Educação para a Tristeza, romance, Editorial Presença, 1999
Um equívoco inicial gera uma série de equívocos. Maria de Santa Bárbara chega a uma casa numa zona remota julgando ser uma pousada. A casa, no entanto, revela-se habitada por um velho arquitecto decrépito, saído de uma linhagem de arquitectos visionários, uma criança selvagem e um infiável agente de seguros.
Um equívoco inicial gera uma série de equívocos. Maria de Santa Bárbara chega a uma casa numa zona remota julgando ser uma pousada. A casa, no entanto, revela-se habitada por um velho arquitecto decrépito, saído de uma linhagem de arquitectos visionários, uma criança selvagem e um infiável agente de seguros.
Capítulo IX
É a enfermeira Ema a palpar com mãos ambas a marmita de alumínio, recebendo ali mesmo , diferido , nas palminhas, o calor emanado do radiador eléctrico. Trata-se do frio Novembro chuvoso de Castelo Maior. Já sabe o que vai encontrar nos compartimentos da marmita, todas as segundas, quartas e sextas lá está igual a si própria a posta magra de peixe cozido e uma cenoura pequena delinquindo no ombro de um pezinho de bróculos. O copo de água espera em cima da mesa , morno, mole , organizado em níveis de depósito para emergir na superfície que não se esquece do que lhe ficou por baixo, as suas raízes de copo de água de hospital. Ema bebeu-o devagar, a cada golo a competente careta de desgosto, seguida da careta de renúncia, o cloro arranhando a garganta. Aproveitava, na ociosidade forçada, para passear os olhos sem especial entusiasmo pelo seu ambiente, o gabinete de trabalho, mobilado a estrear, os armários de madeira pintada de branco, pregados ao alto em alvíssimas paredes, a secretária de pés cromados, o sofá de napa cor de mel.
Pela vidraça da porta via, na verdade com muito pouca frequência, passar bustos que a confundiam . Só raramente apreendia a totalidade dos seres. Presa na linha do perfil enganador, na estranheza de uma camisola desconhecida, de um cabelo recentemente alterado na sua forma, na sua cor, ficava Ema impossibilitada de reconhecer o todo. A excessiva incapacidade gestaltica da enfermeira Ema tinha as suas coisas boas, como tudo, e transformava-a na campeã do serviço limpo e por etapas, mas impedia-a , por outro lado, de saber tirar conclusões e de ter visões gerais (ela encravava era no detalhe!) - e isto, para muitos, constituía ainda outra vantagem dela.
Ia espetar o garfo no jantar - e , se algum de vós ousasse chamar-lhe jantar na sua presença, a matrona sorriria azedada, encolheria os ombros, - pareceu-lhe ouvir um ruído muito leve , que não soube à partida identificar. Erguendo a cabeça, teve de a baixar de novo, pois se apercebera de uma ligeira diferença no grau de humidade dos seus dois pés, compreendeu que ali andava água, observou o chinelo direito, um género de tairoca adaptada ao uso dos hospitais, o peito do pé coberto de couro branco perfurado e ao considerar o chão, onde se desenhava um pequeno lago, bem configurado, provindo da porta, pousou o garfo que não se erguera mais que centímetro e meio do guardanapo de papel que o absorveu, levantou-se e seguiu o curso.
Atravessou o limiar da porta e , virando à direita, parou no fundo das escadas. A água escorria de cima, saltando crepitante de degrau em degrau, em delicadas cataratas de miniatura, e era bonito, o grande meio das escadas ocupado naquele efeito. Contemplado este, a enfermeira Ema preparou-se para subir a escada antes de jantar, tarefa ingente pelo peso dela enfermeira , pela energia que não tinha e apontando o pé molhado ao primeiro degrau, ocorriam-lhe de novo as consequências da desproporção das suas medidas, em que se distribuíam noventa e cinco quilos, a maior parte deles colocados na metade rasteira, por um escasso metro e sessenta de altura . Era, concluía, aquela sombra a propriamente sua, projectada nas escadas quase à inteira largura delas . Subindo lançava-a progressiva sobre as quedas de água que rechinavam, sumamente transparentes, empapando os tacos . A enfermeira Ema pousou no primeiro patamar para recobrar o fôlego, prosseguiu com um vagar cada vez maior, içando-se quase exclusivamente à força de pulso, agarrada ao corrimão . Compreendeu , chegada ao alto, que a água saía do quarto de Maria de Santa Bárbara, escoando-se por baixo da porta, de onde também vinha a luz enfermiça da vigia.
A doente acordara entretanto para se sentir praticamente imobilizada na cama, recoberta de ligaduras que lhe preenchiam o peito até ao pescoço e abaixo até às ancas , aí começando um novo troço médico, das coxas até perto dos tornozelos. Acordava do sono terapêutico por causa da humidade. Levara a mão à almofada para confirmar que estava molhada e que dos seus olhos escorria uma fluvial torrente de lágrimas que se precipitava da beira do colchão para o pavimento bem encerado, formando lago e orientando-se depois para a porta, de onde seguia pelo corredor obscuro, saltando escada a escada musicalmente até desaguar no gabinete de vigia da enfermeira Ema.
- Então, então -disse ela, entrando - o que é que tem? São dorzinhas?
Não podia falar Maria de Santa Bárbara, por via das lágrimas que lhe inundavam o rosto, lhe enchiam a boca, lhe ensopavam o pescoço. Saltavam às quatro e quatro das bolsas, corriam em todas as direcções. Esbulhava-se em lágrimas a paciente. Na cabeça não tinha uma ideia. Porque chorava? Por tudo, por nada. Pelo acidente, pelo que podia ter acontecido e não acontecera . Pelo menino, saudades. Pelo arquitecto, remorsos. Pelo Sancho, vergonha. Pela Benvinda, medo. E Eduardo? Pois, nada.
A enfermeira Ema correu, com risco da própria vida, a chamar o médico, que estava absolutamente de saída. A enfermeira Ema não percebia a doença que não se queixa e queria uma opinião especializada . O doutor Aquilino subiu devagar as quedas de água, é verdade que um tanto perplexo, as duas mãos nos bolsos da bata branca para não se deixar surpreender . Ao entrar no quarto de quatro lugares Maria ainda soluçava, a cabeça fora da cama, para que o pranto escorresse sem incómodos directamente para o soalho.
- Oh, minha querida, minha querida, -dizia a enfermeira - veja lá se cai...
E correu a deitá-la na posição correcta.
Maria era a última a saber o que se passava com ela. Quando pensou que podia articular palavras, virou-se para a autoridade do doutor Aquilino e numa voz abafada, que comia sílabas, aflita perguntava:
- O que é que eu tenho? O que é que eu tenho?
O doutor Aquilino respondeu-lhe que o que ela tinha era uma valentíssima depressão e que em vinte anos de carreira, - e fora acidentada! -, nunca tinha visto tanta lágrima junta. Ele procurava brincar, mas estava justamente impressionado. Ministrou-lhe um remédio santo, que foi sentá-la na cama e obrigá-la a contar até dez; depois até vinte, depois até trinta. Por fim, desistindo da sua hora de jantar, o médico sentou-se-lhe à cabeceira e pediu que falasse.
A primeira frase ainda entrou no domínio da clínica e Maria de Santa Bárbara confessou logo ali que quanto mais chorava mais lhe doía a costela, e quanto mais lhe doía a costela, mais ela tinha razão para chorar. Sorriram . Os aspectos mecânicos estavam esclarecidos.
Foram secando as lágrimas de Maria. Contou por alto os últimos três meses, a começar pelo malentendido que a levara à casa dos Sabe-Mais, calando a sua paixão por Sancho, realçando os papéis do velho senhor e do menino e abreviando no que dizia respeito ao cavalo, ao pardal e à cobra. Nesse momento, não percebeu - nem tal lhe interessava - que espécie de ouvinte era o doutor Aquilino. Pareceu-lhe, na primeira impressão, alguém especializado em ouvir certas coisas, que do geral da conversa retirava os três ou quatro elementos que lhe faziam falta ao diagnóstico. Essa expectativa fez com que resumisse as partes da história que julgava não se adequarem, estendendo-se em abstracções que podiam dar uma ideia mais fina do seu estado interior - Maria falava em insónia recorrente, ausência de noção do tempo, tristeza profunda, medos dispersos, sentimento de abandono e rejeição, alheamento de si própria e do mundo, desinteresse, falta de apetite, deambulação sem objectivo, incapacidade de decisão, isolamento, e desenhava uma desregulação tal dos sentidos, sobretudo dos que se vêem forçados à ausência de objecto físico, que o médico havia de ter pela frente uma ideia claríssima dos seus padecimentos.
O doutor Aquilino, sentado na berma da cadeira, as pernas juntas, as mãos nos bolsos da bata, sofria imensamente. Esperara, como de outras vezes e recriminando-se ao mesmo tempo pela insensatez , que aquela mulher se lhe dirigisse doutro modo, não sabia de que modo, mas um modo mais humano. Não era que estivesse cansado de queixas, de ouvir todas as histórias na perspectiva do diagnóstico e da cura, o mais das vezes ou ilusória ou redondamente impossível. Queria, o pobre físico, que Maria não lhe falasse enquanto médico, talvez porque, em seu sentir, ele já se encontrava fora das horas de serviço. Ou queria, talvez, que ela não estivesse doente. Ou a verdade é outra, induzida de outros factos : a cada frase de Maria, o médico sobressaltava-se. Parecia-lhe que ela descrevia não o seu, mas o estado preciso em que ele próprio se encontrava. Também ele se sentia alheado da sua vida, realizando gestos uns atrás dos outros. Era o isolamento do Hospital, num distrito tão remoto que poderia sem falsa modéstia chamar-se degredo, a mulher que se recusara a acompanhá-lo apesar das condições da sua promoção e outras mágoas que, acumuladas, se sentem violentamente com a chuva a bater nas vidraças de uma clínica vazia, de um Hospital deserto, em que uma mulher na metade da sua vida chora em torrentes despenhadas do andar de cima.
Maria estava demasiado metida consigo para se aperceber do drama de Aquilino. Nem interpretou de nenhuma forma os tristes olhares que ele lhe lançava. A bem dizer, ela não o via. Através dos olhos ardentes, ela via apenas a sua própria história, a paixão infeliz .
O doutor Aquilino passava a visitá-la duas ou três vezes por dia. Vinha ouvir falar de si próprio. Fazia-lhe um exame rápido, anunciava-lhe resultados de análises, prenunciava-lhe outros, sentava-se :
- E a cabeça, como é que vai?
Maria desbobinava da depressão, Aquilino assentia. Sabia, de experiência própria, que o desgosto não tem remédio, que é fatal como o dia de amanhã e não é por se falar nisso que o deserto deixa de o ser e as coisas melhoram . Enquanto Maria falava e ele velava a sua cabeceira como um burro, ou uma vaca, acalentando-lhe o ânimo com o bafo da sua atenção, as costelas da turista iam devagarinho ao lugar. As enfermeiras, Ema, Alda e Olga rodeavam-na de cuidados e de carinhos. Traziam-lhe revistas, faziam-lhe mimos de cozinha, gelatina, leite-creme, o ocasional éclair de chocolate e delicadezas de toilette pessoal. A princípio, estas pieguices incomodavam Maria, que julgava não as merecer e desvalorizava-as, dizendo para si que as matronas não tinham mesmo mais nada que fazer. Mas a gente habitua-se a tudo e também a visitante acabou por se afeiçoar às três dedicadas enfermeiras.
Passaram duas semanas. As análises estavam feitas, as ecografias alinhavam-se sobre a mesa , as radiografias eram claras e distintas, a ressonância magnética não acusou gravidades. Maria fazia-se àquela rotina de acordar cedo com a luz da madrugada - nos hospitais não se acredita em cortinas - , tomar o café com leite que a enfermeira de serviço lhe trazia e o pãozinho ainda quente, com um bom dia e um anúncio do tempo que ia fazer e o que ele implicava em geral, leitura do jornal, passeio a pé pelos corredores à procura de novidades, assento no gabinete das enfermeiras, onde elas faziam meia e liga e botinhas para os sobrinhos até o doutor Aquilino precisar de uma ficha ou de uma ajuda . E entre a cama e a sala da televisão, pela tarde fora, ela ia convalescendo.
Só ao fim de quinze dias é que Maria de Santa Bárbara se decidiu a abrir a mala que, sem saber como, viera parar ao Hospital. Fora aliás esta mala, sabemo-lo agora, avistada por ela sobre o armário do seu quarto de hospital, uma das causas próximas do ataque de lágrimas que fora molhar o pé da enfermeira Ema à hora do jantar.
É compreensível que Maria receasse aproximar-se da mala. Uma vez aberta e libertando monstros incalculáveis, acabaria por atiçar todas as feridas que, pela repetição, ninguém poderia garantir que se não transformassem em chagas. Maria trabalhou a sua aproximação à mala com requintes de malvadez. Primeiro, a nível psicológico. Tentou neutralizar no seu espírito a simbologia da mala, no que ela leva de carga, de transmissão, de evasão, de pequeno mundo transportável, apenso ao nosso, como sinal do eu viajante e fugitivo, do eu descontente, que se desconforma, que se procura alhures. Aniquilada esta carga mental - e se ela era pesada! - , reduzira-se a mala a uma mala simplex e Maria apercebera-se no mesmo momento de que praticamente lhe desconhecia o conteúdo, pois o seu estado no momento da emalagem não seria muito melhor do que uma alucinação.
Sentava-se na cama e observava a mala, ainda alcandorada sobre o estreito armário de metal cinzento . Não sabia como lidar com ela. Reparou que tinha medo de pensar que , um dia, brevemente, teria de despir a bata de doente e profissionalizar-se na vida civil. Esse dia, se ela pudesse, não havia de chegar nunca.
Tinha de haver um incidente que a espantasse do marasmo. Ele deu-se pequeno, de noite, sem ninguém dar por isso. Maria acordou de um pesadelo sem importância, de repente, pregando os olhos no tecto. Nesse mesmo instante, dava-se o caso de passar por ali um insecto que a doente imediatamente identificou com uma barata voadora, embora mais tarde lhe surgissem dúvidas sobre a pertinência de baratas, ainda que voadoras, pregadas no tecto. Maria voltou a fechar os olhos e adormeceu.
Este incidente, de que ela não teve uma consciência clara e não era mais do que uma espécie de cócega remota, um desconforto vago, traduzia-se num olhar insistente para as paredes, expectante, suspicioso, um olhar que pede confirmação não sabe bem de quê. E no olhar para as paredes ia incluindo, em rasantes, obliquamente, a tal mala , a caixa das mágoas passadas, em cima do armário.
Como o espírito de Maria não será dos mais directos, foi através do insecto que ela viu sem saber, por processos de transposição e desvio que só Deus - em existindo - conhece, que a doente, trabalhando a ansiedade às alturas de uma insónia e rondando o armário muito tempo, conseguiu, num impulso, dar um puxão na pega da mala , precipitando-a. Ela manteve-se fechada. A visitante ajoelhou-se, tremendo. Fez estalar os fechos. Cerrando as pálpebras, abriu a mala , aí um palmo e meteu pela abertura a mão direita. Sentiu a macieza da roupa, o restolhar de folhas e coisas duras que não sabia o que fossem. Puxou de lá uma e outra e outra folhas de papel amarelado. Reparou que estavam escritas à mão, numa caligrafia junta, mas gorda, aberta e generosa. Olhou o escrito sem fazer ideia do que seria. Arrastando-se de joelhos para a luz fraca da mesinha de cabeceira, orientando a folha para a receber em cheio, perplexa e pasmada, Maria de Santa Bárbara leu:
1 de Janeiro de 1850
Quem dera que o Terror não tivesse envenenado o calendário da Revolução! Poderia sem pejo escrever neste diário, tetradi de vindimário ou decadi de pluvioso ou pentadi de frimário , ou outra forma que assim reunisse o eminentemente racional e o irresistivelmente poético! E estaríamos no ano cinquenta e oito da nova era, se a nova era não teimasse constantemente em interromper-se! Mas é , seja novo ou não o calendário, com igual júbilo que abro hoje as portas de minha casa. Está longe de terminada. Mas este princípio é de bom augúrio e, em me sorrindo a fortuna, poderei receber pela Primavera . Ao todo, tenho a minha Sala de Música habitável, que faz também as vezes de sala de dormir, de comer, de biblioteca e de escritório. A Benta traz-me aqui as refeições e oiço todo o dia o martelar dos seus três irmãos carpinteiros que acabam de forrar os tectos e assentam as portas do andar de cima. As dificuldades da escada ficaram ontem resolvidas. Veio o homem da Covilhã para tratar da abóbada. Quando lhe mostrei o plano olhou-me como se estivesse em presença de um lunático. Mas, sendo o lunático, também fidalgo e dono de uma fortuna não despicienda, acompanhou-me os raciocínios. Trocámos impressões durante todo o dia e despediu-se já com o espírito contaminado pela ideia falansteriana. O homem, que me foi recomendado pelo António Melo, é um artista. Ser-me-ia precioso na associação que pretendo realizar.
Hoje, dia primeiro de Janeiro do ano de mil e oitocentos e cinquenta, no silêncio benvindo da folga dos obreiros, ponho a mão à escrita neste diário. Esperam-me meses de provações, que encaro com equanimidade e confiança . Usá-los-ei para me preparar, porque sei que a lide não será branda. Nada o é, quando se almeja transformar de cabo a rabo o estado das coisas.
Nasci naquela mesma noite : vinte e três de Fevereiro de 1848. Ia nos vinte e dois anos quando nasci. Minha mãe foi o levantado povo de Paris, quem o fecundou a ideia imorredoira da Liberdade. E não foi acomodado nem ordeiro o parto - pois eu nasci à força de gritos e de gemidos, cachaporrada de meia noite, a berrar nos tiroteios e nas barricadas, de baioneta em riste, a correr desorientado nas ruas que eu não conhecia, a falar uma língua que ignorava, ora seguindo uns, ora perseguido por outros, olhando sem perceber mais do que o que me estava diante dos olhos, compreendendo só com a alma ou o instinto. Eu mesmo ia sendo amassado e revolvido, no ventre da Revolução, ainda cego, ensanguentado, fermentando, crescendo, coberto de lama
Pela vidraça da porta via, na verdade com muito pouca frequência, passar bustos que a confundiam . Só raramente apreendia a totalidade dos seres. Presa na linha do perfil enganador, na estranheza de uma camisola desconhecida, de um cabelo recentemente alterado na sua forma, na sua cor, ficava Ema impossibilitada de reconhecer o todo. A excessiva incapacidade gestaltica da enfermeira Ema tinha as suas coisas boas, como tudo, e transformava-a na campeã do serviço limpo e por etapas, mas impedia-a , por outro lado, de saber tirar conclusões e de ter visões gerais (ela encravava era no detalhe!) - e isto, para muitos, constituía ainda outra vantagem dela.
Ia espetar o garfo no jantar - e , se algum de vós ousasse chamar-lhe jantar na sua presença, a matrona sorriria azedada, encolheria os ombros, - pareceu-lhe ouvir um ruído muito leve , que não soube à partida identificar. Erguendo a cabeça, teve de a baixar de novo, pois se apercebera de uma ligeira diferença no grau de humidade dos seus dois pés, compreendeu que ali andava água, observou o chinelo direito, um género de tairoca adaptada ao uso dos hospitais, o peito do pé coberto de couro branco perfurado e ao considerar o chão, onde se desenhava um pequeno lago, bem configurado, provindo da porta, pousou o garfo que não se erguera mais que centímetro e meio do guardanapo de papel que o absorveu, levantou-se e seguiu o curso.
Atravessou o limiar da porta e , virando à direita, parou no fundo das escadas. A água escorria de cima, saltando crepitante de degrau em degrau, em delicadas cataratas de miniatura, e era bonito, o grande meio das escadas ocupado naquele efeito. Contemplado este, a enfermeira Ema preparou-se para subir a escada antes de jantar, tarefa ingente pelo peso dela enfermeira , pela energia que não tinha e apontando o pé molhado ao primeiro degrau, ocorriam-lhe de novo as consequências da desproporção das suas medidas, em que se distribuíam noventa e cinco quilos, a maior parte deles colocados na metade rasteira, por um escasso metro e sessenta de altura . Era, concluía, aquela sombra a propriamente sua, projectada nas escadas quase à inteira largura delas . Subindo lançava-a progressiva sobre as quedas de água que rechinavam, sumamente transparentes, empapando os tacos . A enfermeira Ema pousou no primeiro patamar para recobrar o fôlego, prosseguiu com um vagar cada vez maior, içando-se quase exclusivamente à força de pulso, agarrada ao corrimão . Compreendeu , chegada ao alto, que a água saía do quarto de Maria de Santa Bárbara, escoando-se por baixo da porta, de onde também vinha a luz enfermiça da vigia.
A doente acordara entretanto para se sentir praticamente imobilizada na cama, recoberta de ligaduras que lhe preenchiam o peito até ao pescoço e abaixo até às ancas , aí começando um novo troço médico, das coxas até perto dos tornozelos. Acordava do sono terapêutico por causa da humidade. Levara a mão à almofada para confirmar que estava molhada e que dos seus olhos escorria uma fluvial torrente de lágrimas que se precipitava da beira do colchão para o pavimento bem encerado, formando lago e orientando-se depois para a porta, de onde seguia pelo corredor obscuro, saltando escada a escada musicalmente até desaguar no gabinete de vigia da enfermeira Ema.
- Então, então -disse ela, entrando - o que é que tem? São dorzinhas?
Não podia falar Maria de Santa Bárbara, por via das lágrimas que lhe inundavam o rosto, lhe enchiam a boca, lhe ensopavam o pescoço. Saltavam às quatro e quatro das bolsas, corriam em todas as direcções. Esbulhava-se em lágrimas a paciente. Na cabeça não tinha uma ideia. Porque chorava? Por tudo, por nada. Pelo acidente, pelo que podia ter acontecido e não acontecera . Pelo menino, saudades. Pelo arquitecto, remorsos. Pelo Sancho, vergonha. Pela Benvinda, medo. E Eduardo? Pois, nada.
A enfermeira Ema correu, com risco da própria vida, a chamar o médico, que estava absolutamente de saída. A enfermeira Ema não percebia a doença que não se queixa e queria uma opinião especializada . O doutor Aquilino subiu devagar as quedas de água, é verdade que um tanto perplexo, as duas mãos nos bolsos da bata branca para não se deixar surpreender . Ao entrar no quarto de quatro lugares Maria ainda soluçava, a cabeça fora da cama, para que o pranto escorresse sem incómodos directamente para o soalho.
- Oh, minha querida, minha querida, -dizia a enfermeira - veja lá se cai...
E correu a deitá-la na posição correcta.
Maria era a última a saber o que se passava com ela. Quando pensou que podia articular palavras, virou-se para a autoridade do doutor Aquilino e numa voz abafada, que comia sílabas, aflita perguntava:
- O que é que eu tenho? O que é que eu tenho?
O doutor Aquilino respondeu-lhe que o que ela tinha era uma valentíssima depressão e que em vinte anos de carreira, - e fora acidentada! -, nunca tinha visto tanta lágrima junta. Ele procurava brincar, mas estava justamente impressionado. Ministrou-lhe um remédio santo, que foi sentá-la na cama e obrigá-la a contar até dez; depois até vinte, depois até trinta. Por fim, desistindo da sua hora de jantar, o médico sentou-se-lhe à cabeceira e pediu que falasse.
A primeira frase ainda entrou no domínio da clínica e Maria de Santa Bárbara confessou logo ali que quanto mais chorava mais lhe doía a costela, e quanto mais lhe doía a costela, mais ela tinha razão para chorar. Sorriram . Os aspectos mecânicos estavam esclarecidos.
Foram secando as lágrimas de Maria. Contou por alto os últimos três meses, a começar pelo malentendido que a levara à casa dos Sabe-Mais, calando a sua paixão por Sancho, realçando os papéis do velho senhor e do menino e abreviando no que dizia respeito ao cavalo, ao pardal e à cobra. Nesse momento, não percebeu - nem tal lhe interessava - que espécie de ouvinte era o doutor Aquilino. Pareceu-lhe, na primeira impressão, alguém especializado em ouvir certas coisas, que do geral da conversa retirava os três ou quatro elementos que lhe faziam falta ao diagnóstico. Essa expectativa fez com que resumisse as partes da história que julgava não se adequarem, estendendo-se em abstracções que podiam dar uma ideia mais fina do seu estado interior - Maria falava em insónia recorrente, ausência de noção do tempo, tristeza profunda, medos dispersos, sentimento de abandono e rejeição, alheamento de si própria e do mundo, desinteresse, falta de apetite, deambulação sem objectivo, incapacidade de decisão, isolamento, e desenhava uma desregulação tal dos sentidos, sobretudo dos que se vêem forçados à ausência de objecto físico, que o médico havia de ter pela frente uma ideia claríssima dos seus padecimentos.
O doutor Aquilino, sentado na berma da cadeira, as pernas juntas, as mãos nos bolsos da bata, sofria imensamente. Esperara, como de outras vezes e recriminando-se ao mesmo tempo pela insensatez , que aquela mulher se lhe dirigisse doutro modo, não sabia de que modo, mas um modo mais humano. Não era que estivesse cansado de queixas, de ouvir todas as histórias na perspectiva do diagnóstico e da cura, o mais das vezes ou ilusória ou redondamente impossível. Queria, o pobre físico, que Maria não lhe falasse enquanto médico, talvez porque, em seu sentir, ele já se encontrava fora das horas de serviço. Ou queria, talvez, que ela não estivesse doente. Ou a verdade é outra, induzida de outros factos : a cada frase de Maria, o médico sobressaltava-se. Parecia-lhe que ela descrevia não o seu, mas o estado preciso em que ele próprio se encontrava. Também ele se sentia alheado da sua vida, realizando gestos uns atrás dos outros. Era o isolamento do Hospital, num distrito tão remoto que poderia sem falsa modéstia chamar-se degredo, a mulher que se recusara a acompanhá-lo apesar das condições da sua promoção e outras mágoas que, acumuladas, se sentem violentamente com a chuva a bater nas vidraças de uma clínica vazia, de um Hospital deserto, em que uma mulher na metade da sua vida chora em torrentes despenhadas do andar de cima.
Maria estava demasiado metida consigo para se aperceber do drama de Aquilino. Nem interpretou de nenhuma forma os tristes olhares que ele lhe lançava. A bem dizer, ela não o via. Através dos olhos ardentes, ela via apenas a sua própria história, a paixão infeliz .
O doutor Aquilino passava a visitá-la duas ou três vezes por dia. Vinha ouvir falar de si próprio. Fazia-lhe um exame rápido, anunciava-lhe resultados de análises, prenunciava-lhe outros, sentava-se :
- E a cabeça, como é que vai?
Maria desbobinava da depressão, Aquilino assentia. Sabia, de experiência própria, que o desgosto não tem remédio, que é fatal como o dia de amanhã e não é por se falar nisso que o deserto deixa de o ser e as coisas melhoram . Enquanto Maria falava e ele velava a sua cabeceira como um burro, ou uma vaca, acalentando-lhe o ânimo com o bafo da sua atenção, as costelas da turista iam devagarinho ao lugar. As enfermeiras, Ema, Alda e Olga rodeavam-na de cuidados e de carinhos. Traziam-lhe revistas, faziam-lhe mimos de cozinha, gelatina, leite-creme, o ocasional éclair de chocolate e delicadezas de toilette pessoal. A princípio, estas pieguices incomodavam Maria, que julgava não as merecer e desvalorizava-as, dizendo para si que as matronas não tinham mesmo mais nada que fazer. Mas a gente habitua-se a tudo e também a visitante acabou por se afeiçoar às três dedicadas enfermeiras.
Passaram duas semanas. As análises estavam feitas, as ecografias alinhavam-se sobre a mesa , as radiografias eram claras e distintas, a ressonância magnética não acusou gravidades. Maria fazia-se àquela rotina de acordar cedo com a luz da madrugada - nos hospitais não se acredita em cortinas - , tomar o café com leite que a enfermeira de serviço lhe trazia e o pãozinho ainda quente, com um bom dia e um anúncio do tempo que ia fazer e o que ele implicava em geral, leitura do jornal, passeio a pé pelos corredores à procura de novidades, assento no gabinete das enfermeiras, onde elas faziam meia e liga e botinhas para os sobrinhos até o doutor Aquilino precisar de uma ficha ou de uma ajuda . E entre a cama e a sala da televisão, pela tarde fora, ela ia convalescendo.
Só ao fim de quinze dias é que Maria de Santa Bárbara se decidiu a abrir a mala que, sem saber como, viera parar ao Hospital. Fora aliás esta mala, sabemo-lo agora, avistada por ela sobre o armário do seu quarto de hospital, uma das causas próximas do ataque de lágrimas que fora molhar o pé da enfermeira Ema à hora do jantar.
É compreensível que Maria receasse aproximar-se da mala. Uma vez aberta e libertando monstros incalculáveis, acabaria por atiçar todas as feridas que, pela repetição, ninguém poderia garantir que se não transformassem em chagas. Maria trabalhou a sua aproximação à mala com requintes de malvadez. Primeiro, a nível psicológico. Tentou neutralizar no seu espírito a simbologia da mala, no que ela leva de carga, de transmissão, de evasão, de pequeno mundo transportável, apenso ao nosso, como sinal do eu viajante e fugitivo, do eu descontente, que se desconforma, que se procura alhures. Aniquilada esta carga mental - e se ela era pesada! - , reduzira-se a mala a uma mala simplex e Maria apercebera-se no mesmo momento de que praticamente lhe desconhecia o conteúdo, pois o seu estado no momento da emalagem não seria muito melhor do que uma alucinação.
Sentava-se na cama e observava a mala, ainda alcandorada sobre o estreito armário de metal cinzento . Não sabia como lidar com ela. Reparou que tinha medo de pensar que , um dia, brevemente, teria de despir a bata de doente e profissionalizar-se na vida civil. Esse dia, se ela pudesse, não havia de chegar nunca.
Tinha de haver um incidente que a espantasse do marasmo. Ele deu-se pequeno, de noite, sem ninguém dar por isso. Maria acordou de um pesadelo sem importância, de repente, pregando os olhos no tecto. Nesse mesmo instante, dava-se o caso de passar por ali um insecto que a doente imediatamente identificou com uma barata voadora, embora mais tarde lhe surgissem dúvidas sobre a pertinência de baratas, ainda que voadoras, pregadas no tecto. Maria voltou a fechar os olhos e adormeceu.
Este incidente, de que ela não teve uma consciência clara e não era mais do que uma espécie de cócega remota, um desconforto vago, traduzia-se num olhar insistente para as paredes, expectante, suspicioso, um olhar que pede confirmação não sabe bem de quê. E no olhar para as paredes ia incluindo, em rasantes, obliquamente, a tal mala , a caixa das mágoas passadas, em cima do armário.
Como o espírito de Maria não será dos mais directos, foi através do insecto que ela viu sem saber, por processos de transposição e desvio que só Deus - em existindo - conhece, que a doente, trabalhando a ansiedade às alturas de uma insónia e rondando o armário muito tempo, conseguiu, num impulso, dar um puxão na pega da mala , precipitando-a. Ela manteve-se fechada. A visitante ajoelhou-se, tremendo. Fez estalar os fechos. Cerrando as pálpebras, abriu a mala , aí um palmo e meteu pela abertura a mão direita. Sentiu a macieza da roupa, o restolhar de folhas e coisas duras que não sabia o que fossem. Puxou de lá uma e outra e outra folhas de papel amarelado. Reparou que estavam escritas à mão, numa caligrafia junta, mas gorda, aberta e generosa. Olhou o escrito sem fazer ideia do que seria. Arrastando-se de joelhos para a luz fraca da mesinha de cabeceira, orientando a folha para a receber em cheio, perplexa e pasmada, Maria de Santa Bárbara leu:
1 de Janeiro de 1850
Quem dera que o Terror não tivesse envenenado o calendário da Revolução! Poderia sem pejo escrever neste diário, tetradi de vindimário ou decadi de pluvioso ou pentadi de frimário , ou outra forma que assim reunisse o eminentemente racional e o irresistivelmente poético! E estaríamos no ano cinquenta e oito da nova era, se a nova era não teimasse constantemente em interromper-se! Mas é , seja novo ou não o calendário, com igual júbilo que abro hoje as portas de minha casa. Está longe de terminada. Mas este princípio é de bom augúrio e, em me sorrindo a fortuna, poderei receber pela Primavera . Ao todo, tenho a minha Sala de Música habitável, que faz também as vezes de sala de dormir, de comer, de biblioteca e de escritório. A Benta traz-me aqui as refeições e oiço todo o dia o martelar dos seus três irmãos carpinteiros que acabam de forrar os tectos e assentam as portas do andar de cima. As dificuldades da escada ficaram ontem resolvidas. Veio o homem da Covilhã para tratar da abóbada. Quando lhe mostrei o plano olhou-me como se estivesse em presença de um lunático. Mas, sendo o lunático, também fidalgo e dono de uma fortuna não despicienda, acompanhou-me os raciocínios. Trocámos impressões durante todo o dia e despediu-se já com o espírito contaminado pela ideia falansteriana. O homem, que me foi recomendado pelo António Melo, é um artista. Ser-me-ia precioso na associação que pretendo realizar.
Hoje, dia primeiro de Janeiro do ano de mil e oitocentos e cinquenta, no silêncio benvindo da folga dos obreiros, ponho a mão à escrita neste diário. Esperam-me meses de provações, que encaro com equanimidade e confiança . Usá-los-ei para me preparar, porque sei que a lide não será branda. Nada o é, quando se almeja transformar de cabo a rabo o estado das coisas.
Nasci naquela mesma noite : vinte e três de Fevereiro de 1848. Ia nos vinte e dois anos quando nasci. Minha mãe foi o levantado povo de Paris, quem o fecundou a ideia imorredoira da Liberdade. E não foi acomodado nem ordeiro o parto - pois eu nasci à força de gritos e de gemidos, cachaporrada de meia noite, a berrar nos tiroteios e nas barricadas, de baioneta em riste, a correr desorientado nas ruas que eu não conhecia, a falar uma língua que ignorava, ora seguindo uns, ora perseguido por outros, olhando sem perceber mais do que o que me estava diante dos olhos, compreendendo só com a alma ou o instinto. Eu mesmo ia sendo amassado e revolvido, no ventre da Revolução, ainda cego, ensanguentado, fermentando, crescendo, coberto de lama
na imprensa
Recensão de Américo Lindeza Diogo in Colóquio/Letras
Recensão de Maria Eduarda Vasallo Pereira, in Portuguese Literary and Cultural Studies 2
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