Inox, de José Pedro Gomes e António Feio, espectáculo em sketches com textos de autores portugueses, no Tivoli em 2002
Seguro de Saúde para Gente Saudável
António - Não sei, não sei. Não me cheira. E temos de ir aos médicos que eles querem.
Maria - São médicos lá da confiança deles.
António - São médicos que acham que estamos sempre bem, olha a ver se eu não os topo.
Maria - Têm de ter confiança nos médicos. Não podem contratar uns vigaristas quaisquer.
António - Um gajo entra lá de gatas a vomitar sangue e eles acham que estamos bem. Vá-se lá embora, tome esta pomada e aplique, que isso passa. E um gajo arrasta-se para fora do consultório, a gemer, a babar-se, a escorrer pus e vai pagar o seguro à companhia. Só tem de ter força para carregar nos botões do Multibanco. Não são vigaristas, são optimistas. Vêem sempre o lado bom das coisas. O segurado da companhia não pode adoecer. Isso é ponto assente. Não pode, porque isso custa dinheiro à companhia. Portanto, é tudo psicológico, é nervos.
Maria - Eles, nervos, não cobrem.
António - Não te disse? Não cobrem nervos porque tudo é nervos. Um gajo chega lá com uma faca espetada no peito e é nervos. O senhor está é muito nervoso, respire fundo. Pense pensamentos positivos. Beba muita água. Oxigene-se. Hidrogene-se. Faça ginástica. E um gajo no estertor da morte. Nas vascas da agonia. A render a alma.
Maria - Não sei se não será melhor assim. Olha que há médicos que assustam logo as pessoas. A gente dá uma tossidela e eles tuberculose! tuberculose! Aparece uma borbulha e é intoxicação! intoxicação! A pessoa anda sempre num sobressalto.
António - Esses não trabalham para a companhia de certeza. Não, isso da companhia parece mas é a tropa. Agora então fazem umas praxes todas giras, apanham um gajo a dormir e enrolam-no num cobertor e atiram-no pela janela e depois se o gajo não se mexe mais, é maricas! maricas, pá, és muita maricas! Mesmo quando estás morto, estás a fingir. Ganda sorna.
Maria - São médicos, hão - de saber ver a diferença.
António - Talvez. E o que será isso do período de carência?
Maria - O homem diz que são noventa dias.
António - Noventa dias o quê?
Maria - Quer dizer, começa-se a pagar o seguro agora e só depois de noventa dias é que se tem direito a ficar doente. É para evitar as aldrabices, diz o homem da companhia.
António - Começamos a pagar três meses antes de termos direito ao seguro e nós é que somos aldrabões?
Maria - Diz que há gente que faz o seguro quando já está doente, que é para serem eles do seguro, coitados, a pagar.
António - Há gente capaz de tudo.
Maria - Há pessoas capazes de tudo para aldrabarem as companhias de seguros, coitadas. Todo o cuidado é pouco.
António - Quer dizer, se ficar doente, tenho de esperar três meses para ir ao médico. Isso é pior que a Caixa.
Maria - Na Caixa esperas mais e tens de ir para a bicha a meio da noite.
António - Mas não pago vinte contos por mês, ora essa ! E estás-me a ler o papel do seguro e é só o que eu oiço é não cobrimos isto, não reembolsamos aquilo, as despesas têm o tecto baixo, isso não é um seguro de doença, é um seguro para gente saudável. Não pagam nada. Não pagam dentes, não pagam óculos, não pagam remédios, não pagam...
Maria - Mas pagam a colite irritativa.
António - Mas quem é que te garante que eu vou sofrer de colite irritativa para o resto da vida? Não posso mudar? Tenho de ter sempre a mesma porcaria da mesma doença?
Maria - Se está coberta pelo seguro, para que é que vais mudar? Já é má vontade! E olha que a partir de certa idade, eu acho que as pessoas se deviam especializar em determinadas doenças. Tu tens colite irritativa . Eu é as minhas pernas. É varizes. Pronto, sofro de varizes. Fico com as varizes, já não se cura, vai-se tratando, vai-se tendo cuidado. E tu, é colite irritativa . Pronto, estás despachado. Podem surgir umas complicaçõezitas sem importância, está tudo coberto. Depois há aquelas doenças que toda a gente tem, as dores nos ossos, o coração aos saltos de vez em quando, e isso eles não pagam, era o que faltava.
António - Chama-lhes parvos!
Maria - É preciso compreender que a companhia não pode pagar tudo a toda a gente, porque a companhia tem muitas despesas, instalações, pessoal, por aí fora. Isto é como dizia o homem da companhia: está a ver, se toda a gente quisesse ser reembolsada por tudo e por nada, onde é que nós íamos parar? Não havia companhia de seguros que aguentasse tanta despesa, não é verdade? Temos de ser uns para os outros.
António - Portanto, a ser alguma coisa, tem de ser uma coisa barata.
Maria - Há aqui muito por onde escolher.
António - Posso ter joelho d´agua?
Maria (alarmada) - Como? Só se caíres do cadeirão! Tu vê lá, agarra-te bem.
António - Tonturas? Posso ter tonturas?
Maria - Como é que se diz tonturas na língua dos médicos?
António - Tonturas.
Maria - Não deve ser. Eles têm outra maneira de dizer as coisas, uma maneira mais fina. É capaz de ser aerofagia. Tonturas, cabeça no ar, aerofagia. Eu oiço muito falar de aerofagia no Hospital. É aerofagia para aqui, aerofagia para ali. Isso pode-se ter. E também podes ter litíase. Já incluíram a litotrícia a laser. E o parto também está incluído.
António - Eu com esta idade também já não engravido. Diz-me lá o que é isso da litíase e da litotrícia, que é para ver se consigo começar a ter sintomas.
Maria - É pedra no rim.
António - Porra, que isso dói! Arranja-me lá outra coisa que dê para continuar de baixa e a receber do desemprego, mas que não doa tanto.
Maria - Bem, tens obstipação, diarreia, malária, febre amarela, béri-béri, escorbuto, raquitismo, dengue...
António - Mas que raio de doenças são essas? Isso são coisas que têm de se ir apanhar a África!...
Maria - Pois é. Mas eles não pagam a viagem.
António - Não pagam! Não pagam! Não pagam nada! E se não apanharmos doença nenhuma, hã, já pensaste nisso? Imagina que não apanhamos doença nenhuma! Estamos a pagar vinte contos para nada!
Maria - Para nada, não. Estamos a pagar para não ficar doentes. Porque isto tem a ver com a teoria do guarda-chuva, tu ainda não percebeste, mas tem a ver com a teoria do guarda-chuva. O céu está cinzento. A menina da meteorologia diz que vai chover. A tua mãe telefona a dizer que vai chover, porque lhe doem os artelhos. Não se fala noutra coisa. Ah, vai chover. Isto está de chuva. Está feio, está negro, vai chover. O carteiro traz o oleado. Lá no Hospital é um ror de urgências da artrite. Nas notícias passa em rodapé aquela coisa sempre a andar que a gente não consegue ler bem, mas também não se consegue despegar os olhos - v-a-a-i -ch-cho-v-v-e-er. Vai chover. Está quase a chover. Vou sair. Tu dizes, leva o guarda-chuva, olha que vai chover. E eu, gabardina, botas, gorro, e ...chapéu de chuva. Chapéu de chuva. E o que é que acontece? O que é que acontece sempre?
António - Não chove.
Maria - Portanto...
António - Faz-se o seguro, paga-se, estamos sempre bem.
Maria - É por isso que lhe chamam seguro de saúde.
António - Ainda me curo da colite, vais ver.
(Este sketch não foi representado)