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Arnheim & Desirée, romance, Difel, 1983
"Era uma vez uma história que tinha uma grande vontade de ser contada. Sentava-se lá no céu das histórias e imaginava essa possibilidade, rebolava-se de impaciência, brilhavam-lhe os olhinhos.
Era uma história que não fazia muito sentido. As personagens, por exemplo, morriam num capítulo e renasciam no outro, não diziam coisa com coisa. Confundia o que as personagens pensavam com o que faziam realmente; evoluíam umas vagas mulheres e um homem de muitas faces e a gente perdia-se.
Quem escrevia lutara para a tornar numa história como as outras, dar-lhe uma certa moralidade, um fundo social até, ainda que implícito, mas a história sacudia-se e eesbracejava, e contava-se depressa, contradizendo-se, omitindo pormenores fundamentais como quem, e onde e como, e sobretudo, hã?, a que propósito? E quanto mais quem escrevia lutava pela organização e pela boa ordem simbólica, mais a história dava de ombros, falava alto e assim se impunha.
Até que a certa altura quem escrevia deu uma forte palmada na testa e disse: espera lá! Mas eu já conheço esta história! Até me estou a lembrar do que vai acontecer!
E ficou muitíssimo satisfeita. As pessoas só gostam das histórias que já conhecem, como as crianças que pedem, para ajudar à sopa, que lhes contem aquela do cão e do cordeirinho, ou a outra da menina e do lobo.
Amar é reconhecer no desconhecido o familiar, antecipar sorrindo a identificação do primeiro prazer, no que há-de-vir; e do que as pessoas gostam mais é de que lhes contem histórias, o que maravilhosamente completa o gosto maior doutras pessoas que é: ah!, contar histórias. Melhor: ouvir-se contar histórias, quando nascem, desse lugar sussurrado, em que contar e ouvir são o mesmo."