Belisa Davies Autora do « Pierre Menard Autor del Quijote »
Para Don Luis com respeito e devoção
Eis o mecanismo da admiração: sobrevoar e debruçar-se, absorto, para o que nos chama - em baixo, o entre-rios, a nova mesopotâmia. Logo aparecerá o fundo falso de Buenos Aires. Ainda há o perigo de cair, inútil, no lugar destinado. Encontro-me à janela, espreitando as ordens alarmadas do piloto compondo uma face, últimas frases. Aperto-me, afinal, contra o eloquente sorriso da hospedeira, o avião desce.
Em viagem, anotou Kafka a propósito de Zurique: "À janela do comboio pergunto-me: como se construirá, a partir de casas isoladas, a primeira das grandes cidades suíças?" Assim estou eu em Buenos Aires: como ajustar a correnteza, o desfiar de janelas, à abstracta esquadria colonial? O taxista há-de figurar, por certo, com a sua lentidão, no que eu escrever, mas o lugar que lhe reservo é ainda indefinido. Quando falar da gentileza do argentino estará ele porventura no que eu disser, ou quando falar da indiferença...
Belisa entalara na porta um bilhete escrito em alemão. Ao entrar vi um absurdo quarto de estudante, a luz selvagem, descortinada, recortando sombras a pique nos livros. Sobre a secretária majestosa, encostada à parede da janela, a máquina de escrever e a desordem. Dispostas com inesperado método, ao centro, na clareira do mata-borrão tatuado, as provas tipográficas das Ficciones.
Sentada, estendia o braço para a Odisseia, arrumado o malão incompetente. Belisa abrira a porta de repente e mostrava-se na ombreira como num quadrd, o bambino transformado em saco de compras. O rosto de Belisa em traços largos. O queixo, o mais singular, caindo em diagonal doce num pescoço largo e firme. Um queixo pesado, insusceptível. A pálpebra carnuda dos olhos rasgados, castanhos. O que distingue o rosto de Belisa? O seu apelo de madona universal.
Pousei o livro na secretária. Bebemos maté com mel; contei-lhe a viagem; havia nela uma luminosidade diferente, de impaciência. Não lhe escapava nem um erro, corrigia-me a pronúncia continuamente, sorria-se da minha adjectivação lassa, visivelmente injusta, sugeria-me outros termos que eu aceitava com reticências vencida. Se me refugiava no inglês, perseguia-me, obrigava-me a voltar ao incerto castelhano. Desaprendi a arte da preguiça, digo-lhe, venho cá aborrecer-me. Acrescento: vou aproveitar para fazer uma entrevista ao Bustos Domecq, assim nem tudo estará perdido.
Ela surpreende-se: Pero no se ha muerto?
Belisa preferia as histórias minuciosas cujo pormenor desconhecia, e hesitava a todo o momento entre precipitar o desenlace e perder-se por considerações laterais, entre o esmiuçar da vã informação e o seu desprezo. Dantes falava com alguma compulsão, espiando nos outros sinais de censura, recolhendo-se quando os reconhecia, avançando ao julgar-se a salvo perante cúmplices. Agora fazia pausas significativas, e tudo o que dizia aspirava a um acréscimo de valor simbólico, a uma moral. Abundava em histórias de família, de amigos - que dantes revelavam o pitoresco apenas, mas eram agora demonstrações exemplares de um conceito, tinham a vontade austera do modelo. Não direi que conversava pretensiosamente, mas tinha um vocabulário próprio de palavras-chave que se faziam ouvir no tom do dogma. Nada disto era procurado, vinha junto à atitude - um agitar-se que só aparentemente era desperdício. Mais de perto entendia-se uma ritmada precisão nos gestos, a fazer o chá, o abrir e fechar instantâneo de gavetas atrás de objectos inúteis que se revelava afinal necessário: sublinhava as frases, marcava o tempo como a bengala da velha bailarina.
Quando lhe perguntei o que fazia com as Ficciones, disse apenas que revia as provas do livro de Don Luis para uma nova edição. E batia com a unha no dente, tendré que empezar mañana, - preocupada - pero...
Reconheço que viajo mal. Sou dos que dizem que Amesterdão é bonito porque tem canais; que é frio, tem belas casas de madeira, o ar sobreagitado de um entreposto. Perante os telhados de Paris, direi: eis os famosos telhados de Paris. Não sei decidir da beleza ou monstruosidade relativa das vistas, submersa na impositiva presença.
Gosta-se, talvez, quando se encontram os pátios de Sevilha junto às torres brancas, quase meridionais, de Long Island. Mas não sei apreender a essência das cidades, parece que perderam a alma todas, excepto, sim, Lisboa. Vou à procura da exactidão inimitável dos lugares e encontro os mesmos prédios, o mesmo rio, magnificado por uma lupa gigantesca.
Quando finalmente surgem episódios, onde já não existe a vontade de aventura, ficam datas só, e acontecimentos: entre tantos de tal e tantos de tal estive em Buenos Aires.
Não hei-de ver nem mais nem menos que o turista: o típico, o genuíno, o tango fardado dos profissionais, Buenos Aires by night: o discurso inflado, eufemístico, das intérpretes. Obrigo-me a tudo isso de antemão, por disciplina. Não me há-de tentar o snobismo dos que cortejam os nativos, procurando-os onde eles se revelam tal e qual, sorrindo para a polaroid, pagando-se da imagem in loco da verdade. Vou com este pressuposto: Buenos Aires um imenso bairro de lata elegante.
Vaguearei por museus abandonados que os locais evitam, indicando-os aos estrangeiros como quem os envia para armadilhas, com curiosidade e tristeza. Hão-de falar-me de heróis nacionais no eco de patamares, guias sonâmbulos apontando quadros; passarei o tempo exacerbado no olhar, confirmando para o esquecimento, factos inventados por tantas circunstâncias.
Considerarei que estou em Buenos Aires quando, em cafezinhos perpendiculares afogados no barulho, escutar a ingresia dos dialectos e a maneira que a gente tem de se abordar, tocando-se no braço, falando-se de muito perto.
Estabelecimento dos percursos. No mapa cada monumento - "ponto de interesse" - está marcado com a anilha de um número, na pata, como se faz aos animais quase extintos. Traço circunferências à roda de cada um destes números e religo-as.
82-69-35-15: amanhã partirei da Plaza General San Martin, acabando a tarde no planetário, assistindo à imitação do mundo.
As rotas destes dias farão um bouquet: partindo sempre do mesmo ponto, prosseguindo em ângulos diferentes, mantendo uma linha relativamente recta, como a haste de um cravo. No mapa, lembra um raio percorrendo Buenos Aires, um leque abrindo em direcção ao rio.
De manhã levanto-me para olhar o pátio. Volto a deitar-me. Jet-depression, diz Belisa. Depressão por violência feita ao tempo.
No autocarro, dois surdos-mudos contam-se histórias de cavalos azuis, histórias da selva; os outros passageiros, que ainda podem falar, ensimesmados, olham-nos de vez em quando com ciúme, para lhes tomarem o sentido dos gestos. Um deles sorri, acenando a cabeça, mas logo assimilado pela muda indignação dos outros.
Passo na rua por dois americanos de manga curta e larga que pedem orientação, embandeirando o mapa, a um homem com ar de cantor que os encanta (como se diz das sereias); entram todos juntos num bar onde os americanos pagarão os copos, como é justo, e o argentino contará em traços generosos factos imprecisos, mas históricos, anotando ao mesmo tempo no mapa depois de as procurar com negligência, zonas de divertimentos obscuros onde já não se brandem facas, mas se dança, fora de tempo, o tango.
Corri algumas editoras perguntando por Bustos Domecq, deixo um rasto de surpresa. lmpossível encontrá-lo. Talvez passe férias fora de Buenos Aires.
Belisa insiste que ele morreu.
82-60-34, o dia acabado passeando ao longo do muro avermeIhado da Recoleta, depois ao sabor das lápides, lendo os formulários da saudade eterna.
Conheci Belisa no Verão de 1970. Ela voltou como os outros para a festa em 74, acompanhando o novelista Paladión, um homem conceituoso e cansativo que teimava em dar um ciclo de conferências sobre Borges. Discutimos, Belisa e eu, nessa altura, ruidosamente, sobre a literatura e encontrámos, satisfeitas, sobretudo divergências.
Ela era uma mulher de atitude matronal que distribuía os menus à mesa e inquiria sobre as saúdes com ansiedade. Dava uma impressão forte de ouvir cuidadosamente as respostas, olhando-nos, mansa. Esperava que acabássemos de comer, oferecia cigarros que sabiam um pouco a recompensa e, bem de frente para nós, falava de Buenos Aires com emoção, embora fosse meio-galesa e tivesse passado a maior parte do tempo em Cardiff.
Faz agora dez anos que revê provas tipográficas. Conhecem-na pelo dom do rigor a detectar erros, pelo talento da atenção densa, aquilina, rasando o texto.
Procurar de novo o interruptor, no escuro. Acordar com saudades a meio de noites intermináveis. Estabelecer na memória, minuciosamente, as razões da vontade de regressar. Imaginar Lisboa - o seu nome espraiado - do avião, a indolente-sobre-colinas, a curvilínea, e suave sob a nuvem cor-de-rosa dos fumos. De longe.
Adormecer ao silêncio hostil, para viajar de novo, em rotas imbecis de geometria, por uma cidade que me é alheia.
Belisa saiu. O candeeiro marca um círculo de luz à volta do livro. Está aberto na primeira página do Pierre Menard autor del Quijote: traços vermelhos, verticais, anotam erros, troca de letras, palavras injustamente repetidas.
"Por Madame Remi Bachelier en un catalogo falaz - que cierto diario..." Tinha quase a certeza de que aquele traço de união não existia no original. Retirei da estante outra edição do mesmo conto. Não havia ali nenhum traço. Mais tarde, quando lho mencionei, Belisa disse:
- No, as a matter of fact, there wasn't.
E mudou de assunto.
Sento-me cansadamente no Jardim Zoológico, em frente do gorila. Olhamo-nos como família. Ele escreve na parede da cela:
Imagino o rosto do desastre
As suas mil faces de penumbra
Que faço aqui no meio dos gatos?
Dos crocodilos?
O medo às feras é um medo absoluto
Mas mais absoluto é o medo
Do medo às feras
A carcereira superfície dos espelhos
De repente há um lago
(ou um planalto submerso)
Escorrendo peixes vivos para o precipício
Escapam-se, conduzem-nos
O corrimão sobre si próprio enrolado
No patamar do patamar um peixe vivo
O olhar mineral da serpente
82-54-49-41 - Almoço numa bodega, pão e café. O criado cantava na copa e aparecia, para servir, subitamente silencioso as entradas e saídas pautadas pelo deslizar da porta volante, a cantiga seguida do silêncio e da cantiga retomada da capo.
Encontro o rosto místico do homem: veio ter comigo este velho que me falou de Deus num tom impessoal, como um assalariado que se resignou ao patrão; deixou-me entrar no segredo de que o mundo estava prestes a acabar, mas não mencionou responsáveis. Falava com os olhos postos na parede, como se estivesse a ler. Era um velho com um grande desejo de unidade, desconfortável na dispersão do mundo, e quando me levantei para pagar, sentou-se ele a outra mesa e recomeçou.
Penso que Belisa se obriga a esconder-me algo de que me quer falar. Jantávamos, ela empurrava a conversa para os livros, ainda que eu resistisse, insistindo no caso do rosto místico do homem.
Corrigia-me ainda mais que o habitual, apontando erros onde eles, em rigor, não se encontravam. Zangava-se com facilidade, era preciso ignorá-la.
Deixou as provas em cima da secretária. Entretive-me a ler alto as lombadas dos livros até me sentar com a Odisseia do Paladión. Interrompi-me para espiar o trabalho de Belisa no Pierre Menard. O verso
Where a malignant and a turbaned Turk
fora reduzido a where a malignant turbaned Turk; na página desapareceram vírgulas como se perdera no verso o tempo de espera; as sílabas tocam-se, as frases correm mais, indefinem-se, parte-se a galope... "devoto esencialmente de Poe que engendró a Baudelaire que engendró a Mallarmé que engendró a Valéry que engendró Edmond Teste..."
Excelente nevoeiro pela manhã. Escrevo sobre o tabuleiro de xadrez, junto à janela. Perco-me, depois, em ruazinhas, propositadamente, escolhendo um ponto de referência enganador. Imagino-me a caminhar em direcção ao rio. Visito um museu qualquer onde adormeço desrespeitosamente nas barbas dos quadros, numa sala deserta.
Cá fora, à tarde, o calor faz de Buenos Aires um imenso museu: nas ruas amarelas a gente petrifica-se na sombra, os taxistas abanam-se, moles, com jornais e leques dentro dos carros. Abrem as portas e mostram pés descalços, pelas janelas vejo-os de boca aberta, descaindo o queixo numa admiração sem objecto.
Subo a Avenida Corrientes, tudo me agride, a gente passando como num filme, boiando a enorme distância.
De súbito há um índio como uma figura de suspeita encenação, desconfio viciosamente dele, com alarme, mas caminho devagar. Quando olho para trás ele não se moveu. O índio fica secretamente comigo: é um aviso. Obrigo-me a voltar no dia seguinte, mas não sei encontrar a mesma esquina.
Histórias do pai galês, o senhor Davies. Belisa só é cínica ao falar dele. Diz daddy, sem qualquer ternura. É músico de orquestra; em casa falavam em dialecto, o que Belisa considerara uma complicação ditada pelo snobismo. Quando veio para Buenos Alres viver com a mãe, Belisa ordenou o esquecimento do tal dialecto, e desse tempo ficara-lhe só um desagrado por todas as palavras com muitos sons surdos passados na parte de baixo da língua e junto às bochechas. O galês escrevia-lhe um postal por ano, a que ela respondia com uma espécie de fórmula: "Dear Sir I have the honour to inform you..." e prosseguia num jargão inadmissível de carta comercial.
82, com passeio demorado pelo parque, lembrando Schopenhauer que amava na vegetação indomável a vontade de viver - vencendo a força natural e a própria inércia, subindo, quando a lógica ordenava a abundante queda.
77-58-48 - está composto o ramo: os quatro percursos abrem na cidade como a boca do crocodilo, se pudessem ser os candeeiros os inumeráveis dentes.
Em frente do Palácio da Justiça dobro o mapa e apanho o autocarro.
Percorro as livrarias onde encontro o que não procuro. Os livros de Lovelace, que infatigavelmente perseguira em Amesterdão, em Edimburgo, encontram-se ali, sem uso. Mas é em vão que pergunto pela Memória de Borges. Asseguram-me que não vem nos catálogos, colocando-mos nas mãos para que eu verifique.
Mas tenho a certeza de que o livro existe, li-o há pouco em Lisboa, no original. Tem uma capa cinzenta, "Memória" escrita a branco.
A princípio Belisa fazia o maté, abanava-me de manhã para me acordar. Agora sai e deixa-me a lista das compras e algum dinheiro, com indicações rigorosas que não são, no entanto, tutelares. Trabalha em casa à tarde quando eu saio e sai à noite, quando volto.
Jantamos em conversa circunstancial, embora ela se distraia com intenção e se mostre ostensivamente ausente.
Propus-lhe mudar-me para um hotel, era visível que incomodava. Olhou-me indecidida, mas parecia sobretudo que a ofendera.
- Tu te quedas aqui - disse.
Levantou-se e apontou para a secretária. Passou entre nós um sorriso de criminosa cumplicidade.
Que me obriga a espiar de novo os seus progressos. Noto o risco certeiro, vermelho, sobre a frase inteira. E Uma interrogação, à margem de: "Mi recuerdo general deI Quijote, simplificado por el olvido y la indiferencia puede muy bien equivaler a la imprecisa imagen anterior de un libro no escrito."
Belisa substituíra a ortografia por Quixote e sublinhara "simplificado", "equivaler" e "no escrito". Na margem desenhou um rudimentar barquinho à vela, ondas de crista e dois peixes, a negro. Por baixo escreveu: "The crux of the matter is...",junto a uma boca com muitos dentes.
Tudo isto me divertiu, mas com algum desconforto, como se assistisse, de meio-coração às não tão inocentes travessuras da menina.
Sonhei de novo com a esfinge. É a paragem que asfixia.
Falamos do escrever, do meu desgostante jornalismo. Surpreende-me o tom lamentoso da minha voz ao dizer em português:
- Mas enjoo o escrever, sempre o mesmo, sempre a mesma...
E ainda: "O animal está morto ou quase morto." Queria confessar-lhe que sabia exactamente o que se passava entre ela e o Pierre Menard. Mas Belisa tem agora um novo pudor, uma renitência em partilhar, que nos prega às banalidades. Falamos namorados sem convicção, dizemos as mesmas coisas.
Achamo-nos de repente a discutir o sentido da história, mas o diálogo com ela é um enxovalho para o amor-próprio: ela corrige a expressão e a ideia com a mesma firmeza. Tem frases inexplicáveis que pretende definitivas e revelam só uma visão parcial da natureza das coisas. O meu sentido da reportagem alimenta-se desses ditos, mas eu própria permaneço alheia, registando, escutando.
Onde se escreveu: "simplificado por el olvido y Ia indiferencia", Belisa emendara - "simplificado por la indiligencia y el olvido", e, mais adiante: "Ia imprecisa imagen anterior de un libro no escrito" passou a dizer: "la imagen anterior, imprecisa, de un libro no escrito".
É agora um hábito ver o rasto do esforço de Belisa sobre as páginas vermelhas. Rodo na sala em círculos até parar à secretária, olhando sobre o ombro invisível, ultrapassando mudas superfícies, sobrepostas, até ao texto, curvada, as mãos na mesa, uma de cada lado, e leio:
"La verdad, cuya madre es la historia, émula deI tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir..."
Folheio escrupulosamente o Pierre Menard. Quase todas as frases, desde o princípio foram alteradas. A pontuação, os sublinhados, a ordem das palavras, parágrafos inteiros cortados, rescritos à margem.
Do obelisco à Plaza de Mayo, passear e lembrar-me. Via a página cortada e riscada de sinais, a frase emendada por Belisa: "La historia, cuya madre es la verdad sin tiempo, simulacro de las acciones, imitación de lo passado..."
Procuro na Biblioteca o livro de Borges, não consta do ficheiro.
Dantes entrava nas cidades para as percorrer e reconhecia-as pelo cheiro, quase sem lhes saber os nomes. A adolescência é uma ilusão dos sentidos: sobra o azedo na face desviada do espelho ao reconhecer que tudo é limite e repetição.
Prevejo em Belisa uma espécie de adolescência destempada e embirrenta que entende recomeçar contra todos num degrau superior. Simpatizo desde já com as suas quedas. Quando remexe nos papelinhos que traz no bolso com frases e ideias soltas, sorrio como os cínicos, sorrio como os parvos.
Ainda o Pierre Menard. Dos traços vermelhos sobressai uma única frase inalterada: "No hay ejercicio intelectual que no sea finalmente inutil." Acho que Belisa complicou indevidamente o texto. Noto-lhe uma vontade neófita de ter estilo; os adjectivos, escolhe-os entre os mais tortuosos - verdadeiros tigres de papel que dão uma aparência de rigor, a impostura da falsa segurança.
Preocupou-se obsessivamente com as frases e com a novidade - o querer espantar e suspender - e obriga-me a voltar atrás constantemente, o que me cansa e me confunde.
Mas há outra coisa, que me faz sorrir: o texto lê-se como o rosto de Belisa luminoso, largo, pesado; Belisa escondeu-se no Pierre Menard como um tumor. Mas incha, confessando: vejam que não estou aqui e estou aqui.
Quando voltei ela estava sentada de costas para a janela. Esperava-me triunfante e disse que fora despedida, a voz crescendo em contraluz para o desenlace do enredo.
Celebrámos com vinho o despedimento, Belisa contava-me agora desnecessariamente os dez anos de fervor e servidão ao rigor dos outros, a via dulce e penosa para o inescapável.
Seleccionava só pormenores que pudessem ser lucrativamente adjectivados, sem conseguir perder o vício das enumerações. Dizia: "cuentos, ensayos, poemas, biografías, novelas, tragedias, policiales" e entusiasmava-se até ao esgotamento pelas coisas que havia de fazer.
Eu envergonhava-me um pouco, como sempre diante da despudorada confiança dos outros, ou quando eles se pensam candidamente ao abrigo de si próprios.
Saímos a passear juntas pela primeira vez. Fomos ao cinema.
Em casa, Belisa vestiu um casaco de lã castanha e apresentou-mo:
- A writer's cardigan.
Tinha lançado mão dos talismãs do ofício.
Eis o mecanismo da admiração: sobrevoar e debruçar-se, absorto, para o que nos chama - em baixo, o entre-rios, a nova mesopotâmia. Logo aparecerá o fundo falso de Buenos Aires. Ainda há o perigo de cair, inútil, no lugar destinado. Encontro-me à janela, espreitando as ordens alarmadas do piloto compondo uma face, últimas frases. Aperto-me, afinal, contra o eloquente sorriso da hospedeira, o avião desce.
Em viagem, anotou Kafka a propósito de Zurique: "À janela do comboio pergunto-me: como se construirá, a partir de casas isoladas, a primeira das grandes cidades suíças?" Assim estou eu em Buenos Aires: como ajustar a correnteza, o desfiar de janelas, à abstracta esquadria colonial? O taxista há-de figurar, por certo, com a sua lentidão, no que eu escrever, mas o lugar que lhe reservo é ainda indefinido. Quando falar da gentileza do argentino estará ele porventura no que eu disser, ou quando falar da indiferença...
Belisa entalara na porta um bilhete escrito em alemão. Ao entrar vi um absurdo quarto de estudante, a luz selvagem, descortinada, recortando sombras a pique nos livros. Sobre a secretária majestosa, encostada à parede da janela, a máquina de escrever e a desordem. Dispostas com inesperado método, ao centro, na clareira do mata-borrão tatuado, as provas tipográficas das Ficciones.
Sentada, estendia o braço para a Odisseia, arrumado o malão incompetente. Belisa abrira a porta de repente e mostrava-se na ombreira como num quadrd, o bambino transformado em saco de compras. O rosto de Belisa em traços largos. O queixo, o mais singular, caindo em diagonal doce num pescoço largo e firme. Um queixo pesado, insusceptível. A pálpebra carnuda dos olhos rasgados, castanhos. O que distingue o rosto de Belisa? O seu apelo de madona universal.
Pousei o livro na secretária. Bebemos maté com mel; contei-lhe a viagem; havia nela uma luminosidade diferente, de impaciência. Não lhe escapava nem um erro, corrigia-me a pronúncia continuamente, sorria-se da minha adjectivação lassa, visivelmente injusta, sugeria-me outros termos que eu aceitava com reticências vencida. Se me refugiava no inglês, perseguia-me, obrigava-me a voltar ao incerto castelhano. Desaprendi a arte da preguiça, digo-lhe, venho cá aborrecer-me. Acrescento: vou aproveitar para fazer uma entrevista ao Bustos Domecq, assim nem tudo estará perdido.
Ela surpreende-se: Pero no se ha muerto?
Belisa preferia as histórias minuciosas cujo pormenor desconhecia, e hesitava a todo o momento entre precipitar o desenlace e perder-se por considerações laterais, entre o esmiuçar da vã informação e o seu desprezo. Dantes falava com alguma compulsão, espiando nos outros sinais de censura, recolhendo-se quando os reconhecia, avançando ao julgar-se a salvo perante cúmplices. Agora fazia pausas significativas, e tudo o que dizia aspirava a um acréscimo de valor simbólico, a uma moral. Abundava em histórias de família, de amigos - que dantes revelavam o pitoresco apenas, mas eram agora demonstrações exemplares de um conceito, tinham a vontade austera do modelo. Não direi que conversava pretensiosamente, mas tinha um vocabulário próprio de palavras-chave que se faziam ouvir no tom do dogma. Nada disto era procurado, vinha junto à atitude - um agitar-se que só aparentemente era desperdício. Mais de perto entendia-se uma ritmada precisão nos gestos, a fazer o chá, o abrir e fechar instantâneo de gavetas atrás de objectos inúteis que se revelava afinal necessário: sublinhava as frases, marcava o tempo como a bengala da velha bailarina.
Quando lhe perguntei o que fazia com as Ficciones, disse apenas que revia as provas do livro de Don Luis para uma nova edição. E batia com a unha no dente, tendré que empezar mañana, - preocupada - pero...
Reconheço que viajo mal. Sou dos que dizem que Amesterdão é bonito porque tem canais; que é frio, tem belas casas de madeira, o ar sobreagitado de um entreposto. Perante os telhados de Paris, direi: eis os famosos telhados de Paris. Não sei decidir da beleza ou monstruosidade relativa das vistas, submersa na impositiva presença.
Gosta-se, talvez, quando se encontram os pátios de Sevilha junto às torres brancas, quase meridionais, de Long Island. Mas não sei apreender a essência das cidades, parece que perderam a alma todas, excepto, sim, Lisboa. Vou à procura da exactidão inimitável dos lugares e encontro os mesmos prédios, o mesmo rio, magnificado por uma lupa gigantesca.
Quando finalmente surgem episódios, onde já não existe a vontade de aventura, ficam datas só, e acontecimentos: entre tantos de tal e tantos de tal estive em Buenos Aires.
Não hei-de ver nem mais nem menos que o turista: o típico, o genuíno, o tango fardado dos profissionais, Buenos Aires by night: o discurso inflado, eufemístico, das intérpretes. Obrigo-me a tudo isso de antemão, por disciplina. Não me há-de tentar o snobismo dos que cortejam os nativos, procurando-os onde eles se revelam tal e qual, sorrindo para a polaroid, pagando-se da imagem in loco da verdade. Vou com este pressuposto: Buenos Aires um imenso bairro de lata elegante.
Vaguearei por museus abandonados que os locais evitam, indicando-os aos estrangeiros como quem os envia para armadilhas, com curiosidade e tristeza. Hão-de falar-me de heróis nacionais no eco de patamares, guias sonâmbulos apontando quadros; passarei o tempo exacerbado no olhar, confirmando para o esquecimento, factos inventados por tantas circunstâncias.
Considerarei que estou em Buenos Aires quando, em cafezinhos perpendiculares afogados no barulho, escutar a ingresia dos dialectos e a maneira que a gente tem de se abordar, tocando-se no braço, falando-se de muito perto.
Estabelecimento dos percursos. No mapa cada monumento - "ponto de interesse" - está marcado com a anilha de um número, na pata, como se faz aos animais quase extintos. Traço circunferências à roda de cada um destes números e religo-as.
82-69-35-15: amanhã partirei da Plaza General San Martin, acabando a tarde no planetário, assistindo à imitação do mundo.
As rotas destes dias farão um bouquet: partindo sempre do mesmo ponto, prosseguindo em ângulos diferentes, mantendo uma linha relativamente recta, como a haste de um cravo. No mapa, lembra um raio percorrendo Buenos Aires, um leque abrindo em direcção ao rio.
De manhã levanto-me para olhar o pátio. Volto a deitar-me. Jet-depression, diz Belisa. Depressão por violência feita ao tempo.
No autocarro, dois surdos-mudos contam-se histórias de cavalos azuis, histórias da selva; os outros passageiros, que ainda podem falar, ensimesmados, olham-nos de vez em quando com ciúme, para lhes tomarem o sentido dos gestos. Um deles sorri, acenando a cabeça, mas logo assimilado pela muda indignação dos outros.
Passo na rua por dois americanos de manga curta e larga que pedem orientação, embandeirando o mapa, a um homem com ar de cantor que os encanta (como se diz das sereias); entram todos juntos num bar onde os americanos pagarão os copos, como é justo, e o argentino contará em traços generosos factos imprecisos, mas históricos, anotando ao mesmo tempo no mapa depois de as procurar com negligência, zonas de divertimentos obscuros onde já não se brandem facas, mas se dança, fora de tempo, o tango.
Corri algumas editoras perguntando por Bustos Domecq, deixo um rasto de surpresa. lmpossível encontrá-lo. Talvez passe férias fora de Buenos Aires.
Belisa insiste que ele morreu.
82-60-34, o dia acabado passeando ao longo do muro avermeIhado da Recoleta, depois ao sabor das lápides, lendo os formulários da saudade eterna.
Conheci Belisa no Verão de 1970. Ela voltou como os outros para a festa em 74, acompanhando o novelista Paladión, um homem conceituoso e cansativo que teimava em dar um ciclo de conferências sobre Borges. Discutimos, Belisa e eu, nessa altura, ruidosamente, sobre a literatura e encontrámos, satisfeitas, sobretudo divergências.
Ela era uma mulher de atitude matronal que distribuía os menus à mesa e inquiria sobre as saúdes com ansiedade. Dava uma impressão forte de ouvir cuidadosamente as respostas, olhando-nos, mansa. Esperava que acabássemos de comer, oferecia cigarros que sabiam um pouco a recompensa e, bem de frente para nós, falava de Buenos Aires com emoção, embora fosse meio-galesa e tivesse passado a maior parte do tempo em Cardiff.
Faz agora dez anos que revê provas tipográficas. Conhecem-na pelo dom do rigor a detectar erros, pelo talento da atenção densa, aquilina, rasando o texto.
Procurar de novo o interruptor, no escuro. Acordar com saudades a meio de noites intermináveis. Estabelecer na memória, minuciosamente, as razões da vontade de regressar. Imaginar Lisboa - o seu nome espraiado - do avião, a indolente-sobre-colinas, a curvilínea, e suave sob a nuvem cor-de-rosa dos fumos. De longe.
Adormecer ao silêncio hostil, para viajar de novo, em rotas imbecis de geometria, por uma cidade que me é alheia.
Belisa saiu. O candeeiro marca um círculo de luz à volta do livro. Está aberto na primeira página do Pierre Menard autor del Quijote: traços vermelhos, verticais, anotam erros, troca de letras, palavras injustamente repetidas.
"Por Madame Remi Bachelier en un catalogo falaz - que cierto diario..." Tinha quase a certeza de que aquele traço de união não existia no original. Retirei da estante outra edição do mesmo conto. Não havia ali nenhum traço. Mais tarde, quando lho mencionei, Belisa disse:
- No, as a matter of fact, there wasn't.
E mudou de assunto.
Sento-me cansadamente no Jardim Zoológico, em frente do gorila. Olhamo-nos como família. Ele escreve na parede da cela:
Imagino o rosto do desastre
As suas mil faces de penumbra
Que faço aqui no meio dos gatos?
Dos crocodilos?
O medo às feras é um medo absoluto
Mas mais absoluto é o medo
Do medo às feras
A carcereira superfície dos espelhos
De repente há um lago
(ou um planalto submerso)
Escorrendo peixes vivos para o precipício
Escapam-se, conduzem-nos
O corrimão sobre si próprio enrolado
No patamar do patamar um peixe vivo
O olhar mineral da serpente
82-54-49-41 - Almoço numa bodega, pão e café. O criado cantava na copa e aparecia, para servir, subitamente silencioso as entradas e saídas pautadas pelo deslizar da porta volante, a cantiga seguida do silêncio e da cantiga retomada da capo.
Encontro o rosto místico do homem: veio ter comigo este velho que me falou de Deus num tom impessoal, como um assalariado que se resignou ao patrão; deixou-me entrar no segredo de que o mundo estava prestes a acabar, mas não mencionou responsáveis. Falava com os olhos postos na parede, como se estivesse a ler. Era um velho com um grande desejo de unidade, desconfortável na dispersão do mundo, e quando me levantei para pagar, sentou-se ele a outra mesa e recomeçou.
Penso que Belisa se obriga a esconder-me algo de que me quer falar. Jantávamos, ela empurrava a conversa para os livros, ainda que eu resistisse, insistindo no caso do rosto místico do homem.
Corrigia-me ainda mais que o habitual, apontando erros onde eles, em rigor, não se encontravam. Zangava-se com facilidade, era preciso ignorá-la.
Deixou as provas em cima da secretária. Entretive-me a ler alto as lombadas dos livros até me sentar com a Odisseia do Paladión. Interrompi-me para espiar o trabalho de Belisa no Pierre Menard. O verso
Where a malignant and a turbaned Turk
fora reduzido a where a malignant turbaned Turk; na página desapareceram vírgulas como se perdera no verso o tempo de espera; as sílabas tocam-se, as frases correm mais, indefinem-se, parte-se a galope... "devoto esencialmente de Poe que engendró a Baudelaire que engendró a Mallarmé que engendró a Valéry que engendró Edmond Teste..."
Excelente nevoeiro pela manhã. Escrevo sobre o tabuleiro de xadrez, junto à janela. Perco-me, depois, em ruazinhas, propositadamente, escolhendo um ponto de referência enganador. Imagino-me a caminhar em direcção ao rio. Visito um museu qualquer onde adormeço desrespeitosamente nas barbas dos quadros, numa sala deserta.
Cá fora, à tarde, o calor faz de Buenos Aires um imenso museu: nas ruas amarelas a gente petrifica-se na sombra, os taxistas abanam-se, moles, com jornais e leques dentro dos carros. Abrem as portas e mostram pés descalços, pelas janelas vejo-os de boca aberta, descaindo o queixo numa admiração sem objecto.
Subo a Avenida Corrientes, tudo me agride, a gente passando como num filme, boiando a enorme distância.
De súbito há um índio como uma figura de suspeita encenação, desconfio viciosamente dele, com alarme, mas caminho devagar. Quando olho para trás ele não se moveu. O índio fica secretamente comigo: é um aviso. Obrigo-me a voltar no dia seguinte, mas não sei encontrar a mesma esquina.
Histórias do pai galês, o senhor Davies. Belisa só é cínica ao falar dele. Diz daddy, sem qualquer ternura. É músico de orquestra; em casa falavam em dialecto, o que Belisa considerara uma complicação ditada pelo snobismo. Quando veio para Buenos Alres viver com a mãe, Belisa ordenou o esquecimento do tal dialecto, e desse tempo ficara-lhe só um desagrado por todas as palavras com muitos sons surdos passados na parte de baixo da língua e junto às bochechas. O galês escrevia-lhe um postal por ano, a que ela respondia com uma espécie de fórmula: "Dear Sir I have the honour to inform you..." e prosseguia num jargão inadmissível de carta comercial.
82, com passeio demorado pelo parque, lembrando Schopenhauer que amava na vegetação indomável a vontade de viver - vencendo a força natural e a própria inércia, subindo, quando a lógica ordenava a abundante queda.
77-58-48 - está composto o ramo: os quatro percursos abrem na cidade como a boca do crocodilo, se pudessem ser os candeeiros os inumeráveis dentes.
Em frente do Palácio da Justiça dobro o mapa e apanho o autocarro.
Percorro as livrarias onde encontro o que não procuro. Os livros de Lovelace, que infatigavelmente perseguira em Amesterdão, em Edimburgo, encontram-se ali, sem uso. Mas é em vão que pergunto pela Memória de Borges. Asseguram-me que não vem nos catálogos, colocando-mos nas mãos para que eu verifique.
Mas tenho a certeza de que o livro existe, li-o há pouco em Lisboa, no original. Tem uma capa cinzenta, "Memória" escrita a branco.
A princípio Belisa fazia o maté, abanava-me de manhã para me acordar. Agora sai e deixa-me a lista das compras e algum dinheiro, com indicações rigorosas que não são, no entanto, tutelares. Trabalha em casa à tarde quando eu saio e sai à noite, quando volto.
Jantamos em conversa circunstancial, embora ela se distraia com intenção e se mostre ostensivamente ausente.
Propus-lhe mudar-me para um hotel, era visível que incomodava. Olhou-me indecidida, mas parecia sobretudo que a ofendera.
- Tu te quedas aqui - disse.
Levantou-se e apontou para a secretária. Passou entre nós um sorriso de criminosa cumplicidade.
Que me obriga a espiar de novo os seus progressos. Noto o risco certeiro, vermelho, sobre a frase inteira. E Uma interrogação, à margem de: "Mi recuerdo general deI Quijote, simplificado por el olvido y la indiferencia puede muy bien equivaler a la imprecisa imagen anterior de un libro no escrito."
Belisa substituíra a ortografia por Quixote e sublinhara "simplificado", "equivaler" e "no escrito". Na margem desenhou um rudimentar barquinho à vela, ondas de crista e dois peixes, a negro. Por baixo escreveu: "The crux of the matter is...",junto a uma boca com muitos dentes.
Tudo isto me divertiu, mas com algum desconforto, como se assistisse, de meio-coração às não tão inocentes travessuras da menina.
Sonhei de novo com a esfinge. É a paragem que asfixia.
Falamos do escrever, do meu desgostante jornalismo. Surpreende-me o tom lamentoso da minha voz ao dizer em português:
- Mas enjoo o escrever, sempre o mesmo, sempre a mesma...
E ainda: "O animal está morto ou quase morto." Queria confessar-lhe que sabia exactamente o que se passava entre ela e o Pierre Menard. Mas Belisa tem agora um novo pudor, uma renitência em partilhar, que nos prega às banalidades. Falamos namorados sem convicção, dizemos as mesmas coisas.
Achamo-nos de repente a discutir o sentido da história, mas o diálogo com ela é um enxovalho para o amor-próprio: ela corrige a expressão e a ideia com a mesma firmeza. Tem frases inexplicáveis que pretende definitivas e revelam só uma visão parcial da natureza das coisas. O meu sentido da reportagem alimenta-se desses ditos, mas eu própria permaneço alheia, registando, escutando.
Onde se escreveu: "simplificado por el olvido y Ia indiferencia", Belisa emendara - "simplificado por la indiligencia y el olvido", e, mais adiante: "Ia imprecisa imagen anterior de un libro no escrito" passou a dizer: "la imagen anterior, imprecisa, de un libro no escrito".
É agora um hábito ver o rasto do esforço de Belisa sobre as páginas vermelhas. Rodo na sala em círculos até parar à secretária, olhando sobre o ombro invisível, ultrapassando mudas superfícies, sobrepostas, até ao texto, curvada, as mãos na mesa, uma de cada lado, e leio:
"La verdad, cuya madre es la historia, émula deI tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir..."
Folheio escrupulosamente o Pierre Menard. Quase todas as frases, desde o princípio foram alteradas. A pontuação, os sublinhados, a ordem das palavras, parágrafos inteiros cortados, rescritos à margem.
Do obelisco à Plaza de Mayo, passear e lembrar-me. Via a página cortada e riscada de sinais, a frase emendada por Belisa: "La historia, cuya madre es la verdad sin tiempo, simulacro de las acciones, imitación de lo passado..."
Procuro na Biblioteca o livro de Borges, não consta do ficheiro.
Dantes entrava nas cidades para as percorrer e reconhecia-as pelo cheiro, quase sem lhes saber os nomes. A adolescência é uma ilusão dos sentidos: sobra o azedo na face desviada do espelho ao reconhecer que tudo é limite e repetição.
Prevejo em Belisa uma espécie de adolescência destempada e embirrenta que entende recomeçar contra todos num degrau superior. Simpatizo desde já com as suas quedas. Quando remexe nos papelinhos que traz no bolso com frases e ideias soltas, sorrio como os cínicos, sorrio como os parvos.
Ainda o Pierre Menard. Dos traços vermelhos sobressai uma única frase inalterada: "No hay ejercicio intelectual que no sea finalmente inutil." Acho que Belisa complicou indevidamente o texto. Noto-lhe uma vontade neófita de ter estilo; os adjectivos, escolhe-os entre os mais tortuosos - verdadeiros tigres de papel que dão uma aparência de rigor, a impostura da falsa segurança.
Preocupou-se obsessivamente com as frases e com a novidade - o querer espantar e suspender - e obriga-me a voltar atrás constantemente, o que me cansa e me confunde.
Mas há outra coisa, que me faz sorrir: o texto lê-se como o rosto de Belisa luminoso, largo, pesado; Belisa escondeu-se no Pierre Menard como um tumor. Mas incha, confessando: vejam que não estou aqui e estou aqui.
Quando voltei ela estava sentada de costas para a janela. Esperava-me triunfante e disse que fora despedida, a voz crescendo em contraluz para o desenlace do enredo.
Celebrámos com vinho o despedimento, Belisa contava-me agora desnecessariamente os dez anos de fervor e servidão ao rigor dos outros, a via dulce e penosa para o inescapável.
Seleccionava só pormenores que pudessem ser lucrativamente adjectivados, sem conseguir perder o vício das enumerações. Dizia: "cuentos, ensayos, poemas, biografías, novelas, tragedias, policiales" e entusiasmava-se até ao esgotamento pelas coisas que havia de fazer.
Eu envergonhava-me um pouco, como sempre diante da despudorada confiança dos outros, ou quando eles se pensam candidamente ao abrigo de si próprios.
Saímos a passear juntas pela primeira vez. Fomos ao cinema.
Em casa, Belisa vestiu um casaco de lã castanha e apresentou-mo:
- A writer's cardigan.
Tinha lançado mão dos talismãs do ofício.