DA ESCADA
Chega a casa bastante tarde, pela uma e meia da manhã, e chama o elevador, que não funciona. Carrega de novo no botão, o prédio mantém o silêncio, ela decide subir os cinco andares a pé. Sente-se pesada, bebeu demais, avança no patamar e olha para cima, a espiral fria do corrimão que ampara os degraus até à clarabóia. Suspira e avança, acelerando sem se aperceber disso, a partir do segundo andar.
Pouco depois, ouve vozes sussurrar na escada. Pára, com medo.
Choveu sem parar todo o dia. Com o Jorge tinha corrido mal outra vez. Ela estava cansada das urgências, de pé todo o dia a cirandar entre gabinetes, não tinha querido ir dançar, e dançar era um passo importante da sua rotina com o Jorge. Encontravam-se para jantar e dormir juntos uma vez a meio da semana e de novo ao sábado, se ela não estava de banco, para passarem o domingo na cama descansados. Ele ia buscá-la ao hospital, no centro comercial faziam horas para o jantar, escolhiam o restaurante, comiam, iam dançar uma horita, iam para a cama, se era quarta-feira ela voltava para casa, se era sábado dormia em casa dele. Mas hoje não houvera dança e decidiram ir para casa do Jorge mais cedo. Já iam amuados porque ele quisera debater mais uma vez a questão da existência ou não de classes sociais, que não conseguia despertar o interesse de Isabel ; quando isto acontecia, deixava-o falar, entretinha-se a olhar as pessoas das outras mesas e a criticar intimamente o modo como comiam. Em dada altura, por desfastio, ou enojada com um desses gordos burgueses que revolvia de boca aberta o seu bolo alimentar, começara a contradizer o Jorge. Para pôr uma pedra em cima das classes sociais foram bebendo brandis, ele não quis desperdiçar a noite e propôs o sexo , ela nem chegou a despir-se, e enquanto o acusava das coisas do costume e ouvia dele as acusações do costume, arrebanhou a carteira e o casaco e saiu porta fora.
As vozes, algures no patamar de cima, suaves, uma pouco mais grave do que a outra, continuavam , alternadas. A voz do rapaz, mudando, adolescente, hesitava nos princípios, muitas vezes tornava inaudíveis os fins das frases, que despachava para dentro, temendo talvez a interrupção da rapariga; parecia não controlar o seu próprio volume de som , o riso era um guinchinho de rato, havia afirmações cuja veemência se desfazia na súbita falha da voz, de repente quebrada e grave. Ela, por seu lado, atacava com verve e espírito todas as suas deixas e mantinha um ligeiro tom interrogativo que por vezes não bastava para provocar respostas. Adivinhava-se que fizesse gestos, pausas expressivas, deitasse olhares intensos, porque havia ali no meio silêncios sérios, e o retomar da conversação parecia a Isabel que se fazia sempre noutra clave, num patamar superior.
Passando-lhe o medo, ela sentara-se.
- Porque é assim : - disse a rapariga na escada do andar de cima - o corpo morre e a alma é imortal, quer dizer que sobra. A pessoa morre, vai para debaixo da terra, passam os anos e abre-se o caixão e não está lá nada; foi-se, ficou um monte de ossos, às vezes nem isso. Ou queima-se e fica feito em cinzas e depois mistura-se no estrume e serve para pôr nos campos e qualquer dia estás tu muito descansado a comer na fruta um bocado da pessoa. Já imaginaste os milhões e montões de almas imortais que ficam livres, olha só para o passado da Humanidade, os milhões e biliões de almas , onde é que isso está tudo? Hão-de estar em qualquer lado...
- As almas não ocupam espaço, não é? Podem estar em todo o lado e em lado nenhum, é a mesma coisa...
- Não ocupam espaço se forem uma ou duas. Agora milhões e biliões... De vez em quando sinto isso. O peso dessas almas por aí a voar.
- Se voam não pesam e se não ocupam espaço, não ocupam nem uma nem duas, nem um bilião. É como o zero, não existe, portanto não existe.
- Mas há vários tipos de espaço e o espaço que não se ocupa também existe. Também faz peso.
- Não acredito nisso das almas - disse ele - quando se morre, morre-se todo e pronto. Não sobra nada.
- Então - perguntou ela, mas o seu tom não era de desafio - porque é que eu tenho medo de morrer à fome?
- Tens medo de morrer à fome? - perguntou o rapaz com o seu riso de rato. - Porquê?
- Até tenho pesadelos com isso e acordo e vou ao frigorífico só para ver se há alguma coisa para o pequeno-almoço. Acho que a minha mãe até já percebeu e deixa-me sempre tudo bem à vista, para eu não me assustar.
- Mas acordas com fome?
- Não tenho fome. Nunca sequer cheguei a ter fome. Por isso é que eu acho que as almas que sobram das pessoas que morrem, voltam ao mundo nos bebés que vão nascendo.
- E os bebés choram porque têm fome?
- Eu é que acho que devo ter morrido à fome noutra vida. E que é por isso que me faz impressão nesta vida.
- Nasceste com a alma doutra pessoa? Uma coisa já gasta, em segunda mão? Não achas um bocado porco isso tudo? É como usar uns sapatos velhos ou comer a pastilha elástica doutra pessoa.
- Não se consegue explicar isso, mas a morte é capaz de ser uma forma de lavar as almas, de apagar o que lá está, como nos dvd , para se poder gravar outra vez.
- Mas se apagas o que lá está, como é que te podes lembrar que morreste à fome?
- Ficam lá uns restos, não sei. Podem apagar as coisas, mas não as sombras que elas deixam.
- Mas tu não achas - disse ele, com veemência - que esta vida é uma merda tão grande…e ainda por cima nos obrigam a voltar?
- Ninguém te obriga a voltar.
- Então para onde é que vai a minha alma?
- Não sei.
- Ou voltam todas ou não volta nenhuma. Porque é que há-de haver umas almas que voltam e outras que não?
-Sim, se calhar obrigam-te a voltar. Só há uns santos que não voltam porque fizeram tanta coisa boa que ficaram despachados, já nem alma têm, está tão limpinha que é transparente, nem Deus consegue vê-la, portanto não a consegue encontrar, não a obriga a voltar. Mas tu não tens outra hipótese.
- Porque sou mau e Deus vê bem a minha alma.
Riram-se alto, sem pejo nenhum, sem suspeitarem de Isabel.
- Mas há pessoas que não acham nada que esta vida seja uma merda. São felizes. Querem cá voltar, não querem morrer tudo de uma vez.
- Então tens de fazer muitos pecados para ter a certeza de que te obrigam a voltar.
- Mas é que nem sequer se trata de querer voltar ou não, porque uma alma não tem para onde ir a não ser para dentro de outro corpo. O que é que achas que uma alma andava por aí a fazer sozinha a voar, para onde é que ia? E eu se calhar tenho esta mania porque a minha alma, ou a alma que agora é a minha, já pertenceu a uma pessoa que morreu à fome, num campo de concentração ou a uma criança em África, ou noutro sítio.
Houve aqui um silêncio prolongado que fez Isabel hesitar. Bastava mexer um músculo, raspar com o salto do sapato no degrau, para que eles se calassem, se debruçassem a ver quem ali estava. E o que iriam dizer a seguir, a frase misteriosa e salvadora que os faria talvez ligarem-se para sempre, ou continuarem hesitantes à procura do caminho de um para o outro, perder-se-ia.
- Eu sinto - disse o rapaz por fim - também, às vezes, que sou outra pessoa. Se eu fosse eu, estás a ver, seria o eu do dia-a-dia, mas o eu não é o meu eu do dia-a-dia, porque eu sou outro, ou então, o eu normal já não sou eu, já fui eu, mas agora já não sou eu, ou ele é que sou eu...?
- Não sabes desses eus todos qual é o teu eu?
- O que eu quero dizer é que eu sou o eu normal do dia-a-dia, o eu que tu vês e os outros vêem, o que vai à escola e ouve... mas sou diferente disso, sou outro que não é esse. Mas se eu fosse sempre o meu eu já cá não estava.
- E essa pessoa que tu sentes que és, é capaz de ser uma alma doutra pessoa dentro do teu corpo a fazer-te medo de coisas de que não tens nada que ter medo.
- Eu não tenho medo - disse ele - sinto é que não sou eu.
- Sentes que és pessoas diferentes, como é que sabes qual é que és tu e qual é que não és?
- Agora sou eu.
- E eu também agora sou eu aqui contigo.
- Há uns dias tive que ir ao dentista e estava de boca aberta e ele tem um espelho enorme à frente da cadeira, daquelas que sobem e descem e deitam e levantam, vi-me no espelho e não era eu, com um babete à frente e uma coisa pendurada na boca. Não era o eu de todos os dias, era um tipo que eu vi num vídeo, um médico ou coisa assim, que matava gente, violava as mulheres e depois matava-as com uma anestesia e ninguém o apanhava, só lá para a quinta ou sexta mulher é que a polícia começou a desconfiar do homem.
- Mas não eras tu.
- Não.
- E porque é que foste pensar que eras um médico maluco que mata mulheres e não pensaste que eras um homem do talho com um cachimbo na boca?
- Também podia ser.
- Mas não foi. É o mesmo comigo. Porque é que eu tenho medo de morrer à fome? Lá em casa sempre houve tudo, muito, a minha mãe é fanática da cozinha, mata e esfola coelhos à mão, já te contei essa? Pega nos coelhos pelas orelhas e dá-lhes uma cacetada com o rolo-da-massa e depois tira-lhes a pele como se lhes despisse uma camisola.
- Achas que os animais também sabem que vão morrer? - perguntou o rapaz.
- Eles não podem falar, não é? Mas podem sentir e eu acho que eles sentem medo. Estás a ver o Estevão, o meu cachorro, sabe logo quando vai apanhar no focinho, fica a tremer, achas que quando pegam num coelho pelas orelhas e o deixam pendurado no ar ele não sabe que lhe vai acontecer alguma coisa de mal? É claro que sente e é horrível, quando se pensa nisso e estamos a comer um frango e sabemos que o desgraçado deve ter sabido que ia morrer.
- Um frango? - perguntou ele - Achas que o frango também tem sentimentos?
- Então o coelho tem e o frango não tem porquê? São tudo bichos e até do mesmo tamanho, mais ou menos.
Aqui houve outro silêncio, mas breve, transitório. Isabel estava a sentir-se muito cansada e fechou os olhos. A escada era de pedra, com súbitas correntes de ar que não correspondiam a nenhum movimento físico. Almas que por ali passavam, talvez, a caminho de outros patamares. Começava a duvidar do seu poder de ligar e desligar os dois miúdos, desconfiando do valor e da importância do que diziam. Queria calcular, só pela experiência de vida, se aquela seria ou não uma conversa fundadora. Séria e empenhada era ela com certeza. Talvez não tivesse grande consequência interrompê-los, talvez o seu saltar de transmigrações a poli-identidades não passasse de uma forma de adiarem revelarem-se e comprometerem-se um com o outro. Parecia-lhe que ambos queriam fazê-lo, mas por enquanto, talvez por ser a primeira vez que se sentavam naquele degrau, o desencontro fazia vivaz o seu trabalho. Mas também o estreitar do encontro se fazia valer. Como quer que fosse, o seu era um poder inevitável, mais cedo ou mais tarde teria de subir e quebrar os fios da conversa.
- Achas que a sotôra de Português tem alma?- perguntou ele.
- Deve ser a alma dum cão raivoso que morreu numa floresta gelada para onde teve de fugir sozinho depois de morder toda a gente na aldeia - disse ela.
- É lixada , parece que gosta de gozar connosco.
- Se tiver alma, vai para o Inferno.
- Para o Inferno? Não achas que ela reencarna numa toupeira ou numa cobra ou num animal assim horroroso?
- Cobra não, eu gosto de cobras. Uma coisa mais horrível, reencarna num cancro ou numa doença que não tem cura. O que me faz impressão é... Já viste que nunca mais nos livramos do que fazemos? O que se faz, fica feito para sempre e não pode ser desfeito. E sofremos as consequências pelas várias vidas fora.
Ele concordava, entusiasmou-se:
- Dá um bocado de medo até de mexer um dedo. Já viste se eu agora te vou dizer uma coisa com uma intenção e tu percebes outra coisa ou percebes que a minha intenção era outra, muito diferente... quando me responderes, já vai ficar tudo lixado só porque não percebeste o que eu disse, nem a intenção com que disse.
- Podemos falar mais e tentar perceber.
- Mas não vês que se eu disser uma coisa e tu perceberes outra, quando disseres a coisa seguinte já vais com a ideia de que eu disse uma coisa que não disse, ou não disse com essa intenção, e portanto o que tu disseres já vem enganado e mesmo que eu diga que não era o que eu queria dizer, tu se calhar vais achar que aquilo que percebeste do que eu disse é mais importante do que aquilo que eu disse mesmo ou julgo que disse...
- E por aí fora, sem fim... Cada vez nos afastamos mais e estamos cada vez mais longe daquilo que queríamos dizer no princípio.
- Parece que, de cada vez que queremos acertar e dizer exactamente o que se passa, mais nos enganamos. É como estar a lutar contra uma corrente forte, que nos afasta da praia, e vemos a praia cada vez mais longe, e vamos arrastados para o alto mar e ninguém nos pode ajudar.
Ele calou-se e pela primeira vez a rapariga não lhe deu resposta. Isabel sentiu um aperto na garganta, encolheu-se mais no seu canto, esperou que algum deles soubesse o que fazer.
- E se eu faço uma coisa que te magoa muito? - perguntou ela - E depois morro ou tu morres e não há mais conversa? Não achas pior do que tentar acertar? Ou do que andar enganado?
Ele não disse nada.
- Na nossa turma somos trinta - disse a rapariga . Na tua turma, para aí outros trinta e tal, não é? Na escola toda, deve haver o quê? Seiscentos, mil? Então porque é que só tu e eu é que estamos aqui sentados a esta hora, nesta escada, deste prédio e a minha mãe já deve andar maluca à minha procura ?
- Mas tu se calhar podias estar aqui com outro a dizer as mesmas coisas.
- Se calhar não podia, estás a ver, e isso é que faz confusão.
- Mas para mim é bom.
Aqui houve outro silêncio, Isabel ouviu a rapariga mexer-se, sentiu-se mais intrusa do que antes porque imaginou que eles se beijavam pela primeira vez.
- Olha, Bruno.
- É bonito.
- És capaz?
- Chega cá.
- Cuidado com o cabelo.
- Está quieta.
- Não consegues?
- É lixado de abrir.
- Não, tira, tira. Tens de puxar, se não, não dá.
- Onde é que arranjaste?
- Toma, dou-te.
- Não.
- Sério, dou-te.
- Não quero, obrigado. É teu, fica com ele.
- Mas eu quero dar-to.
- Não gosto de usar coisas ao pescoço.
- Mas toda a gente usa.
- Só os maricas.
- Parvo.
-Não fiques chateada, detesto usar coisas ao pescoço e pulseiras e essas merdas.
- Está bem, não uses dá cá.
Uma pausa. E depois, ele:
- Achas que se duas pessoas gostarem muito uma da outra, depois de morrerem , quando entram noutro corpo, encontram a pessoa de quem gostaram na vida anterior?
- Isso queria dizer que pelos tempos fora as duas pessoas andavam sempre uma com a outra, era capaz de ser um bocado monótono. Não havia grande variedade, estás a ver. Acabavam por não aprender nada.
- Mas se elas se sentissem bem uma com a outra... E se cada uma tivesse vivido várias vidas, já não seriam as mesmas pessoas.
- Se não eram as mesmas, porque haviam de se encontrar outra vez?
Tinha ficado magoada com a recusa dele. O rapaz também compreendera que só avançando podia reparar o mal. E disse, violento:
- Pois eu não quero cá voltar. Nem sequer quero cá ficar por muito tempo. Digo-te, já fiz um pacto comigo mesmo, vou-me embora se a minha vida não melhorar.
- Vais-te embora para onde?
- Logo vês.
- Está-se assim tão mal no Grande Forte do Silêncio?
- Fortaleza do Silêncio. Quando se mexem, nem que seja pouco, acho que se vão atirar um contra o outro e que se vão despedaçar. Tipo Luta de Titãs. Até quando estão quietos me fazem medo. Mas agora os dragões já não lançam chamas. Recolheram as garras, pôs-se cada um no seu canto, nem se olham, só rosnam. Ao jantar, tremo o tempo todo. Fica-me a comida entalada numa bola na garganta, não passa. Penso : é agora, ele vai atirar-lhe com a faca do bife, é agora, ela vai estrangulá-lo com o guardanapo.
- Isso é um bocado impossível.
- É possível que seja impossível. Não os conheces.
- Não podes estar sempre a pensar neles. Tens de pensar na tua vida.
- Com o peso daquelas duas almas em cima de mim? Não consigo pensar em nada.
- E as tuas irmãs?
- Risinhos, umas galinhas.
- Não te podes chatear tanto. Não ligues, finge que não existem.
- Quem não vai existir sou eu.
- Cala-te com isso. Se começas a pensar assim, a certa altura até já achas normal e isso é perigoso.
- Mas queres que eu te diga ou não queres saber?
Ela calou-se. Em baixo, Isabel dividia-se : uma era a médica de hospital competente e alarmada perante a ameaça de suicídio, a outra a vencida, compassiva, silenciosa perante os ecos da escada. Depois ouviu, incrédula, o ronco do elevador. Alguém subia, alguém com o poder de fazer andar o mesmo elevador que se recusara a transportá-la. Olhou para o relógio, eram duas e meia, o seu primeiro impulso não foi esconder-se dos miúdos, mas temer por eles qualquer interrupção, o medo que alguém mais viesse ouvir o que diziam, interferir, interromper o processo. Alguém, quem sabe, que não tivesse conquistado, sentado na pedra fria, com os joelhos gelados e fixos, o mérito de os ouvir. Ficaram calados à espera de que o elevador parasse, o que fez, todo insólito, encravando a meio de dois andares. Isabel calculou que em breve se ouviria um restolhar de gente, gritos de socorro, murros na porta. Mas ninguém chamou. E, passado pouco tempo, ela pôs o fenómeno na classe das coisas que acontecem sem razão alguma, descarga arbitrária de electricidade ou poltergeist de trazer por casa, mudou a posição das pernas, esticando-as uma a uma e acordando-as com massagens, e a rapariga disse:
- Os meus também não são fáceis de aturar, o que é que imaginas? A maior parte do tempo até parece que estavam melhor sem mim, ficam ali todos melados, olhos nos olhos, e vão-se fechar no quarto, outra lua-de-mel, Delícia? E lá vão eles, nem lhes ponho mais a vista em cima. E a minha mãe já a ouvi dizer que gosta de mim, claro que gosta, sempre sou filha, mas que se eu não tivesse nascido era igual.
- Não acredito. Do que tu contas, os teus pais dão-se bem e estão sempre a pensar em ti.
Ela não quis contrariá-lo, na verdade não parecia ter uma desgraça para lhe opor.
- Não contes isto a ninguém - pediu ele. - Fiz este pacto. Dei a Deus um ano para melhorar as coisas. Se Ele não quiser, e não o fizer, vou para debaixo do comboio.
- Achas que Deus está preocupado contigo? Achas que não tem mais nada em que pensar? Olha os milhões de crianças a morrer de fome em África…Mata-te, a ver se alguém te ajuda!
Ela estava zangada, traída: aquela amizade ainda não era assim tão importante para ele. Ele calava-se, magoado.
Isabel imaginou-a a estender a mão ao amigo, no escuro. Ele teria de lhe tocar para a sentir gelada.
- Estás gelada! - disse ele.
- Nem sinto as pernas.
De repente, levantaram-se e começaram a descer as escadas, depressa, comendo degraus. Num instante chegavam ao patamar onde Isabel, apanhada de surpresa, tentava compor uma imagem credível, procurando decidir se devia levantar-se e fingir que vinha agora mesmo a subir as escadas ou que se encontrava adormecida como qualquer vagabundo vulgar sem outro sítio onde passar a noite. Resolveu ignorá-los. Deixou-se estar sentada com o queixo enterrado nos joelhos, a olhar em frente, os braços rodeando os joelhos, contemplando o patamar inferior, brilhando ténue e quase sinistro, forrado a laje branca. Ouviu-os chegar e estacar a um passo dela, era mais que certo que trocavam algum olhar que ela não quis ver.
Inclinou o tronco para se chegar ainda mais à parede e alargar o espaço da passagem. Sentiu os poderosos cheiros deles, os ténis molhados, o tilintar de mochilas e percebeu que o rapaz se adiantava, de cabeça baixa, as costas curvadas, fugindo nas pernas muito altas. Mas a rapariga voltara-se para encarar Isabel, com um pé fincado no degrau em que ela se sentava, e o outro dois degraus abaixo, o que lhe dava um aspecto provocante de um pegador de touros. Levantando os olhos para ela, Isabel sentiu-se um fantasma, uma alma timorata que ainda não tivera a coragem nem de morrer nem de reencarnar. Toda aberta num sorriso, baixando a cabeça até quase tocar a cara de Isabel, a rapariga olhou-a sem piedade e levou-lhe um dedo indicador à boca. Era silêncio o que ela impunha: dizia a sua capacidade de tomar ela própria, sozinha, conta do amigo.
in Império do Amor, Tinta Permanente, 2001
(conto bastante rescrito, 2019)
Pouco depois, ouve vozes sussurrar na escada. Pára, com medo.
Choveu sem parar todo o dia. Com o Jorge tinha corrido mal outra vez. Ela estava cansada das urgências, de pé todo o dia a cirandar entre gabinetes, não tinha querido ir dançar, e dançar era um passo importante da sua rotina com o Jorge. Encontravam-se para jantar e dormir juntos uma vez a meio da semana e de novo ao sábado, se ela não estava de banco, para passarem o domingo na cama descansados. Ele ia buscá-la ao hospital, no centro comercial faziam horas para o jantar, escolhiam o restaurante, comiam, iam dançar uma horita, iam para a cama, se era quarta-feira ela voltava para casa, se era sábado dormia em casa dele. Mas hoje não houvera dança e decidiram ir para casa do Jorge mais cedo. Já iam amuados porque ele quisera debater mais uma vez a questão da existência ou não de classes sociais, que não conseguia despertar o interesse de Isabel ; quando isto acontecia, deixava-o falar, entretinha-se a olhar as pessoas das outras mesas e a criticar intimamente o modo como comiam. Em dada altura, por desfastio, ou enojada com um desses gordos burgueses que revolvia de boca aberta o seu bolo alimentar, começara a contradizer o Jorge. Para pôr uma pedra em cima das classes sociais foram bebendo brandis, ele não quis desperdiçar a noite e propôs o sexo , ela nem chegou a despir-se, e enquanto o acusava das coisas do costume e ouvia dele as acusações do costume, arrebanhou a carteira e o casaco e saiu porta fora.
As vozes, algures no patamar de cima, suaves, uma pouco mais grave do que a outra, continuavam , alternadas. A voz do rapaz, mudando, adolescente, hesitava nos princípios, muitas vezes tornava inaudíveis os fins das frases, que despachava para dentro, temendo talvez a interrupção da rapariga; parecia não controlar o seu próprio volume de som , o riso era um guinchinho de rato, havia afirmações cuja veemência se desfazia na súbita falha da voz, de repente quebrada e grave. Ela, por seu lado, atacava com verve e espírito todas as suas deixas e mantinha um ligeiro tom interrogativo que por vezes não bastava para provocar respostas. Adivinhava-se que fizesse gestos, pausas expressivas, deitasse olhares intensos, porque havia ali no meio silêncios sérios, e o retomar da conversação parecia a Isabel que se fazia sempre noutra clave, num patamar superior.
Passando-lhe o medo, ela sentara-se.
- Porque é assim : - disse a rapariga na escada do andar de cima - o corpo morre e a alma é imortal, quer dizer que sobra. A pessoa morre, vai para debaixo da terra, passam os anos e abre-se o caixão e não está lá nada; foi-se, ficou um monte de ossos, às vezes nem isso. Ou queima-se e fica feito em cinzas e depois mistura-se no estrume e serve para pôr nos campos e qualquer dia estás tu muito descansado a comer na fruta um bocado da pessoa. Já imaginaste os milhões e montões de almas imortais que ficam livres, olha só para o passado da Humanidade, os milhões e biliões de almas , onde é que isso está tudo? Hão-de estar em qualquer lado...
- As almas não ocupam espaço, não é? Podem estar em todo o lado e em lado nenhum, é a mesma coisa...
- Não ocupam espaço se forem uma ou duas. Agora milhões e biliões... De vez em quando sinto isso. O peso dessas almas por aí a voar.
- Se voam não pesam e se não ocupam espaço, não ocupam nem uma nem duas, nem um bilião. É como o zero, não existe, portanto não existe.
- Mas há vários tipos de espaço e o espaço que não se ocupa também existe. Também faz peso.
- Não acredito nisso das almas - disse ele - quando se morre, morre-se todo e pronto. Não sobra nada.
- Então - perguntou ela, mas o seu tom não era de desafio - porque é que eu tenho medo de morrer à fome?
- Tens medo de morrer à fome? - perguntou o rapaz com o seu riso de rato. - Porquê?
- Até tenho pesadelos com isso e acordo e vou ao frigorífico só para ver se há alguma coisa para o pequeno-almoço. Acho que a minha mãe até já percebeu e deixa-me sempre tudo bem à vista, para eu não me assustar.
- Mas acordas com fome?
- Não tenho fome. Nunca sequer cheguei a ter fome. Por isso é que eu acho que as almas que sobram das pessoas que morrem, voltam ao mundo nos bebés que vão nascendo.
- E os bebés choram porque têm fome?
- Eu é que acho que devo ter morrido à fome noutra vida. E que é por isso que me faz impressão nesta vida.
- Nasceste com a alma doutra pessoa? Uma coisa já gasta, em segunda mão? Não achas um bocado porco isso tudo? É como usar uns sapatos velhos ou comer a pastilha elástica doutra pessoa.
- Não se consegue explicar isso, mas a morte é capaz de ser uma forma de lavar as almas, de apagar o que lá está, como nos dvd , para se poder gravar outra vez.
- Mas se apagas o que lá está, como é que te podes lembrar que morreste à fome?
- Ficam lá uns restos, não sei. Podem apagar as coisas, mas não as sombras que elas deixam.
- Mas tu não achas - disse ele, com veemência - que esta vida é uma merda tão grande…e ainda por cima nos obrigam a voltar?
- Ninguém te obriga a voltar.
- Então para onde é que vai a minha alma?
- Não sei.
- Ou voltam todas ou não volta nenhuma. Porque é que há-de haver umas almas que voltam e outras que não?
-Sim, se calhar obrigam-te a voltar. Só há uns santos que não voltam porque fizeram tanta coisa boa que ficaram despachados, já nem alma têm, está tão limpinha que é transparente, nem Deus consegue vê-la, portanto não a consegue encontrar, não a obriga a voltar. Mas tu não tens outra hipótese.
- Porque sou mau e Deus vê bem a minha alma.
Riram-se alto, sem pejo nenhum, sem suspeitarem de Isabel.
- Mas há pessoas que não acham nada que esta vida seja uma merda. São felizes. Querem cá voltar, não querem morrer tudo de uma vez.
- Então tens de fazer muitos pecados para ter a certeza de que te obrigam a voltar.
- Mas é que nem sequer se trata de querer voltar ou não, porque uma alma não tem para onde ir a não ser para dentro de outro corpo. O que é que achas que uma alma andava por aí a fazer sozinha a voar, para onde é que ia? E eu se calhar tenho esta mania porque a minha alma, ou a alma que agora é a minha, já pertenceu a uma pessoa que morreu à fome, num campo de concentração ou a uma criança em África, ou noutro sítio.
Houve aqui um silêncio prolongado que fez Isabel hesitar. Bastava mexer um músculo, raspar com o salto do sapato no degrau, para que eles se calassem, se debruçassem a ver quem ali estava. E o que iriam dizer a seguir, a frase misteriosa e salvadora que os faria talvez ligarem-se para sempre, ou continuarem hesitantes à procura do caminho de um para o outro, perder-se-ia.
- Eu sinto - disse o rapaz por fim - também, às vezes, que sou outra pessoa. Se eu fosse eu, estás a ver, seria o eu do dia-a-dia, mas o eu não é o meu eu do dia-a-dia, porque eu sou outro, ou então, o eu normal já não sou eu, já fui eu, mas agora já não sou eu, ou ele é que sou eu...?
- Não sabes desses eus todos qual é o teu eu?
- O que eu quero dizer é que eu sou o eu normal do dia-a-dia, o eu que tu vês e os outros vêem, o que vai à escola e ouve... mas sou diferente disso, sou outro que não é esse. Mas se eu fosse sempre o meu eu já cá não estava.
- E essa pessoa que tu sentes que és, é capaz de ser uma alma doutra pessoa dentro do teu corpo a fazer-te medo de coisas de que não tens nada que ter medo.
- Eu não tenho medo - disse ele - sinto é que não sou eu.
- Sentes que és pessoas diferentes, como é que sabes qual é que és tu e qual é que não és?
- Agora sou eu.
- E eu também agora sou eu aqui contigo.
- Há uns dias tive que ir ao dentista e estava de boca aberta e ele tem um espelho enorme à frente da cadeira, daquelas que sobem e descem e deitam e levantam, vi-me no espelho e não era eu, com um babete à frente e uma coisa pendurada na boca. Não era o eu de todos os dias, era um tipo que eu vi num vídeo, um médico ou coisa assim, que matava gente, violava as mulheres e depois matava-as com uma anestesia e ninguém o apanhava, só lá para a quinta ou sexta mulher é que a polícia começou a desconfiar do homem.
- Mas não eras tu.
- Não.
- E porque é que foste pensar que eras um médico maluco que mata mulheres e não pensaste que eras um homem do talho com um cachimbo na boca?
- Também podia ser.
- Mas não foi. É o mesmo comigo. Porque é que eu tenho medo de morrer à fome? Lá em casa sempre houve tudo, muito, a minha mãe é fanática da cozinha, mata e esfola coelhos à mão, já te contei essa? Pega nos coelhos pelas orelhas e dá-lhes uma cacetada com o rolo-da-massa e depois tira-lhes a pele como se lhes despisse uma camisola.
- Achas que os animais também sabem que vão morrer? - perguntou o rapaz.
- Eles não podem falar, não é? Mas podem sentir e eu acho que eles sentem medo. Estás a ver o Estevão, o meu cachorro, sabe logo quando vai apanhar no focinho, fica a tremer, achas que quando pegam num coelho pelas orelhas e o deixam pendurado no ar ele não sabe que lhe vai acontecer alguma coisa de mal? É claro que sente e é horrível, quando se pensa nisso e estamos a comer um frango e sabemos que o desgraçado deve ter sabido que ia morrer.
- Um frango? - perguntou ele - Achas que o frango também tem sentimentos?
- Então o coelho tem e o frango não tem porquê? São tudo bichos e até do mesmo tamanho, mais ou menos.
Aqui houve outro silêncio, mas breve, transitório. Isabel estava a sentir-se muito cansada e fechou os olhos. A escada era de pedra, com súbitas correntes de ar que não correspondiam a nenhum movimento físico. Almas que por ali passavam, talvez, a caminho de outros patamares. Começava a duvidar do seu poder de ligar e desligar os dois miúdos, desconfiando do valor e da importância do que diziam. Queria calcular, só pela experiência de vida, se aquela seria ou não uma conversa fundadora. Séria e empenhada era ela com certeza. Talvez não tivesse grande consequência interrompê-los, talvez o seu saltar de transmigrações a poli-identidades não passasse de uma forma de adiarem revelarem-se e comprometerem-se um com o outro. Parecia-lhe que ambos queriam fazê-lo, mas por enquanto, talvez por ser a primeira vez que se sentavam naquele degrau, o desencontro fazia vivaz o seu trabalho. Mas também o estreitar do encontro se fazia valer. Como quer que fosse, o seu era um poder inevitável, mais cedo ou mais tarde teria de subir e quebrar os fios da conversa.
- Achas que a sotôra de Português tem alma?- perguntou ele.
- Deve ser a alma dum cão raivoso que morreu numa floresta gelada para onde teve de fugir sozinho depois de morder toda a gente na aldeia - disse ela.
- É lixada , parece que gosta de gozar connosco.
- Se tiver alma, vai para o Inferno.
- Para o Inferno? Não achas que ela reencarna numa toupeira ou numa cobra ou num animal assim horroroso?
- Cobra não, eu gosto de cobras. Uma coisa mais horrível, reencarna num cancro ou numa doença que não tem cura. O que me faz impressão é... Já viste que nunca mais nos livramos do que fazemos? O que se faz, fica feito para sempre e não pode ser desfeito. E sofremos as consequências pelas várias vidas fora.
Ele concordava, entusiasmou-se:
- Dá um bocado de medo até de mexer um dedo. Já viste se eu agora te vou dizer uma coisa com uma intenção e tu percebes outra coisa ou percebes que a minha intenção era outra, muito diferente... quando me responderes, já vai ficar tudo lixado só porque não percebeste o que eu disse, nem a intenção com que disse.
- Podemos falar mais e tentar perceber.
- Mas não vês que se eu disser uma coisa e tu perceberes outra, quando disseres a coisa seguinte já vais com a ideia de que eu disse uma coisa que não disse, ou não disse com essa intenção, e portanto o que tu disseres já vem enganado e mesmo que eu diga que não era o que eu queria dizer, tu se calhar vais achar que aquilo que percebeste do que eu disse é mais importante do que aquilo que eu disse mesmo ou julgo que disse...
- E por aí fora, sem fim... Cada vez nos afastamos mais e estamos cada vez mais longe daquilo que queríamos dizer no princípio.
- Parece que, de cada vez que queremos acertar e dizer exactamente o que se passa, mais nos enganamos. É como estar a lutar contra uma corrente forte, que nos afasta da praia, e vemos a praia cada vez mais longe, e vamos arrastados para o alto mar e ninguém nos pode ajudar.
Ele calou-se e pela primeira vez a rapariga não lhe deu resposta. Isabel sentiu um aperto na garganta, encolheu-se mais no seu canto, esperou que algum deles soubesse o que fazer.
- E se eu faço uma coisa que te magoa muito? - perguntou ela - E depois morro ou tu morres e não há mais conversa? Não achas pior do que tentar acertar? Ou do que andar enganado?
Ele não disse nada.
- Na nossa turma somos trinta - disse a rapariga . Na tua turma, para aí outros trinta e tal, não é? Na escola toda, deve haver o quê? Seiscentos, mil? Então porque é que só tu e eu é que estamos aqui sentados a esta hora, nesta escada, deste prédio e a minha mãe já deve andar maluca à minha procura ?
- Mas tu se calhar podias estar aqui com outro a dizer as mesmas coisas.
- Se calhar não podia, estás a ver, e isso é que faz confusão.
- Mas para mim é bom.
Aqui houve outro silêncio, Isabel ouviu a rapariga mexer-se, sentiu-se mais intrusa do que antes porque imaginou que eles se beijavam pela primeira vez.
- Olha, Bruno.
- É bonito.
- És capaz?
- Chega cá.
- Cuidado com o cabelo.
- Está quieta.
- Não consegues?
- É lixado de abrir.
- Não, tira, tira. Tens de puxar, se não, não dá.
- Onde é que arranjaste?
- Toma, dou-te.
- Não.
- Sério, dou-te.
- Não quero, obrigado. É teu, fica com ele.
- Mas eu quero dar-to.
- Não gosto de usar coisas ao pescoço.
- Mas toda a gente usa.
- Só os maricas.
- Parvo.
-Não fiques chateada, detesto usar coisas ao pescoço e pulseiras e essas merdas.
- Está bem, não uses dá cá.
Uma pausa. E depois, ele:
- Achas que se duas pessoas gostarem muito uma da outra, depois de morrerem , quando entram noutro corpo, encontram a pessoa de quem gostaram na vida anterior?
- Isso queria dizer que pelos tempos fora as duas pessoas andavam sempre uma com a outra, era capaz de ser um bocado monótono. Não havia grande variedade, estás a ver. Acabavam por não aprender nada.
- Mas se elas se sentissem bem uma com a outra... E se cada uma tivesse vivido várias vidas, já não seriam as mesmas pessoas.
- Se não eram as mesmas, porque haviam de se encontrar outra vez?
Tinha ficado magoada com a recusa dele. O rapaz também compreendera que só avançando podia reparar o mal. E disse, violento:
- Pois eu não quero cá voltar. Nem sequer quero cá ficar por muito tempo. Digo-te, já fiz um pacto comigo mesmo, vou-me embora se a minha vida não melhorar.
- Vais-te embora para onde?
- Logo vês.
- Está-se assim tão mal no Grande Forte do Silêncio?
- Fortaleza do Silêncio. Quando se mexem, nem que seja pouco, acho que se vão atirar um contra o outro e que se vão despedaçar. Tipo Luta de Titãs. Até quando estão quietos me fazem medo. Mas agora os dragões já não lançam chamas. Recolheram as garras, pôs-se cada um no seu canto, nem se olham, só rosnam. Ao jantar, tremo o tempo todo. Fica-me a comida entalada numa bola na garganta, não passa. Penso : é agora, ele vai atirar-lhe com a faca do bife, é agora, ela vai estrangulá-lo com o guardanapo.
- Isso é um bocado impossível.
- É possível que seja impossível. Não os conheces.
- Não podes estar sempre a pensar neles. Tens de pensar na tua vida.
- Com o peso daquelas duas almas em cima de mim? Não consigo pensar em nada.
- E as tuas irmãs?
- Risinhos, umas galinhas.
- Não te podes chatear tanto. Não ligues, finge que não existem.
- Quem não vai existir sou eu.
- Cala-te com isso. Se começas a pensar assim, a certa altura até já achas normal e isso é perigoso.
- Mas queres que eu te diga ou não queres saber?
Ela calou-se. Em baixo, Isabel dividia-se : uma era a médica de hospital competente e alarmada perante a ameaça de suicídio, a outra a vencida, compassiva, silenciosa perante os ecos da escada. Depois ouviu, incrédula, o ronco do elevador. Alguém subia, alguém com o poder de fazer andar o mesmo elevador que se recusara a transportá-la. Olhou para o relógio, eram duas e meia, o seu primeiro impulso não foi esconder-se dos miúdos, mas temer por eles qualquer interrupção, o medo que alguém mais viesse ouvir o que diziam, interferir, interromper o processo. Alguém, quem sabe, que não tivesse conquistado, sentado na pedra fria, com os joelhos gelados e fixos, o mérito de os ouvir. Ficaram calados à espera de que o elevador parasse, o que fez, todo insólito, encravando a meio de dois andares. Isabel calculou que em breve se ouviria um restolhar de gente, gritos de socorro, murros na porta. Mas ninguém chamou. E, passado pouco tempo, ela pôs o fenómeno na classe das coisas que acontecem sem razão alguma, descarga arbitrária de electricidade ou poltergeist de trazer por casa, mudou a posição das pernas, esticando-as uma a uma e acordando-as com massagens, e a rapariga disse:
- Os meus também não são fáceis de aturar, o que é que imaginas? A maior parte do tempo até parece que estavam melhor sem mim, ficam ali todos melados, olhos nos olhos, e vão-se fechar no quarto, outra lua-de-mel, Delícia? E lá vão eles, nem lhes ponho mais a vista em cima. E a minha mãe já a ouvi dizer que gosta de mim, claro que gosta, sempre sou filha, mas que se eu não tivesse nascido era igual.
- Não acredito. Do que tu contas, os teus pais dão-se bem e estão sempre a pensar em ti.
Ela não quis contrariá-lo, na verdade não parecia ter uma desgraça para lhe opor.
- Não contes isto a ninguém - pediu ele. - Fiz este pacto. Dei a Deus um ano para melhorar as coisas. Se Ele não quiser, e não o fizer, vou para debaixo do comboio.
- Achas que Deus está preocupado contigo? Achas que não tem mais nada em que pensar? Olha os milhões de crianças a morrer de fome em África…Mata-te, a ver se alguém te ajuda!
Ela estava zangada, traída: aquela amizade ainda não era assim tão importante para ele. Ele calava-se, magoado.
Isabel imaginou-a a estender a mão ao amigo, no escuro. Ele teria de lhe tocar para a sentir gelada.
- Estás gelada! - disse ele.
- Nem sinto as pernas.
De repente, levantaram-se e começaram a descer as escadas, depressa, comendo degraus. Num instante chegavam ao patamar onde Isabel, apanhada de surpresa, tentava compor uma imagem credível, procurando decidir se devia levantar-se e fingir que vinha agora mesmo a subir as escadas ou que se encontrava adormecida como qualquer vagabundo vulgar sem outro sítio onde passar a noite. Resolveu ignorá-los. Deixou-se estar sentada com o queixo enterrado nos joelhos, a olhar em frente, os braços rodeando os joelhos, contemplando o patamar inferior, brilhando ténue e quase sinistro, forrado a laje branca. Ouviu-os chegar e estacar a um passo dela, era mais que certo que trocavam algum olhar que ela não quis ver.
Inclinou o tronco para se chegar ainda mais à parede e alargar o espaço da passagem. Sentiu os poderosos cheiros deles, os ténis molhados, o tilintar de mochilas e percebeu que o rapaz se adiantava, de cabeça baixa, as costas curvadas, fugindo nas pernas muito altas. Mas a rapariga voltara-se para encarar Isabel, com um pé fincado no degrau em que ela se sentava, e o outro dois degraus abaixo, o que lhe dava um aspecto provocante de um pegador de touros. Levantando os olhos para ela, Isabel sentiu-se um fantasma, uma alma timorata que ainda não tivera a coragem nem de morrer nem de reencarnar. Toda aberta num sorriso, baixando a cabeça até quase tocar a cara de Isabel, a rapariga olhou-a sem piedade e levou-lhe um dedo indicador à boca. Era silêncio o que ela impunha: dizia a sua capacidade de tomar ela própria, sozinha, conta do amigo.
in Império do Amor, Tinta Permanente, 2001
(conto bastante rescrito, 2019)