Eça de Queirós: um episódio menos conhecido da sua intimidade
Tomado da fúria de escavar, nem ouviu o trovão que assustou os outros . Só muito remotamente se apercebeu do uivo rouco do pequeno Albert Dureau que, sentado no seu carrinho solitário, no meio da relva, abria muito a boca a olhar o céu . José Maria largara a pá que usara na praia, em Val-André e arrancava à mão as raízes que já deviam pertencer à sebe de lilases e os longos filamentos de relva; a Maria dava gargalhadas troçando do medo de Lucien, que parecia tão estouvado e afinal tremia com uma pinga de chuva e o estalar do trovão. Agarrou-se a ele, puxou-o mais para debaixo do arbusto e esqueceu-se do Zezé que continuava de cara no chão, os joelhos enterrados na terra mole, unhas pretas, cada vez mais fundo.
Interrompeu-os o grito de dona Isabel que vinha a correr pelo jardim. Queria que se abrigassem da chuva . Não ouvindo resposta abriu a pequena cancela que separava o jardim dos Queirós do jardim dos Dureau e pôs-se a anunciar em voz muito alta a ementa do lanche que os esperava a todos na cozinha. A Maria foi a primeira a ceder, assim que ouviu o santo nome do arroz-doce, resto do jantar é certo, mas arroz-doce tout de même - e o Lucien correu atrás dela. A ama de Albert, enorme, de lenço branco na cabeça, limpando as mãos às ancas, saía entretanto da casa gémea com todo o seu tempo e sorrindo correspondia ao tolo esgar da criança.
- Oui, mon bébé, oui. On est là.
Arrastava o carrinho para dentro, aos solavancos pela escada acima. O Zezé só parou de esgaravatar quando sentiu o peso de Isabel ao seu lado e viu pelo canto do olho as botinas negras cuidadosamente afastadas do monte de terra que ele coleccionara ; curvada sobre ele, apreciando o trabalho feito, indiferente à chuva fraquinha que descia em halo dos castanheiros e das tílias, dona Isabel Correia esperava. Zé Maria levantou-se, sacudiu-se e pôs-se a caminho de casa. Sentia a nurse andando atrás dele e entretinha-se a despachar o passo, para a apressar a ela. Gradualmente, foi começando a correr - e ela rindo atrás dele, a ver se o apanhava, o que se deu a meio da escadaria de pedra da entrada , e com muitas cócegas o obrigou a sentar-se nos degraus para lhe descalçar as botas cheias de lama e carregá-lo para dentro debaixo do braço como uma encomenda postal. Depositado na entrada, o Zezé correu descalço para a cozinha, onde se escondeu.
Tinha já quase oito anos e diziam que sabia fazer versos. Gostava de mapas e charadas e aprendia Latim. Mi carissime pater, escreveria mais tarde, na última carta ao pai, scribo tibi eam epistolam in latinum ,etc. e assinava Josephus. A irmã mais velha ocupava muito espaço, ele achava-a gorda, era a preferida do Papá. A mãe deslumbrante preferia-o a ele. A ele que fazia versos. Ouvia os gritos dos irmãos mais pequenos na sala, a voz da cozinheira que dava ordens à criada Maria, o criado Charles que passava para cá e para lá, mesmo rente ao seu esconderijo, sem dar por ele. Todas as vozes da casa, na complexa tarefa de dar de comer a três meninos, o chamavam para a sala. Quando se calaram, desistindo de o procurar, ele saíu pela porta da despensa e apresentou-se. Os irmãos estavam distraídos a beber o leite. A mãe passou-lhe as mãos no cabelo, desaprovou os pés descalços, mandou a criada buscar uns sapatos secos e outra camisola, pediu ao Charles que trouxesse uma toalha para esfregar o cabelo do menino e penteou-o, com súbitos pequenos intervalos para o beijar.
- Qu-est-ce qu´il fait, Papa? - perguntou, quando se viu saciado.
- Mais vous savez très bien que Papa travaille.
- C´est quoi , son travail?
- Vous savez très bien que Papa écrit.
- Mais qu´est-ce qu´il écrit, Papa?
A Maria , nesta altura, estava interessada. O António olhava pela janela e Alberto começava a sua birra.
- Coisas - disse a mãe.
Primeiro era preciso neutralizar a Maria, que tinha por incumbência ir chamar o pai para jantar, quando ele se esquecia de descer. António e Alberto, demasiado ocupados em serem pequenos, não lhe inventavam quaisquer obstáculos.
Não tinham ainda batido as seis horas, mas era já noite. O vento soprava sem hostilidade, era uma brisa confortável, que decidira apenas acompanhar a chuva, para a tornar mais interessante. E isso ela era, Zezé via a poalha esvoaçar, traçando belos arcos, turbilhões, toda a sorte de formas e gozava aquele grande silêncio, o sossego tão raro na casa, como uma grande cela taciturna, contemplativa.
Quando subiam de roldão os três mais velhos ao segundo andar onde ficava o quarto das brincadeiras, contíguo ao quarto de trabalho do pai, é mais que certo que ou a Maria ou o Charles os seguiam de perto, alumiando e vigiando sem importunar. A mãe não o queria sozinho à noite na escada empunhando velas acesas. Mas não deu por ele sair, entretida a embalar ao colo o Alberto que, fito nela, não a largava da vista um só instante. E ela, rendida, ainda deitava de vez em quando uma espreitadela à sala onde a Maria e o António, sentados à mesa, desenhavam.
O Zé Maria subia lentamente, ele tinha a noção da solenidade. Parou no patamar do primeiro andar onde ficavam os quartos de dormir e apagou a vela. Agora seguiria apenas a luz fraca do bico de gás que ardia no patamar de cima, até vislumbrar o risco luminoso por baixo da porta fechada do gabinete do pai.
Ia tão cheio de precauções que a meio desse último lance, percebeu que se esquecera de respirar. Parou diante da porta, à escuta. Não se ouvia nada. Pelo buraco da fechadura não viu mais que as familiares estantes de carvalho, cheias de livros encadernados, ordenadíssimos. E a banca de trabalho, da altura das estantes, com o tampo inclinado, sob o qual reinava um esboço de confusão. A lareira estava acesa e no grande espelho que ficava sobre ela, viu reflectida, ao longe, a sombra do pai. Abriu a porta sem medo, apenas sem ruído, para que o não notassem. Viu a figura alta e esguia , em pé, de costas para a porta, a cabeça curvada sobre um livro. Depois viu-o caminhar absorto até à lareira, chegar o livro mais à vela que ardia no parapeito ; ali ficou uns instantes a ler, fechou o livro de repente e passeou, para trás e para diante.
Zezé aproveitou uma destas passagens para se esconder atrás do reposteiro. Dali podia ver melhor, embora o espectáculo tivesse o seu quê de monótono. O pai tirava um livro da estante, ou da mesa de trabalho, ou de qualquer outro lugar, abria-o, fechava-o, dizia uma frase que ele não conseguia compreender, parava com o livro na mão, arrumava-o de novo, caminhava para cá e para lá na sala, parava, caminhava. Enrolava muito devagar um cigarro, acendia-o, puxava duas fumaças, deitava-o no cinzeiro, esquecia-se dele e ia enrolar outro cigarro para diante do espelho, desta vez falando redondamente sozinho. Mas calou-se de repente, a cabeça erguida, posta um pouco de lado, um meio-sorriso nos lábios, que lembrou ao Zezé, num calafrio, a tola expressão retardada do pequeno Albert Dureau.O pai esqueceu-se ainda desse segundo cigarro, e atrás da banca alta, cantarolando, entreteve-se a dobrar a margem e a cortar à faca tiras de papel glacé que juntava no tampo a seu lado. Quando achou que tinha terminado,voltou ao início do ciclo, rebuscando livros, enrolando cigarros, caminhando para cá e para lá - mas aquela felicidade que Zezé primeiro vira nele, tornara-se num caminhar sombrio, de cenho carregado, que mordia a mortalha e se esquecia do livro aberto para resmungar, cabisbaixo, fechado.
Pensou o filho que ele havia de ser um animal numa gaiola. Que espécie de animal seria, Zezé não sabia dizer. Não lhe parecia animal de ameaças, grandioso,inesperado. Um animal doente, isso sim. E também todo doméstico, como os gatos pesa-papéis que datavam do tempo em que houvera duas gatas em casa,ou como os cães e os pardais de louça que enfeitavam as mesas e as estantes. Um animal doméstico velho e doente. Aquele passear não era de tigre, nem de leão, mas de bicho aborrecido, que ansiava por uma distracção. Zézé interessou-se de novo por ele quando o viu precipitar-se sobre a alta banca de trabalho, molhar a pena no tinteiro de cristal facetado e arranhar a folha de papel - riscando-a, primeiro em traços largos e depois em gestos mais miúdos. De onde estava não conseguia ver bem, percebia com clareza que o casaco de trabalho do pai se descompusera, que ele escrevia com os braços muito levantados, a cabeça curvada sobre a folha, sem sorrir uma única vez. A testa franzida encarava a página difícil que não queria ceder. Zezé via o monóculo baloiçar desamparado.
O que lhe passou pela cabeça foi a imagem de um grande cão crucificado. Um longo cão negro arquejante com as patas sobre os ombros do seu dono. Quando ia começar a lamber-lhe a cara, o Zé Maria acordou, para ouvir o dito áspero do pai:
- Isto é que eu sou uma besta!
E assim lhe resolvia o enigma. O pai não conseguia escrever versos. Não era como o Zezé, que rimava os seus tombeaux com bateaux e roseaux sem se alterar. Père com mère. Penser com aimer.
Pareceu-lhe ouvir passos na escada. Era de certeza a Maria que vinha estragar tudo. Adiantando-se à irmã ,Zezé espirrou.
O pai suspendeu-se. Abriu muito os olhos, fez um ar excessivamente espantado, fingiu não ter percebido de onde vinha o som. Já cheio de riso, Zezé forçou novo espirro, abanou um pouco a cortina. Viu o pai dirigir-se pé ante pé na direcção contrária, com grandes gestos de comédia, empunhando a pena como um punhal.
- Anda aqui um grave resfriado - dizia ele - onde estará ele, esse grave resfriado?
E fingia procurar nos lugares impossíveis, dentro de caixas de cigarros e de livros de estampas, por trás de estantes e dentro do tinteiro, retirando flores das jarras e espreitando a água, inquisitivo. Com estas actividades vinha brincando, onde estará o resfriadíssimo gravíssimo, o serious cold, very cold indeed and serious, o very serious rhume, somebody sneezed , oh yes a sizeable sneeze, oh yes through a snorty snout, qui est-ce qui a snizé?, onde estará o très rhumant méche, o méchant rhume - e assim se ia aproximando, em círculos cada vez mais apertados, do Zezé que se encolhia, deleitado, à espera de que ele abrisse a cortina.
Quando a Maria finalmente entrou, já eles estavam nos braços um do outro, rindo.
Nota: este é um texto de ficção.
in “RETRATOS DE EÇA DE QUEIRÓS”, ed. CAMPO DAS LETRAS e FUNDAÇÃO EÇA DE QUEIRÓS, Novembro 2000
Interrompeu-os o grito de dona Isabel que vinha a correr pelo jardim. Queria que se abrigassem da chuva . Não ouvindo resposta abriu a pequena cancela que separava o jardim dos Queirós do jardim dos Dureau e pôs-se a anunciar em voz muito alta a ementa do lanche que os esperava a todos na cozinha. A Maria foi a primeira a ceder, assim que ouviu o santo nome do arroz-doce, resto do jantar é certo, mas arroz-doce tout de même - e o Lucien correu atrás dela. A ama de Albert, enorme, de lenço branco na cabeça, limpando as mãos às ancas, saía entretanto da casa gémea com todo o seu tempo e sorrindo correspondia ao tolo esgar da criança.
- Oui, mon bébé, oui. On est là.
Arrastava o carrinho para dentro, aos solavancos pela escada acima. O Zezé só parou de esgaravatar quando sentiu o peso de Isabel ao seu lado e viu pelo canto do olho as botinas negras cuidadosamente afastadas do monte de terra que ele coleccionara ; curvada sobre ele, apreciando o trabalho feito, indiferente à chuva fraquinha que descia em halo dos castanheiros e das tílias, dona Isabel Correia esperava. Zé Maria levantou-se, sacudiu-se e pôs-se a caminho de casa. Sentia a nurse andando atrás dele e entretinha-se a despachar o passo, para a apressar a ela. Gradualmente, foi começando a correr - e ela rindo atrás dele, a ver se o apanhava, o que se deu a meio da escadaria de pedra da entrada , e com muitas cócegas o obrigou a sentar-se nos degraus para lhe descalçar as botas cheias de lama e carregá-lo para dentro debaixo do braço como uma encomenda postal. Depositado na entrada, o Zezé correu descalço para a cozinha, onde se escondeu.
Tinha já quase oito anos e diziam que sabia fazer versos. Gostava de mapas e charadas e aprendia Latim. Mi carissime pater, escreveria mais tarde, na última carta ao pai, scribo tibi eam epistolam in latinum ,etc. e assinava Josephus. A irmã mais velha ocupava muito espaço, ele achava-a gorda, era a preferida do Papá. A mãe deslumbrante preferia-o a ele. A ele que fazia versos. Ouvia os gritos dos irmãos mais pequenos na sala, a voz da cozinheira que dava ordens à criada Maria, o criado Charles que passava para cá e para lá, mesmo rente ao seu esconderijo, sem dar por ele. Todas as vozes da casa, na complexa tarefa de dar de comer a três meninos, o chamavam para a sala. Quando se calaram, desistindo de o procurar, ele saíu pela porta da despensa e apresentou-se. Os irmãos estavam distraídos a beber o leite. A mãe passou-lhe as mãos no cabelo, desaprovou os pés descalços, mandou a criada buscar uns sapatos secos e outra camisola, pediu ao Charles que trouxesse uma toalha para esfregar o cabelo do menino e penteou-o, com súbitos pequenos intervalos para o beijar.
- Qu-est-ce qu´il fait, Papa? - perguntou, quando se viu saciado.
- Mais vous savez très bien que Papa travaille.
- C´est quoi , son travail?
- Vous savez très bien que Papa écrit.
- Mais qu´est-ce qu´il écrit, Papa?
A Maria , nesta altura, estava interessada. O António olhava pela janela e Alberto começava a sua birra.
- Coisas - disse a mãe.
Primeiro era preciso neutralizar a Maria, que tinha por incumbência ir chamar o pai para jantar, quando ele se esquecia de descer. António e Alberto, demasiado ocupados em serem pequenos, não lhe inventavam quaisquer obstáculos.
Não tinham ainda batido as seis horas, mas era já noite. O vento soprava sem hostilidade, era uma brisa confortável, que decidira apenas acompanhar a chuva, para a tornar mais interessante. E isso ela era, Zezé via a poalha esvoaçar, traçando belos arcos, turbilhões, toda a sorte de formas e gozava aquele grande silêncio, o sossego tão raro na casa, como uma grande cela taciturna, contemplativa.
Quando subiam de roldão os três mais velhos ao segundo andar onde ficava o quarto das brincadeiras, contíguo ao quarto de trabalho do pai, é mais que certo que ou a Maria ou o Charles os seguiam de perto, alumiando e vigiando sem importunar. A mãe não o queria sozinho à noite na escada empunhando velas acesas. Mas não deu por ele sair, entretida a embalar ao colo o Alberto que, fito nela, não a largava da vista um só instante. E ela, rendida, ainda deitava de vez em quando uma espreitadela à sala onde a Maria e o António, sentados à mesa, desenhavam.
O Zé Maria subia lentamente, ele tinha a noção da solenidade. Parou no patamar do primeiro andar onde ficavam os quartos de dormir e apagou a vela. Agora seguiria apenas a luz fraca do bico de gás que ardia no patamar de cima, até vislumbrar o risco luminoso por baixo da porta fechada do gabinete do pai.
Ia tão cheio de precauções que a meio desse último lance, percebeu que se esquecera de respirar. Parou diante da porta, à escuta. Não se ouvia nada. Pelo buraco da fechadura não viu mais que as familiares estantes de carvalho, cheias de livros encadernados, ordenadíssimos. E a banca de trabalho, da altura das estantes, com o tampo inclinado, sob o qual reinava um esboço de confusão. A lareira estava acesa e no grande espelho que ficava sobre ela, viu reflectida, ao longe, a sombra do pai. Abriu a porta sem medo, apenas sem ruído, para que o não notassem. Viu a figura alta e esguia , em pé, de costas para a porta, a cabeça curvada sobre um livro. Depois viu-o caminhar absorto até à lareira, chegar o livro mais à vela que ardia no parapeito ; ali ficou uns instantes a ler, fechou o livro de repente e passeou, para trás e para diante.
Zezé aproveitou uma destas passagens para se esconder atrás do reposteiro. Dali podia ver melhor, embora o espectáculo tivesse o seu quê de monótono. O pai tirava um livro da estante, ou da mesa de trabalho, ou de qualquer outro lugar, abria-o, fechava-o, dizia uma frase que ele não conseguia compreender, parava com o livro na mão, arrumava-o de novo, caminhava para cá e para lá na sala, parava, caminhava. Enrolava muito devagar um cigarro, acendia-o, puxava duas fumaças, deitava-o no cinzeiro, esquecia-se dele e ia enrolar outro cigarro para diante do espelho, desta vez falando redondamente sozinho. Mas calou-se de repente, a cabeça erguida, posta um pouco de lado, um meio-sorriso nos lábios, que lembrou ao Zezé, num calafrio, a tola expressão retardada do pequeno Albert Dureau.O pai esqueceu-se ainda desse segundo cigarro, e atrás da banca alta, cantarolando, entreteve-se a dobrar a margem e a cortar à faca tiras de papel glacé que juntava no tampo a seu lado. Quando achou que tinha terminado,voltou ao início do ciclo, rebuscando livros, enrolando cigarros, caminhando para cá e para lá - mas aquela felicidade que Zezé primeiro vira nele, tornara-se num caminhar sombrio, de cenho carregado, que mordia a mortalha e se esquecia do livro aberto para resmungar, cabisbaixo, fechado.
Pensou o filho que ele havia de ser um animal numa gaiola. Que espécie de animal seria, Zezé não sabia dizer. Não lhe parecia animal de ameaças, grandioso,inesperado. Um animal doente, isso sim. E também todo doméstico, como os gatos pesa-papéis que datavam do tempo em que houvera duas gatas em casa,ou como os cães e os pardais de louça que enfeitavam as mesas e as estantes. Um animal doméstico velho e doente. Aquele passear não era de tigre, nem de leão, mas de bicho aborrecido, que ansiava por uma distracção. Zézé interessou-se de novo por ele quando o viu precipitar-se sobre a alta banca de trabalho, molhar a pena no tinteiro de cristal facetado e arranhar a folha de papel - riscando-a, primeiro em traços largos e depois em gestos mais miúdos. De onde estava não conseguia ver bem, percebia com clareza que o casaco de trabalho do pai se descompusera, que ele escrevia com os braços muito levantados, a cabeça curvada sobre a folha, sem sorrir uma única vez. A testa franzida encarava a página difícil que não queria ceder. Zezé via o monóculo baloiçar desamparado.
O que lhe passou pela cabeça foi a imagem de um grande cão crucificado. Um longo cão negro arquejante com as patas sobre os ombros do seu dono. Quando ia começar a lamber-lhe a cara, o Zé Maria acordou, para ouvir o dito áspero do pai:
- Isto é que eu sou uma besta!
E assim lhe resolvia o enigma. O pai não conseguia escrever versos. Não era como o Zezé, que rimava os seus tombeaux com bateaux e roseaux sem se alterar. Père com mère. Penser com aimer.
Pareceu-lhe ouvir passos na escada. Era de certeza a Maria que vinha estragar tudo. Adiantando-se à irmã ,Zezé espirrou.
O pai suspendeu-se. Abriu muito os olhos, fez um ar excessivamente espantado, fingiu não ter percebido de onde vinha o som. Já cheio de riso, Zezé forçou novo espirro, abanou um pouco a cortina. Viu o pai dirigir-se pé ante pé na direcção contrária, com grandes gestos de comédia, empunhando a pena como um punhal.
- Anda aqui um grave resfriado - dizia ele - onde estará ele, esse grave resfriado?
E fingia procurar nos lugares impossíveis, dentro de caixas de cigarros e de livros de estampas, por trás de estantes e dentro do tinteiro, retirando flores das jarras e espreitando a água, inquisitivo. Com estas actividades vinha brincando, onde estará o resfriadíssimo gravíssimo, o serious cold, very cold indeed and serious, o very serious rhume, somebody sneezed , oh yes a sizeable sneeze, oh yes through a snorty snout, qui est-ce qui a snizé?, onde estará o très rhumant méche, o méchant rhume - e assim se ia aproximando, em círculos cada vez mais apertados, do Zezé que se encolhia, deleitado, à espera de que ele abrisse a cortina.
Quando a Maria finalmente entrou, já eles estavam nos braços um do outro, rindo.
Nota: este é um texto de ficção.
in “RETRATOS DE EÇA DE QUEIRÓS”, ed. CAMPO DAS LETRAS e FUNDAÇÃO EÇA DE QUEIRÓS, Novembro 2000