Luísa Costa Gomes
Império de uma Criança
Um dos fragmentos de Heraclito que mais me impressionou quando comecei a estudar Filosofia foi aquele que propõe uma analogia entre o “tempo eterno” e uma criança que brinca. Há quem interprete que brinca “inocentemente”, mas “inocentemente”, para além de redutor, não está no original. Heraclito escreveu à volta de 460 A.C. e nós continuamos às voltas a tentar traduzir a sua bela frase: “o tempo eterno é uma criança que, brincando como uma criança, mexe os peões num tabuleiro: império de uma criança”. Aquele tempo não é chronos, é aiôn, o tempo fora do tempo, onde a menina joga um jogo que provavelmente tem regras que ela não aplica: o seu brincar é liberdade e o seu único sentido é o da criação. Se há regras, do que duvido, elas são criadas no instante instável da sua imaginação e exprimem uma das formas como ela se descobre, se vai organizando internamente e fazendo as pazes com o caos do tempo histórico, que é sobretudo guerra e conflito de contrários. No tempo fora do tempo brincar é divino.
Deixo-me ficar muitas vezes apenas a ouvir a minha neta de cinco anos a brincar sozinha. Às vezes no banho, com os seus barcos e os seus polícias, um copo de plástico, um cão de borracha. Outras vezes na sala, povoada de ursos, ratos, meninas negras e loiras, borregos de peluche deitados no chão, que ela tapa com carinho e põe a dormir ou trata com injecções para a dor nas costas. Toda aquela gente tem nomes e afazeres, histórias de vida e conflitos. Às vezes vai tudo preso, para que ela, na esquadra, tenha oportunidade de fazer a mediação e reconciliar os maus com os bons. O que eu oiço na voz dela e me derrete é a extraordinária seriedade de todo aquele mundo, a autenticidade das relações que estabelece com ele, a inteireza do jogo criador. Lembra-me os princípios da vida verdadeira.
Por isso podem calcular a importância que o jogo e o brincar têm para mim. Não são intervalo, não são recreio, não são “os momentos de lazer”. Diz-se pedagogicamente que brincar é uma coisa muito séria. Mas logo a seguir esquece-se a importância do que se disse: e procura-se organizar e empurrar para o supostamente didáctico de tabelas e parâmetros tudo o que não se pode medir. Brincar é sério porque é justamente uma aprendizagem do prazer de pensar por si próprio. E aprender a brincar sozinho, sem a ajuda e a mediação da visão truncada e estúpida dos adultos, é a tarefa de toda uma vida.
Fico horrorizada com os estudos que mostram que as crianças do sexo feminino respondem sem limites às suas vocações até por volta dos cinco anos de idade. Querem ser tudo, querem experimentar tudo. Ao fim de cinco anos de enculturação, já só querem ser figuras secundárias. Cientistas? Astronautas? Futebolistas? Isso é para os rapazes. Quem faz, antes do mais, a sua “compressão”? As mães, pois claro. As meninas têm de ser bonitas e sedutoras, e por volta da adolescência lidam com anorexias e depressões. Isso acontece cada vez mais cedo, com a exposição venenosa nas redes sociais, que lhes ensina a mais lastimosa das conformidades. É por volta dos cinco anos, quando a menina começa a ver-se como “rapariga” que cai sobre ele o rolo compressor que há-de reduzi-la ao papel que a sociedade lhe reserva: ornamentação, ser papel de parede, providenciar cuidado e serviços. Será mulher sexualmente activa (aceitando e promovendo os padrões da sexualidade masculina), será mãe, o mais das vezes solteira, será serviçal da casa, trabalhadora menor. Tradicionalmente: professora. Para os rapazes é pistolas e bolas, símbolos da competição, poder e força; para as raparigas, baldes e vassouras. O que nos dizem esses “brinquedos”? O que nos dizem esses modelos? Procurem no Toys R´Us e nas grandes superfícies. Procurem na televisão e no cinema. Se, por um lado, até Hollywood faz um esforço para mostrar modelos de papéis sociais avançados para as raparigas como o extraordinário Vaiana da Disney, no consumo a distinção é clara: brinquedos para as meninas, brinquedos para os meninos. Começa a grande luta para fazer com que as mulheres, embora activas, embora melhores estudantes do que os rapazes, mais trabalhadoras, mais desembaraçadas, mais maduras mais depressa, não ascendam aos lugares de poder que realmente importam. Daí os grandes espantos e espaventos quando ascendem: e se olharmos à nossa volta, isso está realmente a mudar. Mas as conquistas são frágeis, e a História não avança sempre no mesmo sentido libertador e justo.