O conto faz parte de uma colecção que comecei há dois anos e a que se têm juntado pouco a pouco novos textos. Desta colecção com o título provisório Banhos Célebres e que se liga sempre à água em todas as suas formas, está um conto publicado no Jornal de Letras de Agosto de 2018 (ainda apenas na sua “forma tentada”) e outro na edição 65 da Revista Egoísta.
Banhos Célebres II
E chegamos ao presente. Do medo da viagem solitária, do atrevimento dela a que por timidez não se atreve a chamar atrevimento, mas chama-lhe pausa, férias, da fantasia da ilha remota deserta amena, dos seus merecimentos dela, contas e balanços, chegamos ao agora. Tudo na mala? Sozinha, diz à sua volta que precisa de estar sozinha, criando uma zona tampão. E é seguro, o sítio? Nem o deixa acabar, está decidido. No facebook, likes, invejas, emoções, sorrisos rasgados. Diverte-te! E à chegada a rede do telemóvel não dá, o tablet não carrega, o computador não regula, a ilha é tudo menos livresca, quando quase se conforma cai-lhe um coco na cabeça e ela chora. Mas estou a contar tudo à pressa, como a criança que grita, excitada pela selvajaria da coisa, o crocodilo comeu a cabeça do cão, ó mãe.
Agora que a história se sabe, posso calmamente contá-la. Vamos por banhos. Tira uma selfie dentro de água que está a vinte e seis graus desde que o mundo é mundo. Ela, Mónica, está mais lá do que cá, lá de onde veio, e embora amigos e família se espalhem pelo globo terrestre numa pasta homogénea, pensa neles como estando todos no mesmo lugar, lá, de onde ela lhes falava e ainda fala, esteve e partes dela ainda estão, e a novidade seja este banho de mar subtropical, vinte e duas horas de voo depois. Não chega para mudar o status, veremos se chega para mais alguma coisa do que uma parca selfie, de tacha arreganhada, o colo ainda cor de banha dos frios de onde veio. Vários instantâneos do restaurante do não excessivamente estrelado resort, e da varanda da cabana sobre a praia, e do coqueiro, que na foto não se mostra naquela sua conversação às brisas de leste, mormente assentindo, oscilando a larga palma esguedelhada. Depois ainda carregou uma foto do cocktail de rum, e a sua expressão facial folclórica, mas enjoou o cocktail e a foto respectiva. No restaurante começam os emperros da rede, ela percebe que a alegre selfie ainda está no mesmo sítio, com a rodela a girar no sentido dos ponteiros do relógio. Portanto, o tempo não pára, não deixa de passar. Simplesmente, nada acontece, a foto não sai, murchou no telemóvel. Os aparelhos da comunicação não comunicam entre si. A sala aberta sobre guarda-sóis e espreguiçadeiras está vazia e mesmo assim ela acanha-se de mudar de lugar e tentar a rede noutras paragens. As fotos por enviar enchem-na de uma inquietação miúda, o cocktail fica a trabalhar no estômago e ela não consegue desligar. Lavando os pés numa torneira exterior, ali de propósito para remover areias, ansiou dormir com uma concretude tal que há muito nada se lhe comparava. Dormir, dormir! Mas o lá de onde viera pairava sobre ela, o sono era forçado e não lhe dava trégua.
A viagem fora boa, com os contratempos normais das viagens, mas não houve nem excesso de bagagem, nem extravios dela, e quando dera por si no avião estava agarrada ao tablet como a tábua de náufrago. Os outros veraneantes pareciam igualmente metidos com eles, atendo-se aos telemóveis ou trabalhando para o torcicolo, cabeça para trás, dormitando. A via para a ilha é sinuosa, é da natureza da ilha não ter voos directos e os voos indirectos não estarem coordenados. De maneira que se corre de terminal em terminal, atravessando quilómetros de uma paisagem desumana, feita para acentuar o transitório do trânsito; e corre-se na ansiedade de poder vir a ser abandonado em terra com uma mochila em que se arrumou com amor toda a nossa vida móvel, para depois se esperar horas compridas em cadeiras que mordem e deslizam e escorregam e se intrometem no entrecosto. Consideremos a mochila: ali onde a vedes demorou uma semana ou mais a sonhar, a imaginar, a pesar prós, sendo o pano de fundo a colecção de imagens do porvir, o designado destino. Se haverá mosquitos, se serão dos que pregam doenças, se à noite estará fresco, se o ataque virá da garganta, será dor de dentes, diarreia? E embora a internet providenciasse amplos dados, a dúvida mantinha-se, a suspeita sobre um sítio adorável sem defeito, porque no frio é impossível imaginar o quente, a não ser como fantasia lírica, como sentimento, a não ser como temperatura abstracta, vinte e nove graus, com oitenta por cento de humidade, não se sabe bem o que é, só experimentando. Essas imagens bem calibradas não afectam a pele como a doçura do ar, a justeza das brisas, e não dão ao interior da cabeça aquele oxigenado bonheur do benemérito local. Mas ainda falta, ainda demora.
Perto, um ilhéu de meia idade, de panamá e barbicha, ensina duas ilheias a nadar. Conversam no seu cantar entremeado de risos e Mónica nada como uma sereia à volta deles, até conseguir um elogio discreto ao seu crawl. Está a importunar os nativos com quem, tal a Natureza intocável, não é da natureza do resort interferir. Afasta-se na água transparente, na praia minimal, azul turquesa e branca, com sua única nuvem, colada ao alto no céu sem limite. Este banho, com toda a sua irrealidade, serviu de ambientador, e de tal modo o fez que ela se convenceu de que estava bem, mesmo sem foto e sem mensagens, pois era para isso mesmo que viera. Dormiu à sombra, na rede, oscilando. E de novo na cadeira de baloiço, na varanda, de frente para o horizonte. Depois, na cama larga, de dossel, adejante de cortinas leves, pensadas para esvoaçar. Durou dois dias inteiros a lua-de-mel com a luz, o ar e a brisa, o cheiro que não sabia definir, seria coralino?, de um mar sem o carácter atlântico, a água e o areal fino de uma alvura que não feria os olhos. Depois veio uma estranheza que via o lugar do presente como outro lugar. Chegou a meio do duche, quando se fixou no quadro da janela, avistando o mar, e cabaninhas de madeira plantadas a intervalos regulares pintadas de ocre, verde água e amarelo suave. Era a ideia do paraíso, não o próprio paraíso. Como é que se vive numa ideia? Senta-se nas cadeiras de baloiço, deita-se nas camas de rede, entrega-se ingénua ao oscilar?
Tudo aparecia feito por milagre. Quando voltava do banho de mar pelo meio dia, descansada e alumbrada, mãos invisíveis fizeram a cama, prenderam as cortinas, arrumaram as toalhas e a fruteira está novamente intacta, reposta a exacta fruta que no dia anterior apodrecera ou fora comida, refrescado o cheiro floral do insecticida, o que na Mónica se transforma em ganas de destruir e de desarrumar, pegar na fruteira e atirá-la de sopetão pela janela como pasto dos insectos que o insecticida sugere e o cheiro do insecticida dissimula, uma fúria de desperdiçar e fazer apodrecer, para que se veja o tempo a passar numa única direcção como ele deve.
É neste contexto que chega o casal. Ele, alto, ela pequena; ele, reservado, silencioso, ela, alta voz, brusquidão, implicativa. Vinham passar uma décima primeira ou décima segunda lua-de-mel, já lhes tinham perdido a conta. Discutiam sobre esse elenco de programas românticos, ela contava onze sem a primeira, que fora a única realmente real e ele contava doze com essa, defendendo com pragmatismo que tudo o que acontecia era real. Desde que houvesse deslocação real, viagem comprada, mala feita, era real. Aquela ilha, por exemplo, já era uma revisitação, da primeira vez houvera um desentendimento persistente entre eles, tentavam agora outra vez. Ainda eram novos, tinham muito para andar. Ele fixou-se na Mónica como uma lapa logo à chegada. Parecia atingido por algum raio das tempestades tropicais e inseriu na atmosfera lânguida uma electricidade que a incomodava, atirando-lhe de longe os olhares devidos à requentada noiva. Rondava-a na praia pequena, onde aparecia sozinho, sempre que ela descia para se banhar. Confirmou a paixão repentina logo que apanhou uma aberta da mulher para falar à Mónica, num desvão da cabana que os escondia dos olhares visíveis. Dos invisíveis, pois que devia havê-los, nunca se soube. Era o coup de foudre mais inacreditável, sobretudo para ele, que tinha perdido toda a esperança de alguma vez voltar a apaixonar-se. Vivia no deserto, sem amor. Mónica encolhia-se, desconfortável, e afastou-se depressa, com a cara a arder. Assustou-se com um restolhar suspeito nas ervas, havia lagartos do tamanho de gatos. Inofensivos, aterradores. Foi lavar a cara e as mãos que ele tocara. Não lhe chegou, meteu-se no duche; olhando pela janela da estranheza, sentiu alguma atracção pelo homem casado. Ela vinha de uma situação semelhante, sofrendo de coup de foudre como uma martelada na moleirinha, por um homem que não era livre, embora parecesse. Havia falta de homens livres, dizia-se à boca pequena entre as amigas. E os que havia não valiam o esforço. A opinião dominante era que não devia aceitar uma situação que a menorizava. Tu mereces mais, Mó-mó. Ele que deixe a mulher, ora essa. Mas ele é que não deixava.
Nem no dia seguinte, não, no próprio dia, à tardinha, saía para a happy hour num vestido leve, salta-lhe o homem ao caminho, abraça-se a ela aos beijos, deita-a na areia fresca da sombra da cabana como quem deposita um sistema de equipamento frágil e precioso, e sussurrando-lhe um chorrilho de encómios, uma torrente de lisonjas, enquanto lhe faz festas e a manuseia sempre com pedidos de desculpa, arrasta-a com cuidado para baixo da cabana, e já estão em pleno acto quando se ouve um chinelar no caminho das pedras; ele tapa-lhe a boca ao de leve pedindo silêncio, com olhares implorativos e cheios de ternura, pela frincha debaixo da cabana vêem os pés de unhas vermelhas livres nas havaianas amarelas, ouvem a pergunta reflexiva:
- Mas onde é que se meteu aquele cabrão?
Jantavam cedo. Voltam os chinelos ao lugar de origem, ele deixa-a acabar primeiro, depois ele, mas insatisfeito da sua prestação, arrepelando-se da sua inexperiência, aguilhoado pelo medo de a perder. Deslizou pela areia, beijou-lhe devotamente o peito do pé antes de ir a toda a brida sentar-se à luz das velas com a mulher. Mónica desconfiou que, pela urgência do desejo e pelo protocolo do romance, a lua-de-mel dos outros devia ser o pacote quatro noites. A precipitação da coisa fê-la andar ao serão atordoada, sentindo como nunca a falta de alguém com quem falar. Alguém que lhe desse sentido ao que acontecera e no diálogo propusesse uma interpretação, um diagnóstico e deliberassem juntos um curso de acção a seguir. Religou as máquinas, que se quedaram isoladas umas das outras e da suposta rede, anunciada como funcional na recepção deserta. Essas pobres máquinas bem se procuravam no ar, com as antenas como bicos de passarinho rodando e rodando, piando pelo alimento comum. Pensou ir à recepção para se queixar, mas nunca vira ninguém na recepção. E afinal o ar era tão suave, a rede balançava, estrelas perfuravam o abóbada celeste, ela sentia-se toda pele tocada e beijada, sem outro interior que não fosse feito de calma e gratidão.
No dia seguinte ele apareceu de duas em duas horas, como a toma de algum medicamento. Era destemido e inventivo nos esconderijos, incluindo esconsos, covas, cabanas desabitadas, casas de banho, casas de arrumos, clareiras no mato, acabando por se fixar na casa-abrigo das embarcações, antes do renque de espreguiçadeiras onde a mulher vinha espraiar-se ao sol dormindo todo o dia. Podiam vigiar as andanças dela pelas frinchas das paredes de tábua e ao fim de pouco tempo estavam como em sua casa, confortáveis, de rotinas silenciosas e bem combinadas, desenvolvendo um código de gestos e expressões faciais que preenchiam todas as necessidades do momento. Após comércio carnal especialmente intenso Mónica saía pela porta da casa-abrigo ainda a tremer e, fingindo chegar à praia naquele momento com um olhar em panorâmica sobre o mar, passava pela mulher que cumprimentava de cabeça, e ia para o extremo do areal fazer horas para voltar aos braços dele. Se as saudades apertavam, ele arranjava uma desculpa, aparecia como um selvagem pelo lado de terra, e iam enlaçados à procura de uma clareira. Nesta, em particular, a vegetação amena de árvores finas como bétulas, troncos claros, ramos refolhudos, formava uma abóbada de sombra, como uma capela primitiva. Aí se entretinham com doces nadas, seguros um do outro, nos mínimos da linguagem articulada. Por vezes conversavam em frases mais ou menos completas, sobretudo da mulher, sobre quem ele fazia confidências nem sempre de menoscabo. O facto é que era uma grande mulher. Tinha uma carreira brilhante, precisava de descansar. Inculcou-lhe um grande respeito por ela, que acabou entumescido e florescendo na vontade de conhecê-la em primeira mão.
Pelo segundo dia eram amantes de pleno direito, com a rotina de um desejo caótico disciplinado pela existência da mulher: tiveram um primeiro desentendimento, uma cena de ciúmes. Tudo se resolvia em menos de um fósforo, como se a pele da ferida cicatrizasse à medida que abria . Ele tinha uma maneira de se abraçar a ela como um sargaço que lhe ficasse preso nas pernas, e o que podia ser repulsivo vestia o ar de fatalidade do destino. O seu encontro era de harmonia, vinha desenhado por um universo benigno e condescendente. O ar morno queria vê-los juntos, rodopiavam brisas que os traziam eleitos.
Levantaram-se da areia uma noite abençoada, depois de uma tentativa mal sucedida de amor de praia – vivamente habitada àquela hora por caranguejos e pulgões do mar – e decidiram tomar banho. A lua convidava, o ar e a brisa morna pediam água. Entramos, ao entrar no mar, e mormente em noite de lua cheia, numa região difícil de descrever. Parece que se cala a voz que sempre diz coisas e emite opiniões em todas as latitudes. E não se cala por submissão, ou por uma incapacidade recém-descoberta, ou por falta de vontade, não se rende, não se anula, apenas se desvanece. Nem se toma consciência do seu desaparecimento, só quando muito depois tenta começar a falar é que Mónica repara que não falou nem precisou de falar. O corpo põe-se a marulhar como um cisne, com as patas negras da propulsão sinistra, lembra-se de que foi larva, verme, peixe, e vai para trás da língua. Foram nadando separados, cada um no seu envelope mortal, até se perderem quase de vista; quando se reencontraram, para lá da rebentação inofensiva, e entraram um no outro, elevou-se ali perto um bom metro acima das águas uma raia gigante que deu pesadamente às abas duas vezes e mergulhou de cauda. Eles, vendo o monstro voar contra natura, branco e cintilante, acreditando que voava para eles, pararam um momento; reactivada a chama, dolorosamente terminada, não fez mais que prenunciar um novo encontro, este sim, sério, demorado, dentro do barco, em terra firme, na casa-abrigo.
Nessa noite, houvera um primeiro jantar a três no restaurante. A mulher, tendo dormido bem os dois primeiros dias, acordara com vontade de fraternizar. Vendo a Mónica ao canto da sala de jantar, única, radiante no seu vestido leve, olhando para nada como se boiasse, fez-lhe uma pergunta de circunstância a que ela respondeu com a amabilidade dos traidores solitários. Disto resultou um impulso que se traduziu num convite para se juntar a ela e ao marido, cocktails deslizando para entrada, prato, sobremesa. Ele portara-se como um cavalheiro, empernando com ela discretamente por baixo da mesa, massajando-lhe a coxa exposta sempre que a mulher se distraía ou ausentava para retocar a maquilhagem; neste último caso, contando com a dilação dos retoques, ele aventurou-se a correr a mão até à virilha e já estavam ambos meios loucos e prestes a correr para a casa-abrigo quando a mulher regressou e eles desceram à terra e à sala-de-jantar e retomaram uma conversa de beberete, tão sofisticada que se podia fazer de barrete de berloque e a dormir em pé, sobre Arte, por exemplo, ou outra coisa qualquer. Na verdade, eles conversavam intimamente um com o outro sobre a melhor maneira de se escaparem, um pensamento com a agudeza de um espigão. Sorriam ao que a mulher dizia, imaginando que se ela dormisse bem, teriam a noite toda por sua conta. A grande mulher discorria sem funil, não estava habituada a beber. O marido enchia-lhe o copo com a fraternidade dos bons convivas, e ela foi rareando as frases, até anunciar que estava bêbeda e que ia para a sua caminha. Sua, nossa, deles. E eles ficaram descansados, ainda não eram dez horas, tinham a noite até ao raiar do sol. Depois, era questão de fazer ali uma patrulha à cabana onde a mulher dormia, e ir gerindo o tempo de acordo com o sono dela. Veio a noite, veio a lua, veio a areia tenra, o mar, a raia, sexo dentro e fora de água, juras de amor à estrela de alba. Da conversa com a mulher, Mónica retirara uma decepção que teimava em infiltrar-se: ela não parecia, pelo menos nesta sua versão de férias, a figura enorme que o marido dera a entender. Tinha uma maneira de construir as frases, a voz rouca dos cigarros e uma tosse catarral considerada sexy em certos círculos; tinha uma maneira de olhar para ele, uma maneira de pegar no garfo, as unhas longas aduncas ornamentadas de figuras díspares, uma maneira de despejar o copo, e não era simpática, não queria seduzir. Mónica via nela uma coisa brutalmente sexual, um desejo cru, que metia a pata de baixo para cima dentro da camisa do marido como se aquilo fosse tudo dela. E julgava compreender agora a impossibilidade de viver nem sequer uma única lua-de-mel com tal pessoa. Queimada como um tição, ao contrário de Mónica, de uma alvura quase religiosa, a mulher incomodava-os a ambos com a musculatura aeróbica, o cabelo esticado à força, as pestanas postiças que lhe davam um ar de formiga espertalhona; visível, evidentíssima a luta contra o tempo, o massacre de um alarme vindo do futuro. Levantara-se trôpega e o marido acompanhava-a à distância de um braço, porque ela não queria ser amparada. Mudava de ideias e deitava-lhe a unha, ria-se aberta, depois empurrava-o e ria-se ele, conformado ao seu capricho. Mónica fumava, abstraída, olhando um pôr-do-sol que era longo e terminava de repente.
Chegara entretanto uma família de cinco australianos, pais e três crianças com idades a intervalos regulares, dando a ideia de uma gente bem organizada que planificava os partos a cronómetro. Com essa família veio uma inquietação de mau presságio. Onde chegavam os australianos, chegariam por maioria de razão outras nações. Os três nativos do resort apodaram-nos de “os turistas” e olhavam-nos de longe, do outro canto da sala dos bufetes. Para os amantes, os australianos, sobretudo na pessoa das suas crianças, significavam cuidados redobrados, vigilância mais que perpétua, aumentando o desejo de se abraçarem nas sombras, cada vez mais vezes, cada vez mais fortes. Passavam uma tarde o pós-coito em programação estratégica, horas, lugares, rotas de acesso, comparando notas, quando ouviram um ronco disforme, os travões e o resfolegar de um motor, e viram, gelados, de olho alerta assestado às frinchas da casa-abrigo, uma torrente de testemunhas, potenciais delatores, descer em algazarra da camioneta. Ela repôs à pressa as partes do biquíni e saiu da cabana cheia de esperança. Foi cumprimentada pelos recém-chegados, com acenos de longe, e as crianças correram para ela como para o Messias. Ele ficava preso na casa-abrigo, à espera do impossível. Mónica desenvencilhou-se das crianças nas raias da hostilidade, as mães pareciam ocupadas com meras malas, percorreu a praia depressa e sentou-se na última espreguiçadeira, o mais remota possível. Esperança e desespero, uma irritação de impotente, e ainda: o nojo das testemunhas, desses que iriam saber que eles se amavam, se encontravam às escondidas como numa farsa, a troça, o ridículo, a injustiça de serem eles os forçados a andar em bicos de pés pelos matos e clareiras, eles a quem o amor bafejara, o amor que não sabe tirar férias, enquanto a legítima se saracoteava à vista de todos em trajes menores muito pouco próprios para a meia-idade. Cheia de frio, Mónica embrulhou-se bruscamente na toalha, com repelões ao turco e tremores de fúria, tudo justificando a brisa acentuada; o coqueiro cedia ao vento, as palmas erectas, o tronco inclinado, e Mónica olhou para cima no momento em que se desprendia um coco da sua cama aérea, da sua raiz no céu. Calculou-lhe a trajectória, baixou a cabeça, abraçou as pernas, sentiu o impacto de lado, de raspão, uma dor protelada, mais imaginária do que efectiva, e rebentou num choro, diante das três ou quatro crianças pequenas de sandálias e panamá, todas lambuzadas de protector solar, que a olhavam como se tudo aquilo fosse mais uma atracção do circo. Quebrara-se a harmonia, o que fora real antes, não era agora. Já de olhos secos, recomposta, trocam-se nos limites da praia os últimos cumprimentos, com aquelas hesitações de faces que requerem beijos e mãos que avançam umas para as outras em coincidência e logo recolhidas, trapalhada que a mulher resolve antepondo-se e sobrepondo-se, pregando dois beijos fumadores na Mónica, e Mónica a olhá-lo de longe numa despedida a que ele dá as costas, seguindo curvado e insignificante, a fazer tilintar as chaves, para o carro de aluguer. Ela entra na água morna do meio-dia, desaparece tudo, esvai-se satisfeito no passado, e ela nada para longe. De si para si, presente no momento, admite ser este o melhor banho dessas férias. E agradece ao Amor que não tem cara, ao Amor que dá e tira, a graça de não ter contado, de não querer contar, de não ter de contar nada a ninguém.
In Jornal de Letras, Agosto de 2018
Agora que a história se sabe, posso calmamente contá-la. Vamos por banhos. Tira uma selfie dentro de água que está a vinte e seis graus desde que o mundo é mundo. Ela, Mónica, está mais lá do que cá, lá de onde veio, e embora amigos e família se espalhem pelo globo terrestre numa pasta homogénea, pensa neles como estando todos no mesmo lugar, lá, de onde ela lhes falava e ainda fala, esteve e partes dela ainda estão, e a novidade seja este banho de mar subtropical, vinte e duas horas de voo depois. Não chega para mudar o status, veremos se chega para mais alguma coisa do que uma parca selfie, de tacha arreganhada, o colo ainda cor de banha dos frios de onde veio. Vários instantâneos do restaurante do não excessivamente estrelado resort, e da varanda da cabana sobre a praia, e do coqueiro, que na foto não se mostra naquela sua conversação às brisas de leste, mormente assentindo, oscilando a larga palma esguedelhada. Depois ainda carregou uma foto do cocktail de rum, e a sua expressão facial folclórica, mas enjoou o cocktail e a foto respectiva. No restaurante começam os emperros da rede, ela percebe que a alegre selfie ainda está no mesmo sítio, com a rodela a girar no sentido dos ponteiros do relógio. Portanto, o tempo não pára, não deixa de passar. Simplesmente, nada acontece, a foto não sai, murchou no telemóvel. Os aparelhos da comunicação não comunicam entre si. A sala aberta sobre guarda-sóis e espreguiçadeiras está vazia e mesmo assim ela acanha-se de mudar de lugar e tentar a rede noutras paragens. As fotos por enviar enchem-na de uma inquietação miúda, o cocktail fica a trabalhar no estômago e ela não consegue desligar. Lavando os pés numa torneira exterior, ali de propósito para remover areias, ansiou dormir com uma concretude tal que há muito nada se lhe comparava. Dormir, dormir! Mas o lá de onde viera pairava sobre ela, o sono era forçado e não lhe dava trégua.
A viagem fora boa, com os contratempos normais das viagens, mas não houve nem excesso de bagagem, nem extravios dela, e quando dera por si no avião estava agarrada ao tablet como a tábua de náufrago. Os outros veraneantes pareciam igualmente metidos com eles, atendo-se aos telemóveis ou trabalhando para o torcicolo, cabeça para trás, dormitando. A via para a ilha é sinuosa, é da natureza da ilha não ter voos directos e os voos indirectos não estarem coordenados. De maneira que se corre de terminal em terminal, atravessando quilómetros de uma paisagem desumana, feita para acentuar o transitório do trânsito; e corre-se na ansiedade de poder vir a ser abandonado em terra com uma mochila em que se arrumou com amor toda a nossa vida móvel, para depois se esperar horas compridas em cadeiras que mordem e deslizam e escorregam e se intrometem no entrecosto. Consideremos a mochila: ali onde a vedes demorou uma semana ou mais a sonhar, a imaginar, a pesar prós, sendo o pano de fundo a colecção de imagens do porvir, o designado destino. Se haverá mosquitos, se serão dos que pregam doenças, se à noite estará fresco, se o ataque virá da garganta, será dor de dentes, diarreia? E embora a internet providenciasse amplos dados, a dúvida mantinha-se, a suspeita sobre um sítio adorável sem defeito, porque no frio é impossível imaginar o quente, a não ser como fantasia lírica, como sentimento, a não ser como temperatura abstracta, vinte e nove graus, com oitenta por cento de humidade, não se sabe bem o que é, só experimentando. Essas imagens bem calibradas não afectam a pele como a doçura do ar, a justeza das brisas, e não dão ao interior da cabeça aquele oxigenado bonheur do benemérito local. Mas ainda falta, ainda demora.
Perto, um ilhéu de meia idade, de panamá e barbicha, ensina duas ilheias a nadar. Conversam no seu cantar entremeado de risos e Mónica nada como uma sereia à volta deles, até conseguir um elogio discreto ao seu crawl. Está a importunar os nativos com quem, tal a Natureza intocável, não é da natureza do resort interferir. Afasta-se na água transparente, na praia minimal, azul turquesa e branca, com sua única nuvem, colada ao alto no céu sem limite. Este banho, com toda a sua irrealidade, serviu de ambientador, e de tal modo o fez que ela se convenceu de que estava bem, mesmo sem foto e sem mensagens, pois era para isso mesmo que viera. Dormiu à sombra, na rede, oscilando. E de novo na cadeira de baloiço, na varanda, de frente para o horizonte. Depois, na cama larga, de dossel, adejante de cortinas leves, pensadas para esvoaçar. Durou dois dias inteiros a lua-de-mel com a luz, o ar e a brisa, o cheiro que não sabia definir, seria coralino?, de um mar sem o carácter atlântico, a água e o areal fino de uma alvura que não feria os olhos. Depois veio uma estranheza que via o lugar do presente como outro lugar. Chegou a meio do duche, quando se fixou no quadro da janela, avistando o mar, e cabaninhas de madeira plantadas a intervalos regulares pintadas de ocre, verde água e amarelo suave. Era a ideia do paraíso, não o próprio paraíso. Como é que se vive numa ideia? Senta-se nas cadeiras de baloiço, deita-se nas camas de rede, entrega-se ingénua ao oscilar?
Tudo aparecia feito por milagre. Quando voltava do banho de mar pelo meio dia, descansada e alumbrada, mãos invisíveis fizeram a cama, prenderam as cortinas, arrumaram as toalhas e a fruteira está novamente intacta, reposta a exacta fruta que no dia anterior apodrecera ou fora comida, refrescado o cheiro floral do insecticida, o que na Mónica se transforma em ganas de destruir e de desarrumar, pegar na fruteira e atirá-la de sopetão pela janela como pasto dos insectos que o insecticida sugere e o cheiro do insecticida dissimula, uma fúria de desperdiçar e fazer apodrecer, para que se veja o tempo a passar numa única direcção como ele deve.
É neste contexto que chega o casal. Ele, alto, ela pequena; ele, reservado, silencioso, ela, alta voz, brusquidão, implicativa. Vinham passar uma décima primeira ou décima segunda lua-de-mel, já lhes tinham perdido a conta. Discutiam sobre esse elenco de programas românticos, ela contava onze sem a primeira, que fora a única realmente real e ele contava doze com essa, defendendo com pragmatismo que tudo o que acontecia era real. Desde que houvesse deslocação real, viagem comprada, mala feita, era real. Aquela ilha, por exemplo, já era uma revisitação, da primeira vez houvera um desentendimento persistente entre eles, tentavam agora outra vez. Ainda eram novos, tinham muito para andar. Ele fixou-se na Mónica como uma lapa logo à chegada. Parecia atingido por algum raio das tempestades tropicais e inseriu na atmosfera lânguida uma electricidade que a incomodava, atirando-lhe de longe os olhares devidos à requentada noiva. Rondava-a na praia pequena, onde aparecia sozinho, sempre que ela descia para se banhar. Confirmou a paixão repentina logo que apanhou uma aberta da mulher para falar à Mónica, num desvão da cabana que os escondia dos olhares visíveis. Dos invisíveis, pois que devia havê-los, nunca se soube. Era o coup de foudre mais inacreditável, sobretudo para ele, que tinha perdido toda a esperança de alguma vez voltar a apaixonar-se. Vivia no deserto, sem amor. Mónica encolhia-se, desconfortável, e afastou-se depressa, com a cara a arder. Assustou-se com um restolhar suspeito nas ervas, havia lagartos do tamanho de gatos. Inofensivos, aterradores. Foi lavar a cara e as mãos que ele tocara. Não lhe chegou, meteu-se no duche; olhando pela janela da estranheza, sentiu alguma atracção pelo homem casado. Ela vinha de uma situação semelhante, sofrendo de coup de foudre como uma martelada na moleirinha, por um homem que não era livre, embora parecesse. Havia falta de homens livres, dizia-se à boca pequena entre as amigas. E os que havia não valiam o esforço. A opinião dominante era que não devia aceitar uma situação que a menorizava. Tu mereces mais, Mó-mó. Ele que deixe a mulher, ora essa. Mas ele é que não deixava.
Nem no dia seguinte, não, no próprio dia, à tardinha, saía para a happy hour num vestido leve, salta-lhe o homem ao caminho, abraça-se a ela aos beijos, deita-a na areia fresca da sombra da cabana como quem deposita um sistema de equipamento frágil e precioso, e sussurrando-lhe um chorrilho de encómios, uma torrente de lisonjas, enquanto lhe faz festas e a manuseia sempre com pedidos de desculpa, arrasta-a com cuidado para baixo da cabana, e já estão em pleno acto quando se ouve um chinelar no caminho das pedras; ele tapa-lhe a boca ao de leve pedindo silêncio, com olhares implorativos e cheios de ternura, pela frincha debaixo da cabana vêem os pés de unhas vermelhas livres nas havaianas amarelas, ouvem a pergunta reflexiva:
- Mas onde é que se meteu aquele cabrão?
Jantavam cedo. Voltam os chinelos ao lugar de origem, ele deixa-a acabar primeiro, depois ele, mas insatisfeito da sua prestação, arrepelando-se da sua inexperiência, aguilhoado pelo medo de a perder. Deslizou pela areia, beijou-lhe devotamente o peito do pé antes de ir a toda a brida sentar-se à luz das velas com a mulher. Mónica desconfiou que, pela urgência do desejo e pelo protocolo do romance, a lua-de-mel dos outros devia ser o pacote quatro noites. A precipitação da coisa fê-la andar ao serão atordoada, sentindo como nunca a falta de alguém com quem falar. Alguém que lhe desse sentido ao que acontecera e no diálogo propusesse uma interpretação, um diagnóstico e deliberassem juntos um curso de acção a seguir. Religou as máquinas, que se quedaram isoladas umas das outras e da suposta rede, anunciada como funcional na recepção deserta. Essas pobres máquinas bem se procuravam no ar, com as antenas como bicos de passarinho rodando e rodando, piando pelo alimento comum. Pensou ir à recepção para se queixar, mas nunca vira ninguém na recepção. E afinal o ar era tão suave, a rede balançava, estrelas perfuravam o abóbada celeste, ela sentia-se toda pele tocada e beijada, sem outro interior que não fosse feito de calma e gratidão.
No dia seguinte ele apareceu de duas em duas horas, como a toma de algum medicamento. Era destemido e inventivo nos esconderijos, incluindo esconsos, covas, cabanas desabitadas, casas de banho, casas de arrumos, clareiras no mato, acabando por se fixar na casa-abrigo das embarcações, antes do renque de espreguiçadeiras onde a mulher vinha espraiar-se ao sol dormindo todo o dia. Podiam vigiar as andanças dela pelas frinchas das paredes de tábua e ao fim de pouco tempo estavam como em sua casa, confortáveis, de rotinas silenciosas e bem combinadas, desenvolvendo um código de gestos e expressões faciais que preenchiam todas as necessidades do momento. Após comércio carnal especialmente intenso Mónica saía pela porta da casa-abrigo ainda a tremer e, fingindo chegar à praia naquele momento com um olhar em panorâmica sobre o mar, passava pela mulher que cumprimentava de cabeça, e ia para o extremo do areal fazer horas para voltar aos braços dele. Se as saudades apertavam, ele arranjava uma desculpa, aparecia como um selvagem pelo lado de terra, e iam enlaçados à procura de uma clareira. Nesta, em particular, a vegetação amena de árvores finas como bétulas, troncos claros, ramos refolhudos, formava uma abóbada de sombra, como uma capela primitiva. Aí se entretinham com doces nadas, seguros um do outro, nos mínimos da linguagem articulada. Por vezes conversavam em frases mais ou menos completas, sobretudo da mulher, sobre quem ele fazia confidências nem sempre de menoscabo. O facto é que era uma grande mulher. Tinha uma carreira brilhante, precisava de descansar. Inculcou-lhe um grande respeito por ela, que acabou entumescido e florescendo na vontade de conhecê-la em primeira mão.
Pelo segundo dia eram amantes de pleno direito, com a rotina de um desejo caótico disciplinado pela existência da mulher: tiveram um primeiro desentendimento, uma cena de ciúmes. Tudo se resolvia em menos de um fósforo, como se a pele da ferida cicatrizasse à medida que abria . Ele tinha uma maneira de se abraçar a ela como um sargaço que lhe ficasse preso nas pernas, e o que podia ser repulsivo vestia o ar de fatalidade do destino. O seu encontro era de harmonia, vinha desenhado por um universo benigno e condescendente. O ar morno queria vê-los juntos, rodopiavam brisas que os traziam eleitos.
Levantaram-se da areia uma noite abençoada, depois de uma tentativa mal sucedida de amor de praia – vivamente habitada àquela hora por caranguejos e pulgões do mar – e decidiram tomar banho. A lua convidava, o ar e a brisa morna pediam água. Entramos, ao entrar no mar, e mormente em noite de lua cheia, numa região difícil de descrever. Parece que se cala a voz que sempre diz coisas e emite opiniões em todas as latitudes. E não se cala por submissão, ou por uma incapacidade recém-descoberta, ou por falta de vontade, não se rende, não se anula, apenas se desvanece. Nem se toma consciência do seu desaparecimento, só quando muito depois tenta começar a falar é que Mónica repara que não falou nem precisou de falar. O corpo põe-se a marulhar como um cisne, com as patas negras da propulsão sinistra, lembra-se de que foi larva, verme, peixe, e vai para trás da língua. Foram nadando separados, cada um no seu envelope mortal, até se perderem quase de vista; quando se reencontraram, para lá da rebentação inofensiva, e entraram um no outro, elevou-se ali perto um bom metro acima das águas uma raia gigante que deu pesadamente às abas duas vezes e mergulhou de cauda. Eles, vendo o monstro voar contra natura, branco e cintilante, acreditando que voava para eles, pararam um momento; reactivada a chama, dolorosamente terminada, não fez mais que prenunciar um novo encontro, este sim, sério, demorado, dentro do barco, em terra firme, na casa-abrigo.
Nessa noite, houvera um primeiro jantar a três no restaurante. A mulher, tendo dormido bem os dois primeiros dias, acordara com vontade de fraternizar. Vendo a Mónica ao canto da sala de jantar, única, radiante no seu vestido leve, olhando para nada como se boiasse, fez-lhe uma pergunta de circunstância a que ela respondeu com a amabilidade dos traidores solitários. Disto resultou um impulso que se traduziu num convite para se juntar a ela e ao marido, cocktails deslizando para entrada, prato, sobremesa. Ele portara-se como um cavalheiro, empernando com ela discretamente por baixo da mesa, massajando-lhe a coxa exposta sempre que a mulher se distraía ou ausentava para retocar a maquilhagem; neste último caso, contando com a dilação dos retoques, ele aventurou-se a correr a mão até à virilha e já estavam ambos meios loucos e prestes a correr para a casa-abrigo quando a mulher regressou e eles desceram à terra e à sala-de-jantar e retomaram uma conversa de beberete, tão sofisticada que se podia fazer de barrete de berloque e a dormir em pé, sobre Arte, por exemplo, ou outra coisa qualquer. Na verdade, eles conversavam intimamente um com o outro sobre a melhor maneira de se escaparem, um pensamento com a agudeza de um espigão. Sorriam ao que a mulher dizia, imaginando que se ela dormisse bem, teriam a noite toda por sua conta. A grande mulher discorria sem funil, não estava habituada a beber. O marido enchia-lhe o copo com a fraternidade dos bons convivas, e ela foi rareando as frases, até anunciar que estava bêbeda e que ia para a sua caminha. Sua, nossa, deles. E eles ficaram descansados, ainda não eram dez horas, tinham a noite até ao raiar do sol. Depois, era questão de fazer ali uma patrulha à cabana onde a mulher dormia, e ir gerindo o tempo de acordo com o sono dela. Veio a noite, veio a lua, veio a areia tenra, o mar, a raia, sexo dentro e fora de água, juras de amor à estrela de alba. Da conversa com a mulher, Mónica retirara uma decepção que teimava em infiltrar-se: ela não parecia, pelo menos nesta sua versão de férias, a figura enorme que o marido dera a entender. Tinha uma maneira de construir as frases, a voz rouca dos cigarros e uma tosse catarral considerada sexy em certos círculos; tinha uma maneira de olhar para ele, uma maneira de pegar no garfo, as unhas longas aduncas ornamentadas de figuras díspares, uma maneira de despejar o copo, e não era simpática, não queria seduzir. Mónica via nela uma coisa brutalmente sexual, um desejo cru, que metia a pata de baixo para cima dentro da camisa do marido como se aquilo fosse tudo dela. E julgava compreender agora a impossibilidade de viver nem sequer uma única lua-de-mel com tal pessoa. Queimada como um tição, ao contrário de Mónica, de uma alvura quase religiosa, a mulher incomodava-os a ambos com a musculatura aeróbica, o cabelo esticado à força, as pestanas postiças que lhe davam um ar de formiga espertalhona; visível, evidentíssima a luta contra o tempo, o massacre de um alarme vindo do futuro. Levantara-se trôpega e o marido acompanhava-a à distância de um braço, porque ela não queria ser amparada. Mudava de ideias e deitava-lhe a unha, ria-se aberta, depois empurrava-o e ria-se ele, conformado ao seu capricho. Mónica fumava, abstraída, olhando um pôr-do-sol que era longo e terminava de repente.
Chegara entretanto uma família de cinco australianos, pais e três crianças com idades a intervalos regulares, dando a ideia de uma gente bem organizada que planificava os partos a cronómetro. Com essa família veio uma inquietação de mau presságio. Onde chegavam os australianos, chegariam por maioria de razão outras nações. Os três nativos do resort apodaram-nos de “os turistas” e olhavam-nos de longe, do outro canto da sala dos bufetes. Para os amantes, os australianos, sobretudo na pessoa das suas crianças, significavam cuidados redobrados, vigilância mais que perpétua, aumentando o desejo de se abraçarem nas sombras, cada vez mais vezes, cada vez mais fortes. Passavam uma tarde o pós-coito em programação estratégica, horas, lugares, rotas de acesso, comparando notas, quando ouviram um ronco disforme, os travões e o resfolegar de um motor, e viram, gelados, de olho alerta assestado às frinchas da casa-abrigo, uma torrente de testemunhas, potenciais delatores, descer em algazarra da camioneta. Ela repôs à pressa as partes do biquíni e saiu da cabana cheia de esperança. Foi cumprimentada pelos recém-chegados, com acenos de longe, e as crianças correram para ela como para o Messias. Ele ficava preso na casa-abrigo, à espera do impossível. Mónica desenvencilhou-se das crianças nas raias da hostilidade, as mães pareciam ocupadas com meras malas, percorreu a praia depressa e sentou-se na última espreguiçadeira, o mais remota possível. Esperança e desespero, uma irritação de impotente, e ainda: o nojo das testemunhas, desses que iriam saber que eles se amavam, se encontravam às escondidas como numa farsa, a troça, o ridículo, a injustiça de serem eles os forçados a andar em bicos de pés pelos matos e clareiras, eles a quem o amor bafejara, o amor que não sabe tirar férias, enquanto a legítima se saracoteava à vista de todos em trajes menores muito pouco próprios para a meia-idade. Cheia de frio, Mónica embrulhou-se bruscamente na toalha, com repelões ao turco e tremores de fúria, tudo justificando a brisa acentuada; o coqueiro cedia ao vento, as palmas erectas, o tronco inclinado, e Mónica olhou para cima no momento em que se desprendia um coco da sua cama aérea, da sua raiz no céu. Calculou-lhe a trajectória, baixou a cabeça, abraçou as pernas, sentiu o impacto de lado, de raspão, uma dor protelada, mais imaginária do que efectiva, e rebentou num choro, diante das três ou quatro crianças pequenas de sandálias e panamá, todas lambuzadas de protector solar, que a olhavam como se tudo aquilo fosse mais uma atracção do circo. Quebrara-se a harmonia, o que fora real antes, não era agora. Já de olhos secos, recomposta, trocam-se nos limites da praia os últimos cumprimentos, com aquelas hesitações de faces que requerem beijos e mãos que avançam umas para as outras em coincidência e logo recolhidas, trapalhada que a mulher resolve antepondo-se e sobrepondo-se, pregando dois beijos fumadores na Mónica, e Mónica a olhá-lo de longe numa despedida a que ele dá as costas, seguindo curvado e insignificante, a fazer tilintar as chaves, para o carro de aluguer. Ela entra na água morna do meio-dia, desaparece tudo, esvai-se satisfeito no passado, e ela nada para longe. De si para si, presente no momento, admite ser este o melhor banho dessas férias. E agradece ao Amor que não tem cara, ao Amor que dá e tira, a graça de não ter contado, de não querer contar, de não ter de contar nada a ninguém.
In Jornal de Letras, Agosto de 2018