mais do que o teatro por antonomásia – obrigar a ver o que lá está como se não estivesse, obnubilando aquelas presenças para dar a ver o que lá não está, criando uma alucinação audiovisual colectiva.
Aquilo que procurei no texto foi a especificidade da escrita para teatro-de-ouvido, diferente da rádio-novela sentimental e do teatro radiofónico para palco. No entanto, a dinâmica do espectáculo segue a do teatro radiofónico ao vivo na tradição da comédia britânica a partir dos Goons, que influenciaram Spike Milligan, que levou aos Monty Pyhton e a toda a comédia contemporânea. Foi a esta tradição que recorri explicitamente, sem a desvairada e disparatada verve – quem me la dera! – dessa correria sem rei nem roque dos melhores programas dos Goons. Aqui há pelo menos três intrigas definidas e uma suspeita generalizada; algumas vozes pertencem reconhecivelmente a personagens, outras são as tais bocas que mandam bocas. Há enredos que aparecem e desaparecem, como o thriller que cria no início um certo ambiente de horror e é relembrado com apontamentos de vez em quando, há uma espécie de conversation piece sobre protocolos de hospitalidade e as idiossincrasias de uma tal Lady Bradbury ou Burberry. O mais carregado dos enredos é composto de fragmentos de um vaudeville passado num prédio de classe (que já foi) média. A intriga à volta da compra do elevador inteligente gostava de parodiar o pânico do desamparo e da indigência (a horda) e a ambição da mobilidade global ascendente. Neste fio de enredo, o condomínio, muito pressionado pelo representante claustrófobo de uma marca de elevadores, decidiu substituir os dois velhos por outros de última geração. Já se colocou o primeiro elevador novo, que tem problemas de afinação e encrava bastante. Mas o negócio está feito e é preciso honrá-lo. O condomínio está falido e todos os condóminos têm ou penhoras, ou processos de falência, ou salários congelados, ou estão desempregados, ou têm multas gigantescas para pagar. Ninguém quer e ninguém precisa de um elevador novo, ninguém o pode pagar. Mas quem não pode pagar é justamente quem é mais vulnerável a novas dívidas. Os condóminos pagam o que não têm para conseguirem o que não querem. Obrigados à sobrevivência e ao empreendedorismo sonham com a libertação da dívida e novas formas de vida sem penhoras. Desejam passeios de trotineta com os turistas que vieram por aí abaixo, para desenfastiar do pesadelo colectivo que é a horda dos refugiados que vem por aí acima. O meu mais honesto é que à sua estreia Airbnb&Nuvens se não tenha já volvido em peça de museu, falando de um tempo em que as galinhas tinham dentes, havia turistas e euros em barda, tempo para sempre desaparecido nas horrorosas brumas do tempo novo.
Luísa Costa Gomes
11 de Maio de 2020
Escrevo estas palavras no dealbar de uma nova era. Que era será, não sei dizer. Mas o espírito da época que esta comédia quis parodiar is no more. Escrevi Airbnb&Nuvens para celebrar o país renascido das cinzas da troika. Diria que se tratou de um alegre leilão, vindo da necessidade, mas também de uma certa nonchalance em relação aos valores antigos do decoro e recato dos nossos interiores. Na glória das vendas por grosso e a retalho de recursos e património, nos alugueres de tudo, incluindo as camas em que dormíamos, a nova ordem acabou por nos obrigar também, algumas vezes, a recuperar as que tínhamos remotamente abandonado. E aquilo que fora paradigma aberrante para os anos setenta do século passado, uma ideia global não-operária de trocas e baldrocas entre particulares, foi até ao início de 2020 uma realidade cómoda, conveniente, e depois, quando começou a resultar em euros, eufórica, triunfal. Agora, de um dia para o outro, reclusos, órfãos dos navios de cruzeiro, os airnbn de Lady Bradbury às moscas, aproveitam para arejar. O país, ameaçado, é de novo uma “comunidade”.
A peça é um palimpsesto. Arqueologicamente, a camada mais antiga é muito antiga, composta a partir das ruínas de projectos imaginados nos idos de noventa, inseridos, reconfigurados e rescritos em 2015 na intriga do elevador. Naquele tempo, vivíamos o regime do terror da dívida e estávamos bastante empenhorados. O mote era a fatalidade do empreendedorismo para os pobres e do conluio com o Estado para as empresas com poder de alavanca. Em 2019, a realidade objectiva das penhoras não melhorara muito, em alguns casos até se agravara (sobretudo em questões de dívidas pequenas no crédito ao consumo), mas não estava já no centro do pesadelo. O centro era uma almofada de nuvens e o airbnb.
Quando o encenador Manuel Tur me propôs escrever uma rádio-novela, veio ao encontro do meu interesse de sempre pela rádio e pelo potencial comédico da novela radiofónica. O que se perde com a ausência que promove a fantasia, a identificação projectiva e o desvario amoroso, ganha-se na rádio-ao-vivo em sinestesias e confusão eidética, com actores que dizem que estão a fazer o que nós vemos que realmente não estão. Nisto, não é mais do que o teatro por antonomásia – obrigar a ver o que lá está como se não estivesse, obnubilando aquelas presenças para dar a ver o que lá não está, criando uma alucinação audiovisual colectiva.
Aquilo que procurei no texto foi a especificidade da escrita para teatro-de-ouvido, diferente da rádio-novela sentimental e do teatro radiofónico para palco. No entanto, a dinâmica do espectáculo segue a do teatro radiofónico ao vivo na tradição da comédia britânica a partir dos Goons, que influenciaram Spike Milligan, que levou aos Monty Pyhton e a toda a comédia contemporânea. Foi a esta tradição que recorri explicitamente, sem a desvairada e disparatada verve – quem me la dera! – dessa correria sem rei nem roque dos melhores programas dos Goons. Aqui há pelo menos três intrigas definidas e uma suspeita generalizada; algumas vozes pertencem reconhecivelmente a personagens, outras são as tais bocas que mandam bocas. Há enredos que aparecem e desaparecem, como o thriller que cria no início um certo ambiente de horror e é relembrado com apontamentos de vez em quando, há uma espécie de conversation piece sobre protocolos de hospitalidade e as idiossincrasias de uma tal Lady Bradbury ou Burberry. O mais carregado dos enredos é composto de fragmentos de um vaudeville passado num prédio de classe (que já foi) média. A intriga à volta da compra do elevador inteligente gostava de parodiar o pânico do desamparo e da indigência (a horda) e a ambição da mobilidade global ascendente. Neste fio de enredo, o condomínio, muito pressionado pelo representante claustrófobo de uma marca de elevadores, decidiu substituir os dois velhos por outros de última geração. Já se colocou o primeiro elevador novo, que tem problemas de afinação e encrava bastante. Mas o negócio está feito e é preciso honrá-lo. O condomínio está falido e todos os condóminos têm ou penhoras, ou processos de falência, ou salários congelados, ou estão desempregados, ou têm multas gigantescas para pagar. Ninguém quer e ninguém precisa de um elevador novo, ninguém o pode pagar. Mas quem não pode pagar é justamente quem é mais vulnerável a novas dívidas. Os condóminos pagam o que não têm para conseguirem o que não querem. Obrigados à sobrevivência e ao empreendedorismo sonham com a libertação da dívida e novas formas de vida sem penhoras. Desejam passeios de trotineta com os turistas que vieram por aí abaixo, para desenfastiar do pesadelo colectivo que é a horda dos refugiados que vem por aí acima. O meu mais honesto é que à sua estreia Airbnb&Nuvens se não tenha já volvido em peça de museu, falando de um tempo em que as galinhas tinham dentes, havia turistas e euros em barda, tempo para sempre desaparecido nas horrorosas brumas do tempo novo.
Luísa Costa Gomes
11 de Maio de 2020