Local, Global
Estava a fazer na minha sala uma aula de Pilates dirigida por uma senhora inglesa que me dava ordens pelo computador, desde um jardim sito algures nos arredores do Funchal. Era um jardim singularmente bem arranjado e ela calma e mandando sem alarido. Estas aulas de Pilates que se apanham no You Tube são à vontade do freguês, umas mais puxadas e outras à medida da pessoa que não quer exercitar-se excessivamente sob pena de arruinar algum órgão vital. Enquanto eu cá alongava o que havia a alongar, perguntava-me o que devia responder aos peticionários e cidadãos preocupados da minha caixa de correio electrónica. Só hoje recebi pelo menos três apelos para salvar o mundo por petição pública. Isto fora as denúncias de malfeitorias sem nome feitas aos índios da Amazónia, os abaixo-assinados, as preocupações inadiáveis de cidadãos que não se inibem de me exprimir a sua preocupação.
Eles lá na Austrália não passam sem mim. Ou são os recifes de coral, ou são as petrolíferas a abocanhar os espaços naturais, andam todos a proteger e a defender e a denunciar abusos. E como hoje o local é global, não se coíbem de anunciar urbi et orbi tudo o que andam a fazer e pedir a participação de todos. Estes apelos à participação e à assinatura de petições e denúncias nas instâncias superiores não são à antiga, circulares cinzentas do quero-lá-saber-se-assinas-ou-não-assinas. Hoje tudo é personalizado: Luísa, ainda podes fazer a diferença! Luísa, cada dólar conta! Luísa, precisamos da tua ajuda! Luísa, faltam-nos só dez mil assinaturas para levarmos este projecto avante! Pois, mas eu estou um bocado longe, filhos. Ir agora assim sem mais nem menos para os recifes de coral fazer frente à Shell até é coisa que teoricamente me não repugna, mas hoje é sexta feira, tenho uma carga de trabalhos pela frente e não me dá muito jeito. A Greenpeace, entretanto, manda dizer que andam atrás aí duns criminosos ambientais. A Greenpeace é levada da breca. É uma gente que não sabe estar quieta, vê problemas por todo o lado e salta para aquele barco e lá vai tudo de escantilhão para a Gronelândia. Eles e a Jewish Voice for the People são duas das organizações que mais ansiedade me causam. A Jewish Voice for the People parece estar sempre a pedir desculpa por ser jewish. Defendem tudo o que está certo, defendem-no com a própria vida e liberdade, são pró-palestinianos, dos poucos judeus com quem se pode falar, mas também me pedem coisas um tanto impossíveis. O Diem25 (o movimento pró-europeu de colaboração democrática), por seu lado, é como aquelas crianças que estão sempre a pedinchar coisas. Oh mãe, quero um gelado. Oh mãe, quero uma bola. Oh mãe, quero um telemóvel. O Diem25 acredita na democracia directa e nada se faz sem perguntar tudo a toda a gente. Ora esta coisa da democracia directa dá um trabalho louco, principalmente aos democratas. Por isso é que quem descobriu o descanso da outra democracia já não volta atrás. O Diem25 quer que eu conheça os programas, os projectos, os candidatos, que os discuta, os avalie, e depois vote em perfeito conhecimento de causa. A ideia é perfeita. Seria bom se eu não tivesse mais nada que fazer: a democracia directa é para gente com tempo livre. Os outros dizem mal da outra e sentem-se reivindicados.
Já gente a querer casar comigo é mais que muita. É um senhor coronel do Exército Americano que está no Afeganistão e que, sentindo-se só, me manda umas rosas virtuais com uns dizeres mais ou menos assim: you are beautiful lady i marry you and we hapy. O exército americano está pelas ruas da amargura. Ou é um senhor texano, engenheiro nas plataformas petrolíferos lá ao largo da Noruega. É do género texano da Nigéria, aconselhei-o a ir estudar um pouco mais de Inglês antes de tentar a próxima trafulhice. Não tenho nada contra a aldrabice, mas a falta de brio põe-me doente.
Pensa-se ainda que o global é longe e o local é o típico cá do meu bairro. A deslocalização ainda nos causa engulhos, quando percebemos que estamos a falar com alguém que está na Índia ou na China como se estivesse ali ao lado. A cabeça humana abre-se sempre ao universal, mas convém mantê-la junto do resto do corpo, bem agarrada ao pescoço.
(Notícias da Gandaia, Janeiro 2019)
Eles lá na Austrália não passam sem mim. Ou são os recifes de coral, ou são as petrolíferas a abocanhar os espaços naturais, andam todos a proteger e a defender e a denunciar abusos. E como hoje o local é global, não se coíbem de anunciar urbi et orbi tudo o que andam a fazer e pedir a participação de todos. Estes apelos à participação e à assinatura de petições e denúncias nas instâncias superiores não são à antiga, circulares cinzentas do quero-lá-saber-se-assinas-ou-não-assinas. Hoje tudo é personalizado: Luísa, ainda podes fazer a diferença! Luísa, cada dólar conta! Luísa, precisamos da tua ajuda! Luísa, faltam-nos só dez mil assinaturas para levarmos este projecto avante! Pois, mas eu estou um bocado longe, filhos. Ir agora assim sem mais nem menos para os recifes de coral fazer frente à Shell até é coisa que teoricamente me não repugna, mas hoje é sexta feira, tenho uma carga de trabalhos pela frente e não me dá muito jeito. A Greenpeace, entretanto, manda dizer que andam atrás aí duns criminosos ambientais. A Greenpeace é levada da breca. É uma gente que não sabe estar quieta, vê problemas por todo o lado e salta para aquele barco e lá vai tudo de escantilhão para a Gronelândia. Eles e a Jewish Voice for the People são duas das organizações que mais ansiedade me causam. A Jewish Voice for the People parece estar sempre a pedir desculpa por ser jewish. Defendem tudo o que está certo, defendem-no com a própria vida e liberdade, são pró-palestinianos, dos poucos judeus com quem se pode falar, mas também me pedem coisas um tanto impossíveis. O Diem25 (o movimento pró-europeu de colaboração democrática), por seu lado, é como aquelas crianças que estão sempre a pedinchar coisas. Oh mãe, quero um gelado. Oh mãe, quero uma bola. Oh mãe, quero um telemóvel. O Diem25 acredita na democracia directa e nada se faz sem perguntar tudo a toda a gente. Ora esta coisa da democracia directa dá um trabalho louco, principalmente aos democratas. Por isso é que quem descobriu o descanso da outra democracia já não volta atrás. O Diem25 quer que eu conheça os programas, os projectos, os candidatos, que os discuta, os avalie, e depois vote em perfeito conhecimento de causa. A ideia é perfeita. Seria bom se eu não tivesse mais nada que fazer: a democracia directa é para gente com tempo livre. Os outros dizem mal da outra e sentem-se reivindicados.
Já gente a querer casar comigo é mais que muita. É um senhor coronel do Exército Americano que está no Afeganistão e que, sentindo-se só, me manda umas rosas virtuais com uns dizeres mais ou menos assim: you are beautiful lady i marry you and we hapy. O exército americano está pelas ruas da amargura. Ou é um senhor texano, engenheiro nas plataformas petrolíferos lá ao largo da Noruega. É do género texano da Nigéria, aconselhei-o a ir estudar um pouco mais de Inglês antes de tentar a próxima trafulhice. Não tenho nada contra a aldrabice, mas a falta de brio põe-me doente.
Pensa-se ainda que o global é longe e o local é o típico cá do meu bairro. A deslocalização ainda nos causa engulhos, quando percebemos que estamos a falar com alguém que está na Índia ou na China como se estivesse ali ao lado. A cabeça humana abre-se sempre ao universal, mas convém mantê-la junto do resto do corpo, bem agarrada ao pescoço.
(Notícias da Gandaia, Janeiro 2019)