Florinhas de Soror Nada, romance, Dom Quixote, 2018
Prémio Urbano Tavares Rodrigues, 2019
Esta é a história de uma criança que quer ser santa. Teresa Maria, nascida numa família da burguesia do interior de Portugal na segunda metade do século XX, vive a infância obcecada pelas vidas e exemplos dos santos, nomeadamente da sua homónima Teresa d’Ávila. Florinhas de Soror Nada refere ainda as Florinhas de Francisco de Assis, inspiração equívoca para o caminho tortuoso de rebeldia e submissão da protagonista até à absoluta perda da fé católica. Da casa familiar ao colégio das freiras, de onde é expulsa, até à sua fuga da casa materna, acompanhamos a vida singular de Teresa Maria, a santa que não quer sê-lo. E somos surpreendidos com episódios extraordinários da vida de alguns santos, muitos deles desconhecidos da maioria dos leitores.
Prémio Urbano Tavares Rodrigues, 2019
Esta é a história de uma criança que quer ser santa. Teresa Maria, nascida numa família da burguesia do interior de Portugal na segunda metade do século XX, vive a infância obcecada pelas vidas e exemplos dos santos, nomeadamente da sua homónima Teresa d’Ávila. Florinhas de Soror Nada refere ainda as Florinhas de Francisco de Assis, inspiração equívoca para o caminho tortuoso de rebeldia e submissão da protagonista até à absoluta perda da fé católica. Da casa familiar ao colégio das freiras, de onde é expulsa, até à sua fuga da casa materna, acompanhamos a vida singular de Teresa Maria, a santa que não quer sê-lo. E somos surpreendidos com episódios extraordinários da vida de alguns santos, muitos deles desconhecidos da maioria dos leitores.
“there can be no peace on earth with calm with calm”
Virgil Thomson e Gertrude Stein, Four Saints in Three Acts
Virgil Thomson e Gertrude Stein, Four Saints in Three Acts
prólogo |
Adeus, adeus, fique bem. Era uma rapariga loura e alta como um anjo, com os seus mesmos olhos de amor implacável. Empurrou-a com a mão firme sobre o ombro até ela estar sentada e afastou-se num passo certo, levada por uma convicção, sem se voltar. Mas era como se fosse ela, a enterrada no banco de plástico vermelho, diante de uma televisão do tamanho de uma fragata da Marinha de Guerra, era como se fosse ela a afastar-se, acenando quase, o lenço pronto ao olho – quem seria a loura aparição? Alguém muito próximo, sentia um interdito lá dentro, isso dizia serem talvez do mesmo sangue. Desaparecida a aparição na esquina do corredor, teve logo um arremedo de saudade. “E o Quincas?”, perguntou à vizinha de sala de espera, que se encolheu, provocada na sua dor. Estava ali pela sua dor, tomava-a toda. “Olhe que tem de tirar a senha”, do outro braço, um homem rouco. Ela mostrou a senha. Que dor tem, onde tem essa dor. Se sabe o seu nome, se tem nome, se a sua dor tem nome, que senha é, de que cor é. “Não vejo o meu cão”, disse ela. Mas sem a aflição de outrora, já nada convocava a aflição de outrora, o Quincas fugia e fugido ficava fugido, voltando quando voltava. Não lhe dói nada, não lhe doía nada. As dores tinham sido aos cinquenta, aos sessenta, aos setenta. Aos oitenta desistira de sofrer. Tinha as dores como se fossem de outro, com cerimónia, com indiferença. Gemia, ouvia-se gemer. Depois, ou ainda durante, esquecia. A contagem prolongada decrescente tem aspectos assim, vindo a falta de alarme da experiência e das mortes de outros, duradouras, medicadas, amparadas, torturadas, volvidas em histórias que se contam vezes demais para nos comoverem. A morte já passou, falta morrer. O seu corpo era uma coisa que ali estava no meio de outras, machina inter machinas, juntas, ferrugens, poalhas, limalhas. Manifestava-se de duas em duas horas na fome, na sede e nas vontades excretórias. Era uma pontada. Era uma cegueira. Era uma visão. Era uma queda. Era uma anca. Não revertia, acumulava. Soubera ao instante como tudo se iria passar, reconhecera sem as conhecer as caras dos gatos-pingados, sobrevivera a funerais, tomara chás e bolos de creme no regresso de cremações. Ficaram poucos, depois ninguém.
Nome? Teresa. Teresa Quê? Maria. Apelido? Lido, diz ela. Idade? Cinquenta e quatro! Setenta e dois! Oitenta e sete! Noventa e sete! Os gritos ressoam à tarzan na sala de espera vazia e ficam a bater nas paredes como o anúncio do record de uma existência em apneia. Todos se aliviaram das queixas que traziam e seguiram para casa resmungando. Ela só na sala, as cadeiras de plástico pregadas umas às outras e ao chão pelo sim e pelo não, as perguntas de uma de bata branca, esguedelhada, desleixada. Morada? Última! Sexo? Não me lembro! Filiação? Oh, minha mãe! Oh, pai do céu! Se tem filhos, perguntou a outra, ácida. Uma filha, um filho. Os contactos deles? Deles, diz ela. Natural de não me lembro. Distrito de não me lembro. Freguesia de não me lembro. Primeiro não se lembrava do passado próximo, depois do passado remoto. Não atendia ao presente. Flutuava no tempo como uma amiba. Quem a veio trazer? Alguém seria, foi embora, uma rapariga alta, linda como um anjo, ruça, rebelde, destas que dizem tudo na cara das pessoas, a juventude é a vida, não quer saber de misérias. “O que é que esta senhora está aqui a fazer? Ó enfermeira Rosa, é inadmissível, se faz favor, o cheiro que aqui está”. Dá-se voz de comando à enfermeira. “Chame alguém, que esta senhora precisa de higiene, foi abandonada”. “Abandonada o caralho. Ninguém abandona o dinheiro!”. E abriu a mão, mostrou o contado para a consulta. “Isso para que é?”, “É para pagar ao médico!”, “Qual médico?” “O da doença! O da morte!”.
O palavrão a qualquer hora em qualquer lugar datava já da Terceira Idade. Gostava de dizer, quando era velha e ainda bem-falante, que o palavrão se usa como ênfase, quando é exigido e alivia a situação. Não é para gastar banal em minudências. Mas agora sabia-lhe bem ênfase a qualquer hora do dia e o palavrão era excremento, como expelir a mão e bater. A realidade, à medida que ia perdendo textura, perdia continuidade. Havia rasgões, momentos de nada. A ênfase queria dizer que tudo na verdade sabia a pouco, se ia deslassando e que era preciso puxar pelo pouco que havia.
Vai por um caminho de terra batida, vê o Quincas ali à espera com o focinho no chão, uno com o chão e da mesma cor de areia, e há vacas, há burros dóceis, caminha dentro de um bando de estorninhos. Oh, que lindas coisas, que luz tão doce. Que pena eu não sentir tudo o que estou dizendo. E a luz não entrar em mim, operando os seus milagres. Sempre esta pecha de sempre entre mim e a luz: não ser transparente, não querer ser transparente, não me deixar trespassar. Ser um toco de matéria no caminho, a opor resistência. Há burricos anões, lagartixas repentinas, moscas do gado, ratos dos campos, uma suspeição de ratos, de bubões, de peste nas ilhas, há laparotos que à noite se atiram contra os faróis, místicos laparotos, ansiando a união com pára-choques de pequenos automóveis. O visível ganha uma presença pictórica, e ela está como numa pagela de São Francisco de Assis no meio dos bichos. Não falará com os lobos, nunca tentará sermoná-los, não acredita nos sermões. A vereda de pó vai dar a uma falésia sobre o mar. Pensa que se um dia tiver uma doença mortal, aquele é o lugar de onde há-de levantar voo. Sem ser detida por ninguém, nem por Nossa Senhora da Nazaré, que fez estacar Dom Fuas Roupinho sobre as patas traseiras do cavalo. Empinado sobre o precipício, a mão do pronto socorro do céu sofreando o movimento natural da besta. Ela duvidava que pudesse contar com outro tanto. Um impulso, um grito de horror e liberdade, e era uma vez uma velha. Assim que despegasse do chão, não havia volta a dar. Não sabia se havia de lançar-se, se deixar-se cair. Onde ir buscar essa força, a decisão que manda no impulso de recuar no última momento? Nem paz, nem salvação. Apenas ela completamente só e o zunido do ar, do ar morno e delicioso da ilha, e voar já com saudades da vida, mas tem de ser, tem de ser. O Quincas espetando a orelha, apanhado de surpresa, ganindo, indefeso, a vê-la cair a direito sobre as ondas. Que nem um prego. Afundada na imensidão das águas. Comida pelos peixes devagar da pesca à linha. Morte aérea e limpa, artesanal, sem resíduo. Apenas uns ossos limpos no fundo do oceano como algum tesouro. Adeus, adeus, fiquem bem, eu cá vou indo.
Nome? Teresa. Teresa Quê? Maria. Apelido? Lido, diz ela. Idade? Cinquenta e quatro! Setenta e dois! Oitenta e sete! Noventa e sete! Os gritos ressoam à tarzan na sala de espera vazia e ficam a bater nas paredes como o anúncio do record de uma existência em apneia. Todos se aliviaram das queixas que traziam e seguiram para casa resmungando. Ela só na sala, as cadeiras de plástico pregadas umas às outras e ao chão pelo sim e pelo não, as perguntas de uma de bata branca, esguedelhada, desleixada. Morada? Última! Sexo? Não me lembro! Filiação? Oh, minha mãe! Oh, pai do céu! Se tem filhos, perguntou a outra, ácida. Uma filha, um filho. Os contactos deles? Deles, diz ela. Natural de não me lembro. Distrito de não me lembro. Freguesia de não me lembro. Primeiro não se lembrava do passado próximo, depois do passado remoto. Não atendia ao presente. Flutuava no tempo como uma amiba. Quem a veio trazer? Alguém seria, foi embora, uma rapariga alta, linda como um anjo, ruça, rebelde, destas que dizem tudo na cara das pessoas, a juventude é a vida, não quer saber de misérias. “O que é que esta senhora está aqui a fazer? Ó enfermeira Rosa, é inadmissível, se faz favor, o cheiro que aqui está”. Dá-se voz de comando à enfermeira. “Chame alguém, que esta senhora precisa de higiene, foi abandonada”. “Abandonada o caralho. Ninguém abandona o dinheiro!”. E abriu a mão, mostrou o contado para a consulta. “Isso para que é?”, “É para pagar ao médico!”, “Qual médico?” “O da doença! O da morte!”.
O palavrão a qualquer hora em qualquer lugar datava já da Terceira Idade. Gostava de dizer, quando era velha e ainda bem-falante, que o palavrão se usa como ênfase, quando é exigido e alivia a situação. Não é para gastar banal em minudências. Mas agora sabia-lhe bem ênfase a qualquer hora do dia e o palavrão era excremento, como expelir a mão e bater. A realidade, à medida que ia perdendo textura, perdia continuidade. Havia rasgões, momentos de nada. A ênfase queria dizer que tudo na verdade sabia a pouco, se ia deslassando e que era preciso puxar pelo pouco que havia.
Vai por um caminho de terra batida, vê o Quincas ali à espera com o focinho no chão, uno com o chão e da mesma cor de areia, e há vacas, há burros dóceis, caminha dentro de um bando de estorninhos. Oh, que lindas coisas, que luz tão doce. Que pena eu não sentir tudo o que estou dizendo. E a luz não entrar em mim, operando os seus milagres. Sempre esta pecha de sempre entre mim e a luz: não ser transparente, não querer ser transparente, não me deixar trespassar. Ser um toco de matéria no caminho, a opor resistência. Há burricos anões, lagartixas repentinas, moscas do gado, ratos dos campos, uma suspeição de ratos, de bubões, de peste nas ilhas, há laparotos que à noite se atiram contra os faróis, místicos laparotos, ansiando a união com pára-choques de pequenos automóveis. O visível ganha uma presença pictórica, e ela está como numa pagela de São Francisco de Assis no meio dos bichos. Não falará com os lobos, nunca tentará sermoná-los, não acredita nos sermões. A vereda de pó vai dar a uma falésia sobre o mar. Pensa que se um dia tiver uma doença mortal, aquele é o lugar de onde há-de levantar voo. Sem ser detida por ninguém, nem por Nossa Senhora da Nazaré, que fez estacar Dom Fuas Roupinho sobre as patas traseiras do cavalo. Empinado sobre o precipício, a mão do pronto socorro do céu sofreando o movimento natural da besta. Ela duvidava que pudesse contar com outro tanto. Um impulso, um grito de horror e liberdade, e era uma vez uma velha. Assim que despegasse do chão, não havia volta a dar. Não sabia se havia de lançar-se, se deixar-se cair. Onde ir buscar essa força, a decisão que manda no impulso de recuar no última momento? Nem paz, nem salvação. Apenas ela completamente só e o zunido do ar, do ar morno e delicioso da ilha, e voar já com saudades da vida, mas tem de ser, tem de ser. O Quincas espetando a orelha, apanhado de surpresa, ganindo, indefeso, a vê-la cair a direito sobre as ondas. Que nem um prego. Afundada na imensidão das águas. Comida pelos peixes devagar da pesca à linha. Morte aérea e limpa, artesanal, sem resíduo. Apenas uns ossos limpos no fundo do oceano como algum tesouro. Adeus, adeus, fiquem bem, eu cá vou indo.
na imprensa
O Corpo de uma Mulher é Perigosíssimo, de Isabel Lucas, in Público
A Mulher que Falhou a sua Santidade, de Isabel Lucas, in Ípsilon, Público
A Força do Desejo em "Florinhas de Soror Nada", de Sílvia Souto Cunha, in Visão
Livro do Dia, de Carlos Vaz Marques, in TSF
Crítica Livros, de Eduardo Pitta, in Sábado
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