EDIÇÃO KINDLE O QUE IMPORTA É QUE SEJAM FELIZES
O QUE IMPORTA É QUE SEJAM FELIZES! é uma comédia. O texto serviu de base ao espectáculo LAR DOCE LAR, com Joaquim Monchique e Maria Rueff. Duas senhoras de idade, amigas de longa data, que partilham um quarto na Residência Sénior Antúrios Dourados, iniciam uma competição desenfreada por um quarto particular no momento em que sabem que uma das residentes "partiu" de vez.
O QUE IMPORTA É QUE SEJAM FELIZES! é uma comédia. O texto serviu de base ao espectáculo LAR DOCE LAR, com Joaquim Monchique e Maria Rueff. Duas senhoras de idade, amigas de longa data, que partilham um quarto na Residência Sénior Antúrios Dourados, iniciam uma competição desenfreada por um quarto particular no momento em que sabem que uma das residentes "partiu" de vez.
do espetáculo
LAR DOCE LAR, a partir de "O que importa é que sejam felizes", de Luísa Costa Gomes
encenação de António Pires
Teatro Tivoli, 2014
Tournée nacional 2015
Cena I
O6:30
A cena representa um quarto de um novo lar/residência para idosos de classe média, onde devem imperar as noções de funcionalidade e bom gosto. Ao fundo, ESTELA e LURDINHAS dormem lado a lado em duas camas articuladas individuais. Entre as camas, uma mesinha de cabeceira com um rádio-despertador, pares de óculos. A luz em applique na parede entre as duas camas. À direita baixa, um bengaleiro. À esquerda baixa, dois sofás e uma mesinha airosa de madeira por cima de um tapete anódino. Na parede da direita, uma cómoda de gavetas e um espelho. Sobre a mesa um telefone, um gira-CDês e as fotografias de JOSÉ ALBERTO, o filho de LURDINHAS e de PILAR, a filha de ESTELA, com os três maridos e os cinco filhos. Painéis de madeira lisa dissimulam duas portas, a do quarto na parede da esquerda e a da casa de banho na parede da direita. Os restantes painéis são portas de armário.
No silêncio das seis e meia da manhã irrompe o som violento do rádio-despertador no volume máximo. É uma batida bem puxada. LURDINHAS dá um grito e lança a mão ao rádio.
LURDINHAS – Valha-me Nossa Senhora!
LURDINHAS pega no rádio e carrega em vários botões, sem êxito. ESTELA, ainda meia a dormir, lança a mão ao comando da cama articulada de LURDINHAS. Carrega com força num botão. A cabeceira da cama de LURDINHAS sobe de um salto para a vertical, projectando-a para a frente.Novo grito de LURDINHAS. O rádio-despertador foge-lhe da mão e voa para o meio do quarto. A música continua, impassível.
ESTELA – É todos os dias isto, Maria de Lurdes!
LURDINHAS - E a culpa é minha?
ESTELA – Que raio de coisa!
LURDINHAS – Se calhar a culpa é minha!
ESTELA - No melhor dos sonos! Seis e meia da manhã! Todos os dias!
LURDINHAS - Estava off, sabes muito bem que estava off!
(LURDINHAS levanta-se ainda no escuro para procurar o rádio).
ESTELA – Mas não acendes a luz porquê? Estás com medo de me acordar?
( LURDINHAS procura o rádio no chão às apalpadelas. ESTELA tenta acender o candeeiro . LURDINHAS pega no rádio e encaminha-se para a mesinha de cabeceira.)
ESTELA – Apaga-me essa sanfona, Maria de Lurdes…Que vida a minha!
LURDINHAS – Acende tu a luz. Não vejo as letras nos botões.
(Põe o rádio dentro da cama e cobre-o com o édredon. O som continua, mais abafado.)
ESTELA – Mas quando é que vem o homem trocar a lâmpada?
LURDINHAS – Preciso dos óculos, espera. Uma coisa de cada vez, já estou a entrar em stress. Acende ali a janela, não vejo nada.
(Senta-se na cama, procura uns óculos às apalpadelas na mesinha de cabeceira, põe uns óculos).
Já falamos da lâmpada, agora é preciso…Portanto, o que é que eu ia fazer? Onde é que estão os meus óculos?
(ESTELA abre a janela e aponta para os óculos que LURDINHAS tem na cara).
LURDINHAS – Não são estes. Preciso destes para procurar os outros, de ver coisas pequeninas. (Levanta-se e ciranda pelo quarto) Esta mania que eles têm agora de fazer os óculos todos transparentes, a gente não os vê.
ESTELA – Deviam pelo menos brilhar no escuro.
LURDINHAS - É estranho ninguém pensar nisso, porque os óculos são, em princípio, para pessoas que não vêem…
(ESTELA pega no rádio, abre o compartimento das pilhas, tira-as e a coisa cala-se. LURDINHAS vem sentar-se na cama).
LURDINHAS - Onde é que está a minha carteira? Devem estar na carteira... Parece que estou com falta de ar…
ESTELA – Não sinto nada.
LURDINHAS – Porque é que tu havias de sentir a minha falta de ar?
ESTELA – Da corrente de ar. Bebe água.
LURDINHAS – Havia de beber água para a falta de ar?
ESTELA - Toma qualquer coisa.
LURDINHAS - Contigo tudo se resolve a tomar qualquer coisa.
ESTELA – Vai à janela.
LURDINHAS – Parece que vejo uns clarões, estou meia mareada…
ESTELA – Toma um calmante.
LURDINHAS - Tem de se chamar o Dr. Coiso. Vou medir a tensão. Tenho isto quando estou com a tensão alta. Parecem uns anjos a voar e a bater as asas por todo o lado.Onde é que está o coiso de medir a tensão?
(Procura nas gavetas) Espera. Tínhamos alguma coisa marcada para hoje? Se calhar pusemos o despertador porque tínhamos alguma coisa para hoje?
ESTELA – Não pusemos despertador nenhum.
LURDINHAS – Que dia é hoje?
ESTELA – Não sei e não me interessa.
LURDINHAS – Estela, nós tínhamos qualquer coisa hoje.
(LURDINHAS levanta-se de novo e procura a carteira). Tenho a agenda no telemóvel, espera. Já estou a entrar em stress. Uma coisa de cada vez. Não me lembro nada de ter posto o despertador.Lembras-te de ter posto o despertador?
(Encontra a carteira) Olha, encontrei a carteira.
ESTELA – Fico muito feliz.
LURDINHAS – Olha, encontrei os óculos.
ESTELA – Que bom.
LURDINHAS – Olha, encontrei o telemóvel.
ESTELA – Maravilha!
LURDINHAS – Não liga.
ESTELA – Carrega no botão de ligar, talvez ligue.
LURDINHAS – Onde é que está o teu?
ESTELA – Sei lá.
LURDINHAS – É muita coisa ao mesmo tempo.
(Põe o telemóvel na gaveta da cómoda, pendura os óculos ao pescoço, onde já estão os outros de ver ao longe, pendura a carteira dentro do armário).
ESTELA – O homem vê isso quando vier trocar a lâmpada e arranjar o comando da cama. Põe na lista, se não esqueces-te.
LURDINHAS – Qual lista? Eu tenho uma lista?
(LURDINHAS vai ao armário e tira a roupa para o dia)
LURDINHAS – Vou lavar a cara, tomar um banho…Acordar assim sobressaltada, isto é cá um choque para o organismo!
(LURDINHAS sai para a casa de banho. ESTELA deita-se e continua a falar alto, para LURDINHAS ouvir).
ESTELA – Seis e meia da manhã! Isto parece a tropa! A ti tanto te faz, às dez e meia da noite já não dizes coisa com coisa, depois dormes dum sono, acordas toda fresca...claro! Mas eu tinha acabado de adormecer! Dormi duas horas! (Para si) É quando finalmente estamos velhas e podemos dormir à vontade que sofremos de insónia! Isto está tudo muito bem feito! Não temos obrigações, não temos nada para fazer, podemos dormir até rebentar, mas não, ali estamos, toda a noite...
(LURDINHAS começa o seu chuveiro)