Clamor, teatro, Cotovia, 1994
Clamor em livro é um texto para teatro, imaginado para uma cena de Lisboa, no ano de 1994. O primeiro caso de Vieira em teatro de que há notícia foi o Triumphus Sapíentíae, em Coimbra, a 15 de Maio de 1737: um herói perseguido, encarcerado, miraculosamente inspirado por um anjo e, por fim, vencedor. Sabe-se do espectáculo, que era musicado, como a maior parte das representações dos jesuítas, mas não se sabe do texto. Terá sido uma função escolar que celebrava os 40 anos da morte do padre António Vieira, em Salvador da Bahia, a 18 de Julho de 1697.
O que parece estar em jogo neste Clamor de Luísa Costa Gomes, de forma estilhaçada e polifónica, é uma figura histórica em conflito, em três momentos não muito conhecidos da sua biografia, ao mesmo tempo que uma extraordinária maneira de falar em língua portuguesa, tão estranha hoje para nós quanto sugestiva, e ainda um mundo imaginário, que merece a atenção. Nada disto é alheio ao teatro.
Clamor em livro é um texto para teatro, imaginado para uma cena de Lisboa, no ano de 1994. O primeiro caso de Vieira em teatro de que há notícia foi o Triumphus Sapíentíae, em Coimbra, a 15 de Maio de 1737: um herói perseguido, encarcerado, miraculosamente inspirado por um anjo e, por fim, vencedor. Sabe-se do espectáculo, que era musicado, como a maior parte das representações dos jesuítas, mas não se sabe do texto. Terá sido uma função escolar que celebrava os 40 anos da morte do padre António Vieira, em Salvador da Bahia, a 18 de Julho de 1697.
O que parece estar em jogo neste Clamor de Luísa Costa Gomes, de forma estilhaçada e polifónica, é uma figura histórica em conflito, em três momentos não muito conhecidos da sua biografia, ao mesmo tempo que uma extraordinária maneira de falar em língua portuguesa, tão estranha hoje para nós quanto sugestiva, e ainda um mundo imaginário, que merece a atenção. Nada disto é alheio ao teatro.
do espectáculo
CLAMOR, a partir de textos do PADRE ANTÓNIO VIEIRA,
encenação de Ricardo Pais, Teatro Nacional D. Maria II, 1994 (Lisboa, Capital da Cultura)
leitura conduzida por Carlos Pimenta, LCG Suite no Teatro Nacional de São João, 2006
Clamor LGC Suite no TNSJ por João Tuna
As bulhas de Vieira
Os factos a que as altercações encenadas se referem respeitam três épocas da vida do pregador jesuíta, próximas do ponto de vista cronológico, se bem que em três locais muito distantes: Belém do Pará, no Amazonas, com a partida
forçada e violenta de S. Luís do Maranhão, em finais de 1661; Coimbra, na Mesa do tribunal da lnquisição, entre 1663 e 1666; finalmente, Roma esse "mundo abreviado", na corte sofisticada da rainha Cristina da Suécia, por volta de 1674. Três foram também as razões de cada um dos conflitos: em primeiro lugar, a posse e o destino dos índios do Brasil; depois, a intervenção pessoal do sacerdote na vida pública, do sagrado na ideologia politica, das profecias na história; por fim, os refinados jogos de virtuosismo da arte da eloquência, alternando com a barbaridade dos índios do Brasil. Dum lado, o velho mundo fechado na corte e na academia, por demais conhecido, com o seu lastro de glórias passadas e a certeza da fama presente; do outro lado, o apelo do novo mundo e as intrínsecas aspirações a um futuro, aparentemente menos glorioso, ainda por conhecer. Segundo o pensamento futurista de Vieira, também se extinguia então o império romano, cuja quintessência espiritual e intelectual se encontrava justamente em Roma. O novo império havia de incluir o continente americano, a parte mais ocidental do mundo.
De uma vida que durou de 1608 (Lisboa) a 1697, ou seja, todas as décadas do século, os anos que Clamor relembra terão sido dos mais atribulados e difíceis para ele. Vieira missionava no Brasil quando desapareceu, em 1656, aquele que mais emotivamente justificara as acções do jesuíta - o rei "novo" D. João IV, sepultado em S. Vicente de Fora. Pouco depois, regressado doente de mais uma expedição em terras de índios, escreve as Esperanças de Portugal Quinto Império, espécie de carta-tratado onde comenta como profecias os enigmáticos versos do Bandarra. Eram versos que andavam na cabeça de muitos portugueses, sobretudo dos sebastianistas; interpretavam-nos, desde o século anterior, de modo messiânico. Mas em vez do iminente regresso de D. Sebastião na década de 1660, que então se ia iniciar, Vieira lê nas trovas de Bandarra a promessa da ressurreição de D. João IV, a fim de vencer os Turcos e conduzir o reino de Cristo na terra. Quando chegou a Lisboa, este escrito foi apreendido pelo Santo Ofício e tomou-se o corpo de delito que havia de levar Vieira à condenação por heresia (1667).
Também resultara em catástrofe o esforço sobrehumano expendido no Brasil, quando missionário no Maranhão (Amazónia) devido à intransigente oposição dos colonos, apoiados por membros de outras ordens religiosas e por pessoal da administração local (caso do procurador eleito, Jorge de Sampayo). Os jesuítas, encabeçados por Vieira, contrariavam a generalização do trabalho forçado indígena e pretendiam para a sua ordem a organização dos aldeamentos, a fim de tutelarem os índios - espécie de órfãos de humanidade. Para esses missionários, os indígenas tornavam-se indispensáveis porque conheciam as terras do interior, eram os caçadores, remadores e pescadores. Para os colonos tratava-se de mão-de-obra, sem a qual não podiam viver - necessidades brutais de sobrevivência, já que o trabalho forçado apressava o genocídio de uma população aborígene excessivamente frágil. Os jesuítas não se haviam poupado a esforços de aproximação e conservação dos índios, sendo o maior deles o da penosa aprendizagem da língua geral, o tupi-guarani. Habituado à ordem superior de idiomas como o latim e o português, Vieira escandaliza-se com o tupi e o seu caos sonoro, "afogado na garganta", sem sílabas nem "palavras dearticuladas e humanas".
O conflito explodiu, irreversivelmente, quando acusaram os jesuítas e o próprio Vieira de abuso de confiança e de castigos demasiado rigorosos exercidos sobre alguns dos indígenas tutelados. O pretexto foi o da prisão do velho índio aculturado, Copaúba ou Lapo de Sousa, que era o "principal" de uma das
aldeias, por desobediência na prática da poligamia, expressamente vedada pelos missionários. Para nada serviu então a "lábia" do orador, pelo contrário, era ele o mais odiado, por ser o inimigo mais forte. Com a saída dos missionários ruía o projecto pelo qual se batera no Brasil. Desse empenho resultaram os discursos mais veementes de crítica a ministros, aristocratas e outros agentes do poder central e da administração colonial, assim como de condenação da ganância desenfreada e selvagem de homens impiedosos, quer políticos quer cidadãos comuns, no Brasil como em Lisboa. Metido à força na nau Sacramento, Vieira navega mais uma vez, rumo à capital. Foram sete as suas travessias do Atlântico, algumas delas interrompidas por naufrágios e prodigiosos salvamentos. Tempestades e naufrágios experimentou ainda em viagens mais curtas pelos mares do norte da Europa e pelo Mediterrâneo, e noutras, não menos longas, pelo mar do Amazonas.
Logo em 1662, a tomada do poder por D. Afonso VI e o conde de Castelo Melhor afasta-o mais uma vez da corte e do poder, desta feita compulsivamente. Foi desterrado em Coimbra e sujeito aos interrogatórios do inquisidor Alexandre da Silva. Acusavam-no, entre outras coisas, de afirmar sacrilegamente que Bandarra era profeta e, sobretudo, da intenção de judaizar. Seria para captar os cristãos-novos que Vieira proclamara o advento de um reino de felicidade na terra, por meio dum monarca português, antes da vinda do Anticristo e do fim dos tempos. O jesuíta defendeu-se com vigor e reforçou as suas ideias utópicas (qualificadas de heréticas) cada vez com mais e mais argumentos, em escritos proliferantes. São os textos, fragmentários uns, outros acabados, de obras - algumas ainda inéditas - designadas como Apologias, Defesas, Representações, Petições e ainda a História do Futuro. Vieira redigiu- as debaixo de febres constantes e de não menos constantes tratos de sanguessugas. Os debates com o inquisidor ficaram registados por escrito nas actas dos trinta interrogat6rios incluídas no seu Processo.
Por último, deparamos com Vieira em Roma, para onde partiu a fim de obter o favor explícito do papa contra o temível tribunal português. Aí ganhou a consagração europeia de orador sacro. Mas se em Lisboa o entristecia o ingrato desapreço em que o tinha o novo regente D. Pedro e a aristocracia cortesã, em Roma Vieira não chegou também a ser feliz, por mais cumprimentado e apreciado. O puro artifício da vida que se levava na corte mais requintada da Europa, desagradaria decerto a um homem tão idealista quão pragmático, que sempre encaminhou para o terreno estrito da palavra os luxos intelectuais produzidos pela engenhosidade. Por outro lado, queixava-se da falta de gosto com que era forçado a praticar a sua arte numa língua estrangeira, a italiana. Também não o atraía, quem sabe, a extravagância cultural da rainha Cristina, antiga discípula de Descartes e um dos maiores e mais requintados mecenas romanos, promotora de todo o tipo de manifestações artísticas e científicas (teatro, ópera, ballet, marionnettes, astronomia, física, matemática e alquimia). Convidado por ela, Vieira exibiu-se em jogos florais e nas oratórias de música sacra, intercalada com longos recitativos de prosa. É o caso do espectáculo áulico organizado em 1674, com dois "gladiadores": Vieira, a defender as Lágrimas de Heraclito e o italiano Cataneo, a expor o partido do Riso de Demócrito.
Depois de regressar a Lisboa, em 1675, havia ainda de recusar o cargo de confessor de Cristina da Suécia. Foi então que fez imprimir o primeiro tomo dos doze de Sermões, após o que decidiu atravessar pela derradeira vez o oceano, rumo à Bahia. Aí faleceu com 89 anos. Vieira não acabou de escrever alguns
dos livros projectados, como a Clavis ou Chave dos Profetas, em latim, e outros cujos originais foram arrolados e fechados com duas chaves numa arca, hoje perdida. Mas pôs então "por escrito" e "por estilo", com a ajuda do Padre Soares, fiel secretário a quem os ditava, a parte mais substancial dos sermões, enviando cada ano um tomo com quinze, para publicação na corte de Lisboa. Conclui-se assim que das várias personalidades subsumidas por Vieira - a do profeta, a do missionário, a do pregador de sua Majestade, a de político, a de legislador, a de diplomata - acabou por prevalecer a do escritor. Nos sermões, a arte de Vieira transformou muitas vezes cada um dos lances da língua portuguesa em verdadeiros passos de dança. Ainda hoje, felizmente, os podemos ver com os ouvidos e ouvir com os olhos.
forçada e violenta de S. Luís do Maranhão, em finais de 1661; Coimbra, na Mesa do tribunal da lnquisição, entre 1663 e 1666; finalmente, Roma esse "mundo abreviado", na corte sofisticada da rainha Cristina da Suécia, por volta de 1674. Três foram também as razões de cada um dos conflitos: em primeiro lugar, a posse e o destino dos índios do Brasil; depois, a intervenção pessoal do sacerdote na vida pública, do sagrado na ideologia politica, das profecias na história; por fim, os refinados jogos de virtuosismo da arte da eloquência, alternando com a barbaridade dos índios do Brasil. Dum lado, o velho mundo fechado na corte e na academia, por demais conhecido, com o seu lastro de glórias passadas e a certeza da fama presente; do outro lado, o apelo do novo mundo e as intrínsecas aspirações a um futuro, aparentemente menos glorioso, ainda por conhecer. Segundo o pensamento futurista de Vieira, também se extinguia então o império romano, cuja quintessência espiritual e intelectual se encontrava justamente em Roma. O novo império havia de incluir o continente americano, a parte mais ocidental do mundo.
De uma vida que durou de 1608 (Lisboa) a 1697, ou seja, todas as décadas do século, os anos que Clamor relembra terão sido dos mais atribulados e difíceis para ele. Vieira missionava no Brasil quando desapareceu, em 1656, aquele que mais emotivamente justificara as acções do jesuíta - o rei "novo" D. João IV, sepultado em S. Vicente de Fora. Pouco depois, regressado doente de mais uma expedição em terras de índios, escreve as Esperanças de Portugal Quinto Império, espécie de carta-tratado onde comenta como profecias os enigmáticos versos do Bandarra. Eram versos que andavam na cabeça de muitos portugueses, sobretudo dos sebastianistas; interpretavam-nos, desde o século anterior, de modo messiânico. Mas em vez do iminente regresso de D. Sebastião na década de 1660, que então se ia iniciar, Vieira lê nas trovas de Bandarra a promessa da ressurreição de D. João IV, a fim de vencer os Turcos e conduzir o reino de Cristo na terra. Quando chegou a Lisboa, este escrito foi apreendido pelo Santo Ofício e tomou-se o corpo de delito que havia de levar Vieira à condenação por heresia (1667).
Também resultara em catástrofe o esforço sobrehumano expendido no Brasil, quando missionário no Maranhão (Amazónia) devido à intransigente oposição dos colonos, apoiados por membros de outras ordens religiosas e por pessoal da administração local (caso do procurador eleito, Jorge de Sampayo). Os jesuítas, encabeçados por Vieira, contrariavam a generalização do trabalho forçado indígena e pretendiam para a sua ordem a organização dos aldeamentos, a fim de tutelarem os índios - espécie de órfãos de humanidade. Para esses missionários, os indígenas tornavam-se indispensáveis porque conheciam as terras do interior, eram os caçadores, remadores e pescadores. Para os colonos tratava-se de mão-de-obra, sem a qual não podiam viver - necessidades brutais de sobrevivência, já que o trabalho forçado apressava o genocídio de uma população aborígene excessivamente frágil. Os jesuítas não se haviam poupado a esforços de aproximação e conservação dos índios, sendo o maior deles o da penosa aprendizagem da língua geral, o tupi-guarani. Habituado à ordem superior de idiomas como o latim e o português, Vieira escandaliza-se com o tupi e o seu caos sonoro, "afogado na garganta", sem sílabas nem "palavras dearticuladas e humanas".
O conflito explodiu, irreversivelmente, quando acusaram os jesuítas e o próprio Vieira de abuso de confiança e de castigos demasiado rigorosos exercidos sobre alguns dos indígenas tutelados. O pretexto foi o da prisão do velho índio aculturado, Copaúba ou Lapo de Sousa, que era o "principal" de uma das
aldeias, por desobediência na prática da poligamia, expressamente vedada pelos missionários. Para nada serviu então a "lábia" do orador, pelo contrário, era ele o mais odiado, por ser o inimigo mais forte. Com a saída dos missionários ruía o projecto pelo qual se batera no Brasil. Desse empenho resultaram os discursos mais veementes de crítica a ministros, aristocratas e outros agentes do poder central e da administração colonial, assim como de condenação da ganância desenfreada e selvagem de homens impiedosos, quer políticos quer cidadãos comuns, no Brasil como em Lisboa. Metido à força na nau Sacramento, Vieira navega mais uma vez, rumo à capital. Foram sete as suas travessias do Atlântico, algumas delas interrompidas por naufrágios e prodigiosos salvamentos. Tempestades e naufrágios experimentou ainda em viagens mais curtas pelos mares do norte da Europa e pelo Mediterrâneo, e noutras, não menos longas, pelo mar do Amazonas.
Logo em 1662, a tomada do poder por D. Afonso VI e o conde de Castelo Melhor afasta-o mais uma vez da corte e do poder, desta feita compulsivamente. Foi desterrado em Coimbra e sujeito aos interrogatórios do inquisidor Alexandre da Silva. Acusavam-no, entre outras coisas, de afirmar sacrilegamente que Bandarra era profeta e, sobretudo, da intenção de judaizar. Seria para captar os cristãos-novos que Vieira proclamara o advento de um reino de felicidade na terra, por meio dum monarca português, antes da vinda do Anticristo e do fim dos tempos. O jesuíta defendeu-se com vigor e reforçou as suas ideias utópicas (qualificadas de heréticas) cada vez com mais e mais argumentos, em escritos proliferantes. São os textos, fragmentários uns, outros acabados, de obras - algumas ainda inéditas - designadas como Apologias, Defesas, Representações, Petições e ainda a História do Futuro. Vieira redigiu- as debaixo de febres constantes e de não menos constantes tratos de sanguessugas. Os debates com o inquisidor ficaram registados por escrito nas actas dos trinta interrogat6rios incluídas no seu Processo.
Por último, deparamos com Vieira em Roma, para onde partiu a fim de obter o favor explícito do papa contra o temível tribunal português. Aí ganhou a consagração europeia de orador sacro. Mas se em Lisboa o entristecia o ingrato desapreço em que o tinha o novo regente D. Pedro e a aristocracia cortesã, em Roma Vieira não chegou também a ser feliz, por mais cumprimentado e apreciado. O puro artifício da vida que se levava na corte mais requintada da Europa, desagradaria decerto a um homem tão idealista quão pragmático, que sempre encaminhou para o terreno estrito da palavra os luxos intelectuais produzidos pela engenhosidade. Por outro lado, queixava-se da falta de gosto com que era forçado a praticar a sua arte numa língua estrangeira, a italiana. Também não o atraía, quem sabe, a extravagância cultural da rainha Cristina, antiga discípula de Descartes e um dos maiores e mais requintados mecenas romanos, promotora de todo o tipo de manifestações artísticas e científicas (teatro, ópera, ballet, marionnettes, astronomia, física, matemática e alquimia). Convidado por ela, Vieira exibiu-se em jogos florais e nas oratórias de música sacra, intercalada com longos recitativos de prosa. É o caso do espectáculo áulico organizado em 1674, com dois "gladiadores": Vieira, a defender as Lágrimas de Heraclito e o italiano Cataneo, a expor o partido do Riso de Demócrito.
Depois de regressar a Lisboa, em 1675, havia ainda de recusar o cargo de confessor de Cristina da Suécia. Foi então que fez imprimir o primeiro tomo dos doze de Sermões, após o que decidiu atravessar pela derradeira vez o oceano, rumo à Bahia. Aí faleceu com 89 anos. Vieira não acabou de escrever alguns
dos livros projectados, como a Clavis ou Chave dos Profetas, em latim, e outros cujos originais foram arrolados e fechados com duas chaves numa arca, hoje perdida. Mas pôs então "por escrito" e "por estilo", com a ajuda do Padre Soares, fiel secretário a quem os ditava, a parte mais substancial dos sermões, enviando cada ano um tomo com quinze, para publicação na corte de Lisboa. Conclui-se assim que das várias personalidades subsumidas por Vieira - a do profeta, a do missionário, a do pregador de sua Majestade, a de político, a de legislador, a de diplomata - acabou por prevalecer a do escritor. Nos sermões, a arte de Vieira transformou muitas vezes cada um dos lances da língua portuguesa em verdadeiros passos de dança. Ainda hoje, felizmente, os podemos ver com os ouvidos e ouvir com os olhos.
Ritmos
Tal como o título Clamor acertadamente sugere, o modo oratório de dizer era o de gritar a altas vozes, com esforço atlético, dando corpo às paixões da alma e à vontade de persuadir. Vieira viveu em plena idade da eloquência, tempo em que toda a educação se centrava na disciplina da retórica - a arte de persuadir. Nesta formação do bom orador estava implicado ao mesmo tempo um ideal de homem e a vontade de adquirir o poder de influenciar, pois parece que a arte da palavra é capaz de mover as paixões da alma. Além das chamadas faculdades de invenção, disposição e elocução ou estilo, comuns à formação do escritor, a disciplina desportiva da retórica aperfeiçoava mais duas: a memória e a voz. Deste modo, o aprendiz de orador tratava o seu corpo como o de um actor: os movimentos dos olhos, os gestos fisionómicos, as mãos, a gama dos tons vocais. Para isso se treinava em regulares representações escolares, nos colégios jesuíticos, espécie de teatro total, com música, dança, oratória e poesia, predominantemente em latim. Tem significado o facto de o autor e encenador ser o professor de retórica.
Por sua vez, o estilo de Vieira, visível e audível em rnuitos momentos de Clamor, é quase sempre acelerado, ainda que não ande para a frente, entretido a olhar para si próprio, apenas com alguns momentos mais largos e lentos. João Mendes notou esses "vagares dinâmicos de Vieira". Era texto pensado para o teatro do púlpito, para ser declamado com cadências musicais, como coisa cantada. Mas se quiséssemos ordenar o modo oratório dentro da classificação das artes, dificilmente o conseguiríamos: entre a poesia, o teatro, a recitação e o canto, com ritmos sofisticados e sem melodia. Curiosamente, todas essas artes afins constituíam limites interditos ao pregador, podendo considerar-se que o produto oratório era o que sobrava desses interditos (explícitos nos tratados técnicos). É assim que ao lamentar a "dispepsia" moderna e o pouco que a escrita "tem a ver com o som e o ouvido", Nietzsche não pôde deixar de evocar a eloquência sagrada, cujas leis, segundo ele, dependiam em parte das "refinadas necessidades do ouvido e da laringe, em parte da intensidade, duração e poder dos pulmões antigos. Um período, no sentido dos antigos, é sobretudo um todo fisiológico, na medida em que se resume a uma só expiração (...) Só o pregador sabia, na Alemanha, quanto pesa uma sílaba, uma palavra, em que sentido é que uma frase salta, se precipita, corre, termina; só ele é que tinha consciência nos seus ouvidos, má consciência muitas vezes." (Para A1ém do Bem e do Mal, § 257).
Algumas das falas do padre Vieira formam esse tipo de desenhos rítmicos apoiados em conjuntos de palavras que vão sempre variando. Adquire visibilidade o movimento do fraseado: vê-se bem como o todo e as partes se
submetem a andanças e coreografias, que assentam nas repetições e nas quantidades proporcionais. Tudo flui, ordenadamente. Pequenos cosmos verbais que vinham ao encontro das necessidades da memorização e da improvisação na cena do púlpito. A proporção, tão importante na arte oratória, foi, aliás, uma das características nucleares da poética barroca hispano- portuguesa. A favorecê-la havia a sábia intimidade de Vieira com a sua língua, como notou A J. Saraiva no Discurso Engenhoso: "O respeito infinito que às palavras dedica é perfeitamente compensado pela docilidade com que elas se lhe submetem."
Há ainda a considerar uma forma de teatralidade intrínseca aos discursos de Vieira orador, pois eles são capazes de dar a ver e fazer-nos viajar por lugares de ficção, passar por mudanças bruscas e vários registos, na ilusão de que tudo o que é evocado - autores, heróis, situações breves e até as citações - entra em cena, mexe-se, chega, e nos deixa. A multiplicidade de recursos do orador, que se esforçava por colocar os seus argumentos ante oculos, era o mais das vezes de natureza teatral.
O modo como o discurso eloquente instaurava a maravilha barroca passava não só pelo deleite estético, não só pela "energia" e "valentia" do discurso, como se dizia então, mas ainda pela emoção, pela agitação dos sentimentos: o pathos. Desde Aristóteles que dos tratados de Retórica constava obrigatoriamente a lista e a descrição morfológica dos afectos humanos. O orador tinha de ser um perito em psicologia, a fim de conseguir mover o público: "Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme, quando (...) vai do sermão para casa confuso, e atónito, sem saber parte de si, então é a pregação qual convém". Esta proposta de Vieira mostra bem como, à maneira de um fármaco, a doce tirania do verbo pretendia alterar os ânimos do paciente espectador.
Homens e bestas
Da composição química desse fármaco faziam também parte as imagens, e deparamos com as mais poderosas que se podem encontrar na literatura e nas Escrituras. Com efeito, o visionarismo de Vieira fixou-se em grandes arquétipos da imaginação humana, que os livros da Bíblia haviam desenvolvido e animado com histórias, acções, tempos, personagens, espaços, sentimentos, nomes, conflitos, vícios e virtudes. O jesuíta retirou desse vasto universo figurativo herdado da tradição o que mais se ajustava à sua personalidade e à experiência que tinha do mundo; ou então, foi a sua personalidade que se deixou moldar pelas invenções literárias, sagradas e hagiográficas. Numa das cartas da velhice, declarou a um amigo que toda a sua vida não tinha sido mais do que a representação duma comédia.
Aparecem assim figuras como a do profeta Isaías, o mais messiânico da religião judaica, ou como a de S. João Baptista, o mais messiânico da nova era. Ele clamava no deserto e encontrava-se na fronteira entre duas Leis: agia numa (judaísmo) apenas para anunciar a seguinte, não futura mas iminente, a de Cristo, que pôde apontar com o dedo. Tal qual Vieira intentou fazer no seu tempo. E também S. João foi perseguido pelos grandes que ousara criticar. Outra figura é David, pequeno combatente vencedor dos mais fortes, artista da corte e valido do rei Saul. Contemporâneo de Vieira, que o deve ter conhecido em Roma, Bernini estampou na cara do David, que esculpiu, o próprio retrato da energia concentrada de quem vai lançar certeiramente a funda contra um gigante. Outra personagem ainda é Daniel, prisioneiro na cova dos leões.
Como é sabido, Nabuco chamou-o a decifrar o sonho da estátua dos pés de argila, e o profeta leu nele a visão antecipada da sucessão dos impérios.
Eis algumas das personagens votivas que assediaram constantemente o padre Ant6nio Vieira, patentes em Clamor. Elas vêm dar corpo e enredos ao geometrismo abstracto da sua linguagem. Até o demónio era figura familiar, muitas vezes interpelada pelo pregador (o mesmo se passa com o próprio Deus), a lembrar o diabo do teatro vicentino. Com todas essas personagens se identificava Vieira, duma maneira ou doutra.
Das quantidades e números deixou-se sugestionar pelo 666, o mais presente no Apocalipse de S. João. Sabemos que foi uma obra que muito obsidiou Vieira, e tutti quanti, sobretudo na década de 1660 e no tão esperado ano de 1666. Dos sinais providenciais e "avisos" de Deus aos homens, atendeu sobretudo aos cometas e intentou medir a sua influência nas derrotas de batalhas, nas mortes e nascimentos de príncipes. Das metáforas políticas e culturais, as mais evocadas e trabalhadas são as do Dilúvio universal e da torre de Babel, ambas ligadas à imaginação vertical. Convém lembrar que o castigo da dispersão das nações e da confusão das línguas, ordenado por Deus, retratava bem a realidade plural e a alteridade impenetrável das tribos de índios americanos.
E do bestiário disponível na grande reserva bíblica que povoa a paisagem simbólica dos discursos de Vieira, é a baleia um dos animais preferidos. Porquê? Por várias razões. Tal como outros seres patentes numa imaginação barroca, reais ou fantásticos o polvo, o peixe voador, o Dágon - a baleia passa por um ente polimorfo, híbrido e reversível: é e não é peixe, está e não está na água, parece um barco sem o ser. Além disso, a dimensão colossal presta-se ao encarecimento ou elogio, tão ao gosto dos oradores de então: a baleia, como o maior animal da água, o elefante, como o maior da terra, o lince e a águia, como os mais velozes da terra e do ar. Acima de tudo, a baleia é o animal em cujo ventre viajou Jonas, o náufrago, pregador e profeta, que aportou às praias de Nínive, para prevenir a nação dos castigos divinos, e que clamou contra o próprio Deus, só porque ele lhe mostrou a misericórdia que era capaz de ter para com as nações. Dentro da baleia foi o próprio Vieira que sempre se fez viajar e que aqui aportou.
Aparecem assim figuras como a do profeta Isaías, o mais messiânico da religião judaica, ou como a de S. João Baptista, o mais messiânico da nova era. Ele clamava no deserto e encontrava-se na fronteira entre duas Leis: agia numa (judaísmo) apenas para anunciar a seguinte, não futura mas iminente, a de Cristo, que pôde apontar com o dedo. Tal qual Vieira intentou fazer no seu tempo. E também S. João foi perseguido pelos grandes que ousara criticar. Outra figura é David, pequeno combatente vencedor dos mais fortes, artista da corte e valido do rei Saul. Contemporâneo de Vieira, que o deve ter conhecido em Roma, Bernini estampou na cara do David, que esculpiu, o próprio retrato da energia concentrada de quem vai lançar certeiramente a funda contra um gigante. Outra personagem ainda é Daniel, prisioneiro na cova dos leões.
Como é sabido, Nabuco chamou-o a decifrar o sonho da estátua dos pés de argila, e o profeta leu nele a visão antecipada da sucessão dos impérios.
Eis algumas das personagens votivas que assediaram constantemente o padre Ant6nio Vieira, patentes em Clamor. Elas vêm dar corpo e enredos ao geometrismo abstracto da sua linguagem. Até o demónio era figura familiar, muitas vezes interpelada pelo pregador (o mesmo se passa com o próprio Deus), a lembrar o diabo do teatro vicentino. Com todas essas personagens se identificava Vieira, duma maneira ou doutra.
Das quantidades e números deixou-se sugestionar pelo 666, o mais presente no Apocalipse de S. João. Sabemos que foi uma obra que muito obsidiou Vieira, e tutti quanti, sobretudo na década de 1660 e no tão esperado ano de 1666. Dos sinais providenciais e "avisos" de Deus aos homens, atendeu sobretudo aos cometas e intentou medir a sua influência nas derrotas de batalhas, nas mortes e nascimentos de príncipes. Das metáforas políticas e culturais, as mais evocadas e trabalhadas são as do Dilúvio universal e da torre de Babel, ambas ligadas à imaginação vertical. Convém lembrar que o castigo da dispersão das nações e da confusão das línguas, ordenado por Deus, retratava bem a realidade plural e a alteridade impenetrável das tribos de índios americanos.
E do bestiário disponível na grande reserva bíblica que povoa a paisagem simbólica dos discursos de Vieira, é a baleia um dos animais preferidos. Porquê? Por várias razões. Tal como outros seres patentes numa imaginação barroca, reais ou fantásticos o polvo, o peixe voador, o Dágon - a baleia passa por um ente polimorfo, híbrido e reversível: é e não é peixe, está e não está na água, parece um barco sem o ser. Além disso, a dimensão colossal presta-se ao encarecimento ou elogio, tão ao gosto dos oradores de então: a baleia, como o maior animal da água, o elefante, como o maior da terra, o lince e a águia, como os mais velozes da terra e do ar. Acima de tudo, a baleia é o animal em cujo ventre viajou Jonas, o náufrago, pregador e profeta, que aportou às praias de Nínive, para prevenir a nação dos castigos divinos, e que clamou contra o próprio Deus, só porque ele lhe mostrou a misericórdia que era capaz de ter para com as nações. Dentro da baleia foi o próprio Vieira que sempre se fez viajar e que aqui aportou.