Da Costa, Dom Quixote, 2018
Da Costa (praias e montes da Caparica) não é monografia, nem ensaio, mas um flanar pelas praias da Caparica, retraçando alguma História e algumas histórias, sobretudo dos escritores que por lá passaram ou viveram. Vai à Cova do Vapor e sobe depois pelas quintas, vestígios de antigas glórias das famílias fidalgas que vinham à Margem Sul desenfadar-se da Corte e de Lisboa e acaba no Bairro dos Cooperativistas, habitação construída para então operários da Lisnave. É uma paisagem diversa e o livro procura, através de conversas e entrevistas, dar um retrato subjectivo e vivido deste recanto do mundo.
Da Costa (praias e montes da Caparica) não é monografia, nem ensaio, mas um flanar pelas praias da Caparica, retraçando alguma História e algumas histórias, sobretudo dos escritores que por lá passaram ou viveram. Vai à Cova do Vapor e sobe depois pelas quintas, vestígios de antigas glórias das famílias fidalgas que vinham à Margem Sul desenfadar-se da Corte e de Lisboa e acaba no Bairro dos Cooperativistas, habitação construída para então operários da Lisnave. É uma paisagem diversa e o livro procura, através de conversas e entrevistas, dar um retrato subjectivo e vivido deste recanto do mundo.
apresentação do livro DA COSTA na Feira do Livro 2018
A Praia é de Todos
Num qualquer domingo de Agosto é vê-los passar, os corpos que envergonhariam o Tarzan dos Macacos, tatuados, depilados, bronzeados nas camas dos solários, exibindo com brio o resultado de dietas proteicas e serviço de ginásio. São corpos que dão trabalho a tempo inteiro, preparados para a exibição da força, sobretudo da força de vontade, da disciplina, da virilidade sem ruga e sem pêlo, de peitos lisos e glabros, pernas e braços pelados. Algumas barbas parecem desenhadas a pincel fino e tinta da China, com barrocos arabescos de personagem de banda desenhada; ou são farfalhudas como bichos, imitando barbas postiças. Os cortes de cabelo apropriam-se das irregularidades do punk, mas são de alta manutenção e carinhosamente feitos e refeitos a régua e esquadro. É um corpo em que todo o animalesco foi suprimido, mantendo-se a imagem idealizada do animalesco, propondo uma aparência quase robótica de combatente de jogo de vídeo, imaginado por um computador. Impera a tatuagem, o piercing declina, mas ainda marca presença. Cada um propõe uma leitura da imagem que escolheu para o ilustrar. Opta-se por tatuagens de catálogo, algumas pormenorizadas, que devem ter doído muito. Motivos geométricos, escorpiões e dragões, flores estilizadas, cometendo alguns o erro crasso de mandar gravar o nome da amada do momento, que depois custa milhares de euros a raspar. E eu penso na utilidade que teria, em vez destas tatuagens meramente artísticas, se cada um mandasse gravar em si informações relevantes como o nome, a ocupação e o número de contacto. “Reparação de máquinas de lavar loiça” ou “trabalhos de costura”, “tintureira a domicílio”, “ Tânia, reiki e massagem terapêutica”; ou o mero aviso “sou muito bom rapaz”; ou algo íntimo, perene: “o meu sonho é trabalhar no Pingo Doce”, que é, aliás, escrito mais próprio para uma T-shirt. A praia seria um funcional serviço de anúncios e a gente sempre ia despachando a lista dos afazeres.
O corpo ideal que há duzentos anos era divino, escondido, desconhecido, secreto, branco, perfumado de óleos, empoado, elegante, erecto com requebros, recamado de sedas e veludos, ornamentado de jóias e toucados, fitas e cabeleiras - transformou-se nesta parada nua de guerreiros e amazonas. Até há bem poucas décadas, o corpo era mantido na sua porcaria natural e nunca se tomava banho – a higiene era espiritual e fazia-se com missas e expiações. A gordura, que já foi formosura nos tempos em que fidalgos e abades eram anafados, é desde o Romantismo pura e simplesmente interdita. E é assim que a partir de meados do século XX, proscrita a gordura, se prescreve o biquíni. O corpo passou a ter de estar em boa forma para ser exibido e socialmente avaliado, fazendo florescer à sua volta uma miríade de para-ciências e indústrias, mormente a da saúde, que se foi abarbatando com noventa por cento do espaço psíquico dos cidadãos. Claro que nem todos se achegam ao ideal. A maioria não pode, nem quer. Descansa e deixa-se ir. A praia relaxa e a todos acolhe com boa cara.
Quando o Burt Lancaster e a Deborah Kerr no Até à Eternidade! (1953) se enrolaram na areia de Halona Cove, na ilha de Oahu, no Havai, incendiaram a imaginação de muitos com as potencialidades do amor à borda d´água. Os seus corpos estilizados representavam o ardor misterioso do mar nocturno. Muitos resfriados se apanharam à conta de tal imagem. No entanto, ninguém fez mais pela imposição do novo regime de lazer e dos prazeres da praia do que Brigitte Bardot, seus maridos e seus cães, desde que Vadim a filmou em E Deus criou a mulher (1956). Mas foi nos anos sessenta, quando as revistas a mostravam na sua casa de La Madrague sobre o mar em Saint-Tropez, que ela se tornou no ícone do hippie chic que havia de fazer época. Em biquíni e pareo, os longos cabelos louros molhados ou enfeitados de chapéus de aba larga, o bronzeado esbraseante, a Bardot andava descalça, e toda ela era natureza, singeleza, e pureza, posando abraçada a algum galã, ou cão dálmata, ou cavalo, ou a dar de comer aos golfinhos. Isto permitia à classe média que já fazia o seu serviço de praia familiar (o famoso “dar praia às crianças”) introduzir glamour na simplicidade, usufruir de um novo protocolo que tirava os colarinhos e se passeava seminu ao sol e ao ar, dando um sentido novo à vida do pé descalço. Descalços os pobres sempre tinham andado, coitadinhos, e tisnados como tições, que nem ditavam a moda, nem pareciam mais modernos por isso. Fez também a sua parte o playboy da Riviera que saltava do descapotável, camisa justa e aberta até aos peitorais, com o fino colar de ouro a indicar morgadios. E as ladinas princesas do Mónaco, as Carolinas e as Estefânias contribuíram também para exaltar as delícias da praia, dos iates e dos “gasolinas”, e muito duque, conde de sangue ou de compra, cavaleiro da indústria, armador grego, actor de cinema e toureiro posou com a sua beldade para a revista cor-de-rosa que fazia a cabeça das massas. A cultura do futebolista é posterior, nos anos sessenta ainda íamos no Eusébio, que não propunha nenhum estilo de vida, nem era “uma história de sucesso”.
Foi assim mudando a percepção da praia e do seu potencial de prazer. O que fora coisa temível e a evitar, o mar salgado dos monstros das Descobertas, passou a actividade saudável e desejável. É claro que já nos anos quarenta os neo-realistas italianos mostravam raparigas a tomar banho de sol em fatos-de-banho ou duas-peças discretos, nas rochas e penedos das suas costas, e era bem claro que elas se divertiam. Era já o dolce far niente a fazer valer os seus direitos. E a coisa resultou tão bem, que a certa altura tudo mostrava as pernas para escandalizar as comadres e irritar os padres. Isso fazia parte integrante do prazer. Mas as bombshells italianas – Sofia Loren, Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale - não propunham, que me lembre, um modelo de vida de praia. As cenas em Rimini, n´A rapariga da mala, mostram apenas uma estância balnear corrompida pelo turismo de massas, com música e muito pecado, onde se passam coisas dramáticas.
Da “carroça de banho” dos séculos XVIII e XIX, da qual se descia praticamente vestido para a água, ao biquíni contemporâneo, o caminho não foi pacífico. O Estado Novo ainda legislava, forte e feio, sobre o que se podia e não podia mostrar. E havia multas e processos. Quando nos anos quarenta umas suecas mostraram as barrigas desnudas na Costa da Caparica, provocaram o sururu entre os pescadores e a confusão na autoridade que não sabia se devia avançar para a autuação ou sentar-se a gozar a vista. Mas o corpo das mulheres sempre foi mais problemático, tem mais a esconder e a disfarçar. Nos homens, o traje de banho flutua agora entre a tanga e a trousse dos culturistas, o clássico calção de meia-coxa azul-bebé às risquinhas dos betos e a inestética bermuda descaída. Esta é a do jovem que, ao fim da tarde, fatal como o destino, há-de jogar futebol de praia à minha frente com os seus vinte e quatro amigos.
O problema do bronzeado é que faz notar as marcas do vestuário. Desde os anos sessenta do século passado que se inventaram, sem prejuízo do decoro, formas de as minorar. As senhoras viravam-se de barriga para baixo e desapertavam a parte de cima do biquíni, ou deixavam tombar as alças para depois apresentarem ao mundo umas costas uniformemente tostadas. E muitos rapazes vi eu arregaçar as calças das bermudas até às virilhas para não correrem o risco de ter pernas bicolores. Nos anos oitenta do século passado, e isto deve com certeza ter algum significado, o topless nas praias da Costa era bem mais comum do que é agora. Nessa altura estalou a polémica, legislou-se sobre o nudismo, salvaguardando os direitos dos que, não sendo nudistas, eram obrigados não a sê-lo, mas a vê-lo. Até aos anos 90 do século passado, não se tinha ainda percebido os malefícios do sol. Não havia grandes preocupações com as crianças, que apanhavam escaldões em série, barradas de creme Nivea. Nos anos sessenta e setenta não havia o conceito de “protector solar”, mas o culto do bronzeado, uma amizade franca com o sol - e do creme Nivea passava-se, na adolescência, aos óleos pesados “para fritar”, óleo de côco e uma outra coisa que pintava a pele de cor de cenoura. Estava-se ao sol o dia todo, e a única razão para uma pessoa se pôr à sombra era ter de almoçar do farnel – oh pastéis de bacalhau! Oh talhadas de melancia! - e dormir a sesta. Dos anos quarenta aos anos sessenta, o bronzeado deixou de ser uma marca de miséria e do trabalho da jorna ao sol para passar a ser sinal do status de alguém que tem dinheiro para estar sem fazer nada. A praia era descanso, ronha e remanso, já não apenas ar livre, caminhadas e exercício físico, que tinham sido os selling points fortes da Caparica desde que percebeu que não lhe cabia competir com os lugares frios onde se repousava à falta de melhor. No entanto, o bronzeado a que poucos aspiravam desde os anos 30 do século passado encontrava resistência nos que, presos no antigo paradigma da brancura é formosura, não aceitavam que o “bronze perfeito” significasse saúde e prestígio. Vaz Ferreira, em “A Praia da Costa (Caparica), estância balnear de cura, de repouso e de turismo”(1929), censura a ideia de bronzeado, num argumento racista de fino recorte: “Vinham-me sempre com a apologia da Costa de Caparica e eu, por outras informações, lhe chamava Costa de África e punha relutância em ir lá sem albornoz e camelo. Tinha chegado mesmo a proibir um primo que voltava todos os Verões de lá amulatado de todo de me tratar por parente, no horror de me suporem sangue mestiço”. Mas isto era coisa do passado e bronzear-se, que nos anos trinta causaria ainda engulhos a muitos, nos anos setenta era quase um dever cívico. Era comum ouvir a frase, “estás muito branquinho!”, com censura, até preocupação, o que era bom sinal quanto à mudança de atitudes. Estávamos a vinte anos da diabolização do sol, de que nos devíamos proteger com cremes potentíssimos, bonés e camisetas e toda a casta de sombras a que pudéssemos deitar mão. Agora voltou a recuperar-se o sol, por via de uma praga de deficiência de vitamina D e osteoporose nas idades avançadas. Veremos o que o futuro nos reserva.
Todas as classes vêm à praia. Todas as etnias. De Lisboa, e agora cada vez mais, do mundo inteiro, chega gente que fica cada vez mais tempo. Nisto a Caparica cumpriu o seu desígnio de praia universal, multiclassista e multirracial. Ao fim da tarde aparece um clã de gitanos, o patriarca entra na água completamente vestido, cinto de couro e tudo. Elas espanejam à beira-mar e eles aventuram-se um pouco na água e depois jogam na praia uma partida de futebol em família. Chegam, entretanto, os pescadores. É a parte épica da tarde. Vêm nos barcos rápidos, a direito para os tractores que os esperam na praia. Juntam-se curiosos, poucos, a ver a faina.
O sol desce, pára a típica brisa de norte-noroeste que, em Agosto, é quase permanente nestas bandas. É o momento em que o Amor se lembra de acordar e dá início às marmeladas mais expressivas: arrastam-se toalhas, ajuntam-se os corpos, entrelaçam-se as pernas, mãos procuram no outro as partes do corpo adjacentes às zonas proibidas e ficam a pensar - e ao cair da tarde, Eros, até aí latente e como que a assobiar para o ar em meio de tanta nudez, eclode e faz-se valer. Só é mitigado pela natural discrição e timidez social dos portugueses, que não deixam de tirar o seu prazer, embora à socapa e mantendo um olho aberto vigilante sobre os mirones. Mas é uma sociedade bem tolerante, esta nossa, que aceita e acarinha todos os impulsos da juventude.
Famílias juntam por fim a tralha e as crianças dispersas para o longo caminho de regresso. Cansadas, esfaimadas, com pressa de chegar a casa para as notícias dos incêndios ou o futebol da praxe, estão reunidas as condições para a eclosão dos conflitos. Primeiro, as crianças não saem da água. Depois há a questão da areia nos pés e da integridade dos estofos do automóvel. Os portugueses, com centenas de quilómetros de costa, têm uma relação difícil com as areias. Há qualquer coisa de leidimaquebetiano neste limpar dos interdígitos podais até ao osso antes de se entrar na viatura. Depois, as crianças querem gelados. E todos querem as crianças sossegadas. Da praia, na longa fila de volta a casa, acabam amodorradas, lambuzadas de chocolate, última prestação dos prazeres do dia. Levam este relance de olhos deitado a uma outra vida, de jogos e curtições e liberdades.
O corpo ideal que há duzentos anos era divino, escondido, desconhecido, secreto, branco, perfumado de óleos, empoado, elegante, erecto com requebros, recamado de sedas e veludos, ornamentado de jóias e toucados, fitas e cabeleiras - transformou-se nesta parada nua de guerreiros e amazonas. Até há bem poucas décadas, o corpo era mantido na sua porcaria natural e nunca se tomava banho – a higiene era espiritual e fazia-se com missas e expiações. A gordura, que já foi formosura nos tempos em que fidalgos e abades eram anafados, é desde o Romantismo pura e simplesmente interdita. E é assim que a partir de meados do século XX, proscrita a gordura, se prescreve o biquíni. O corpo passou a ter de estar em boa forma para ser exibido e socialmente avaliado, fazendo florescer à sua volta uma miríade de para-ciências e indústrias, mormente a da saúde, que se foi abarbatando com noventa por cento do espaço psíquico dos cidadãos. Claro que nem todos se achegam ao ideal. A maioria não pode, nem quer. Descansa e deixa-se ir. A praia relaxa e a todos acolhe com boa cara.
Quando o Burt Lancaster e a Deborah Kerr no Até à Eternidade! (1953) se enrolaram na areia de Halona Cove, na ilha de Oahu, no Havai, incendiaram a imaginação de muitos com as potencialidades do amor à borda d´água. Os seus corpos estilizados representavam o ardor misterioso do mar nocturno. Muitos resfriados se apanharam à conta de tal imagem. No entanto, ninguém fez mais pela imposição do novo regime de lazer e dos prazeres da praia do que Brigitte Bardot, seus maridos e seus cães, desde que Vadim a filmou em E Deus criou a mulher (1956). Mas foi nos anos sessenta, quando as revistas a mostravam na sua casa de La Madrague sobre o mar em Saint-Tropez, que ela se tornou no ícone do hippie chic que havia de fazer época. Em biquíni e pareo, os longos cabelos louros molhados ou enfeitados de chapéus de aba larga, o bronzeado esbraseante, a Bardot andava descalça, e toda ela era natureza, singeleza, e pureza, posando abraçada a algum galã, ou cão dálmata, ou cavalo, ou a dar de comer aos golfinhos. Isto permitia à classe média que já fazia o seu serviço de praia familiar (o famoso “dar praia às crianças”) introduzir glamour na simplicidade, usufruir de um novo protocolo que tirava os colarinhos e se passeava seminu ao sol e ao ar, dando um sentido novo à vida do pé descalço. Descalços os pobres sempre tinham andado, coitadinhos, e tisnados como tições, que nem ditavam a moda, nem pareciam mais modernos por isso. Fez também a sua parte o playboy da Riviera que saltava do descapotável, camisa justa e aberta até aos peitorais, com o fino colar de ouro a indicar morgadios. E as ladinas princesas do Mónaco, as Carolinas e as Estefânias contribuíram também para exaltar as delícias da praia, dos iates e dos “gasolinas”, e muito duque, conde de sangue ou de compra, cavaleiro da indústria, armador grego, actor de cinema e toureiro posou com a sua beldade para a revista cor-de-rosa que fazia a cabeça das massas. A cultura do futebolista é posterior, nos anos sessenta ainda íamos no Eusébio, que não propunha nenhum estilo de vida, nem era “uma história de sucesso”.
Foi assim mudando a percepção da praia e do seu potencial de prazer. O que fora coisa temível e a evitar, o mar salgado dos monstros das Descobertas, passou a actividade saudável e desejável. É claro que já nos anos quarenta os neo-realistas italianos mostravam raparigas a tomar banho de sol em fatos-de-banho ou duas-peças discretos, nas rochas e penedos das suas costas, e era bem claro que elas se divertiam. Era já o dolce far niente a fazer valer os seus direitos. E a coisa resultou tão bem, que a certa altura tudo mostrava as pernas para escandalizar as comadres e irritar os padres. Isso fazia parte integrante do prazer. Mas as bombshells italianas – Sofia Loren, Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale - não propunham, que me lembre, um modelo de vida de praia. As cenas em Rimini, n´A rapariga da mala, mostram apenas uma estância balnear corrompida pelo turismo de massas, com música e muito pecado, onde se passam coisas dramáticas.
Da “carroça de banho” dos séculos XVIII e XIX, da qual se descia praticamente vestido para a água, ao biquíni contemporâneo, o caminho não foi pacífico. O Estado Novo ainda legislava, forte e feio, sobre o que se podia e não podia mostrar. E havia multas e processos. Quando nos anos quarenta umas suecas mostraram as barrigas desnudas na Costa da Caparica, provocaram o sururu entre os pescadores e a confusão na autoridade que não sabia se devia avançar para a autuação ou sentar-se a gozar a vista. Mas o corpo das mulheres sempre foi mais problemático, tem mais a esconder e a disfarçar. Nos homens, o traje de banho flutua agora entre a tanga e a trousse dos culturistas, o clássico calção de meia-coxa azul-bebé às risquinhas dos betos e a inestética bermuda descaída. Esta é a do jovem que, ao fim da tarde, fatal como o destino, há-de jogar futebol de praia à minha frente com os seus vinte e quatro amigos.
O problema do bronzeado é que faz notar as marcas do vestuário. Desde os anos sessenta do século passado que se inventaram, sem prejuízo do decoro, formas de as minorar. As senhoras viravam-se de barriga para baixo e desapertavam a parte de cima do biquíni, ou deixavam tombar as alças para depois apresentarem ao mundo umas costas uniformemente tostadas. E muitos rapazes vi eu arregaçar as calças das bermudas até às virilhas para não correrem o risco de ter pernas bicolores. Nos anos oitenta do século passado, e isto deve com certeza ter algum significado, o topless nas praias da Costa era bem mais comum do que é agora. Nessa altura estalou a polémica, legislou-se sobre o nudismo, salvaguardando os direitos dos que, não sendo nudistas, eram obrigados não a sê-lo, mas a vê-lo. Até aos anos 90 do século passado, não se tinha ainda percebido os malefícios do sol. Não havia grandes preocupações com as crianças, que apanhavam escaldões em série, barradas de creme Nivea. Nos anos sessenta e setenta não havia o conceito de “protector solar”, mas o culto do bronzeado, uma amizade franca com o sol - e do creme Nivea passava-se, na adolescência, aos óleos pesados “para fritar”, óleo de côco e uma outra coisa que pintava a pele de cor de cenoura. Estava-se ao sol o dia todo, e a única razão para uma pessoa se pôr à sombra era ter de almoçar do farnel – oh pastéis de bacalhau! Oh talhadas de melancia! - e dormir a sesta. Dos anos quarenta aos anos sessenta, o bronzeado deixou de ser uma marca de miséria e do trabalho da jorna ao sol para passar a ser sinal do status de alguém que tem dinheiro para estar sem fazer nada. A praia era descanso, ronha e remanso, já não apenas ar livre, caminhadas e exercício físico, que tinham sido os selling points fortes da Caparica desde que percebeu que não lhe cabia competir com os lugares frios onde se repousava à falta de melhor. No entanto, o bronzeado a que poucos aspiravam desde os anos 30 do século passado encontrava resistência nos que, presos no antigo paradigma da brancura é formosura, não aceitavam que o “bronze perfeito” significasse saúde e prestígio. Vaz Ferreira, em “A Praia da Costa (Caparica), estância balnear de cura, de repouso e de turismo”(1929), censura a ideia de bronzeado, num argumento racista de fino recorte: “Vinham-me sempre com a apologia da Costa de Caparica e eu, por outras informações, lhe chamava Costa de África e punha relutância em ir lá sem albornoz e camelo. Tinha chegado mesmo a proibir um primo que voltava todos os Verões de lá amulatado de todo de me tratar por parente, no horror de me suporem sangue mestiço”. Mas isto era coisa do passado e bronzear-se, que nos anos trinta causaria ainda engulhos a muitos, nos anos setenta era quase um dever cívico. Era comum ouvir a frase, “estás muito branquinho!”, com censura, até preocupação, o que era bom sinal quanto à mudança de atitudes. Estávamos a vinte anos da diabolização do sol, de que nos devíamos proteger com cremes potentíssimos, bonés e camisetas e toda a casta de sombras a que pudéssemos deitar mão. Agora voltou a recuperar-se o sol, por via de uma praga de deficiência de vitamina D e osteoporose nas idades avançadas. Veremos o que o futuro nos reserva.
Todas as classes vêm à praia. Todas as etnias. De Lisboa, e agora cada vez mais, do mundo inteiro, chega gente que fica cada vez mais tempo. Nisto a Caparica cumpriu o seu desígnio de praia universal, multiclassista e multirracial. Ao fim da tarde aparece um clã de gitanos, o patriarca entra na água completamente vestido, cinto de couro e tudo. Elas espanejam à beira-mar e eles aventuram-se um pouco na água e depois jogam na praia uma partida de futebol em família. Chegam, entretanto, os pescadores. É a parte épica da tarde. Vêm nos barcos rápidos, a direito para os tractores que os esperam na praia. Juntam-se curiosos, poucos, a ver a faina.
O sol desce, pára a típica brisa de norte-noroeste que, em Agosto, é quase permanente nestas bandas. É o momento em que o Amor se lembra de acordar e dá início às marmeladas mais expressivas: arrastam-se toalhas, ajuntam-se os corpos, entrelaçam-se as pernas, mãos procuram no outro as partes do corpo adjacentes às zonas proibidas e ficam a pensar - e ao cair da tarde, Eros, até aí latente e como que a assobiar para o ar em meio de tanta nudez, eclode e faz-se valer. Só é mitigado pela natural discrição e timidez social dos portugueses, que não deixam de tirar o seu prazer, embora à socapa e mantendo um olho aberto vigilante sobre os mirones. Mas é uma sociedade bem tolerante, esta nossa, que aceita e acarinha todos os impulsos da juventude.
Famílias juntam por fim a tralha e as crianças dispersas para o longo caminho de regresso. Cansadas, esfaimadas, com pressa de chegar a casa para as notícias dos incêndios ou o futebol da praxe, estão reunidas as condições para a eclosão dos conflitos. Primeiro, as crianças não saem da água. Depois há a questão da areia nos pés e da integridade dos estofos do automóvel. Os portugueses, com centenas de quilómetros de costa, têm uma relação difícil com as areias. Há qualquer coisa de leidimaquebetiano neste limpar dos interdígitos podais até ao osso antes de se entrar na viatura. Depois, as crianças querem gelados. E todos querem as crianças sossegadas. Da praia, na longa fila de volta a casa, acabam amodorradas, lambuzadas de chocolate, última prestação dos prazeres do dia. Levam este relance de olhos deitado a uma outra vida, de jogos e curtições e liberdades.
na imprensa
A costa da Caparica dos escritores é também lugar de exclusão de Maria João Costa in Rádio Renascença
A Costa da Caparica de Luísa Costa Gomes in Observador
A Costa da Caparica de Luísa Costa Gomes in Observador