O carpinteiro Santos
Uma pessoa que conheço precisou, em dada altura, de consultar um astrólogo. A vida, tratando-a com imerecida brutalidade, fornecendo-lhe as venturas unicamente para lhas tirar de seguida e concatenando uma roda tal de pequenos dissabores que alguém lhe disse poderem cair dentro do conceito astrológico de “inferno astral”, decidiu-a a procurar ajuda.
M. tinha a consulta marcada para o dia do grande evento comunicacional que foi a queima das barracas nas “fraldas” do Casal Ventoso e ficando o consultório do astrólogo à R. Maria Pia, viu-se logo envolvida por uma legião de basbaques ao estacionar o A6 cinzentinho claro. Para lhes escapar precipitou-se rua acima e deu algumas voltas a quarteirões antes de encontrar a transversal certa e o número da porta do astrólogo. Com um baque, percebeu que o andar se lhe escapara inadvertidamente da memória. Passou a porta e um arco que levava a um pátio onde brincavam crianças. O todo estava razoavelmente degradado, as paredes encardidas e manchadas de humidade e o lixo, que parecia ser o brinquedo preferido dos meninos, amontoava-se junto ao único contentor.
Adiantada à hora da consulta, restava a M. procurar o astrólogo. Embrenhou-se por um corredor escuro e bateu à primeira porta. A sua estratégia, disse-me ela, era ir tocando às campainhas, com a desculpa de que andava a tentar encontrar o carpinteiro Santos. Enquanto se dessem as trocas de informação com os moradores, ela espreitaria para dentro de modo a verificar se seria ou não a casa do astrólogo. Não contava, confessou-mo depois, com a estúpida solicitude dos perguntados. Apareceu-lhe primeiro uma mulher nova que quisera saber da mãe onde é que ficava o carpinteiro Santos. Chamada à porta pela curiosidade de saber quem assim procurava, a mulher disse ignorar se viveria no prédio um carpinteiro Santos, mas tinha como certo que havia um pedreiro de nome Antunes, no segundo éfe. Recomendaram-lhe a vizinha umas portas mais à frente, porque essa estava ao corrente de tudo o que se passava. M. fingiu dirigir-se para lá, arrepiando caminho apenas quando as duas mulheres desapareceram dentro de casa. As crianças puseram-se a segui-la. Uma velhinha insistiu em subir com imenso esforço e vagar três lances de escadas para a levar ao que ela julgava ser um pasteleiro omnisciente, que se revelou ter estado afinal morto pelos últimos cinco anos. “Apeteceu-me pegar-lhe ao colo e atirá-la pelo corrimão, tal era o estado de nervos em que me pusera a subida”. Acima e abaixo ao sabor de informações contraditórias, M. viu que nunca chegaria a encontrar o astrólogo. Era, no entanto, já demasiado tarde, e todo o prédio especulava sobre a existência desse carpinteiro, em meio de corredores, nos patamares, nas conversas de janela. Havia quem garantisse que o carpinteiro Santos vivia no último andar, mas que estava de férias. Passava quase uma hora sobre a da consulta, M. ia com uma senhora de muita idade a casa de uma modista que arranjava carpinteiros quando havia necessidade deles, e ia com a sua cauda de crianças, quando decidiu desistir. Num impulso lançou-se pelas escadas, deixando a idosa estonteada, e já ia dois patamares mais abaixo quando se interrompeu para uma última campainhada ao acaso, abrindo-lhe a porta uma mulher que disse : “Faça favor de entrar, o senhor doutor está à espera”. Era o astrólogo.Sentados, ouvidas as explicações necessárias, disse-lhe aquele:
“ Acabei agora mesmo de ler essa cena. É um episódio dos mais curiosos de O Processo de Kafka.. Como marcaram a Josef K. uma audiência no tribunal mas não lhe disseram o andar em que ela se passaria, a personagem imagina esse estratagema de fingir que procura um tal inexistente carpinteiro Lanz, em vez de se tornar suspeito para toda a gente por andar a perguntar pelo tribunal”. “Quero lá saber do Josef K., - disse ela - isto aconteceu-me a mim e provavelmente aconteceu a mais gente”. Mas era preciso interrogar o destino e o astrólogo lançou mãos ao trabalho.
Quando ela me contou, ainda sob o efeito da indignação, esta estranha ocorrência, lembrei-me de estar uma bela tarde sentada no Príncipe Real e de se debruçar para mim uma senhora que passava, a perguntar : “Desculpe, você não é a Manuela Almeida?”. Levantei os olhos para ela, maravilhada. É que eu acabava nesse momento de escrever as linhas gerais de um conto cujo tema era exactamente a troca de identidades. Senti-me como Kafka, em viagem, a assinar “Joseph K.” no livro de registos do hotel. É uma experiência verdadeiramente religiosa, a epifania ficcional.
M. tinha a consulta marcada para o dia do grande evento comunicacional que foi a queima das barracas nas “fraldas” do Casal Ventoso e ficando o consultório do astrólogo à R. Maria Pia, viu-se logo envolvida por uma legião de basbaques ao estacionar o A6 cinzentinho claro. Para lhes escapar precipitou-se rua acima e deu algumas voltas a quarteirões antes de encontrar a transversal certa e o número da porta do astrólogo. Com um baque, percebeu que o andar se lhe escapara inadvertidamente da memória. Passou a porta e um arco que levava a um pátio onde brincavam crianças. O todo estava razoavelmente degradado, as paredes encardidas e manchadas de humidade e o lixo, que parecia ser o brinquedo preferido dos meninos, amontoava-se junto ao único contentor.
Adiantada à hora da consulta, restava a M. procurar o astrólogo. Embrenhou-se por um corredor escuro e bateu à primeira porta. A sua estratégia, disse-me ela, era ir tocando às campainhas, com a desculpa de que andava a tentar encontrar o carpinteiro Santos. Enquanto se dessem as trocas de informação com os moradores, ela espreitaria para dentro de modo a verificar se seria ou não a casa do astrólogo. Não contava, confessou-mo depois, com a estúpida solicitude dos perguntados. Apareceu-lhe primeiro uma mulher nova que quisera saber da mãe onde é que ficava o carpinteiro Santos. Chamada à porta pela curiosidade de saber quem assim procurava, a mulher disse ignorar se viveria no prédio um carpinteiro Santos, mas tinha como certo que havia um pedreiro de nome Antunes, no segundo éfe. Recomendaram-lhe a vizinha umas portas mais à frente, porque essa estava ao corrente de tudo o que se passava. M. fingiu dirigir-se para lá, arrepiando caminho apenas quando as duas mulheres desapareceram dentro de casa. As crianças puseram-se a segui-la. Uma velhinha insistiu em subir com imenso esforço e vagar três lances de escadas para a levar ao que ela julgava ser um pasteleiro omnisciente, que se revelou ter estado afinal morto pelos últimos cinco anos. “Apeteceu-me pegar-lhe ao colo e atirá-la pelo corrimão, tal era o estado de nervos em que me pusera a subida”. Acima e abaixo ao sabor de informações contraditórias, M. viu que nunca chegaria a encontrar o astrólogo. Era, no entanto, já demasiado tarde, e todo o prédio especulava sobre a existência desse carpinteiro, em meio de corredores, nos patamares, nas conversas de janela. Havia quem garantisse que o carpinteiro Santos vivia no último andar, mas que estava de férias. Passava quase uma hora sobre a da consulta, M. ia com uma senhora de muita idade a casa de uma modista que arranjava carpinteiros quando havia necessidade deles, e ia com a sua cauda de crianças, quando decidiu desistir. Num impulso lançou-se pelas escadas, deixando a idosa estonteada, e já ia dois patamares mais abaixo quando se interrompeu para uma última campainhada ao acaso, abrindo-lhe a porta uma mulher que disse : “Faça favor de entrar, o senhor doutor está à espera”. Era o astrólogo.Sentados, ouvidas as explicações necessárias, disse-lhe aquele:
“ Acabei agora mesmo de ler essa cena. É um episódio dos mais curiosos de O Processo de Kafka.. Como marcaram a Josef K. uma audiência no tribunal mas não lhe disseram o andar em que ela se passaria, a personagem imagina esse estratagema de fingir que procura um tal inexistente carpinteiro Lanz, em vez de se tornar suspeito para toda a gente por andar a perguntar pelo tribunal”. “Quero lá saber do Josef K., - disse ela - isto aconteceu-me a mim e provavelmente aconteceu a mais gente”. Mas era preciso interrogar o destino e o astrólogo lançou mãos ao trabalho.
Quando ela me contou, ainda sob o efeito da indignação, esta estranha ocorrência, lembrei-me de estar uma bela tarde sentada no Príncipe Real e de se debruçar para mim uma senhora que passava, a perguntar : “Desculpe, você não é a Manuela Almeida?”. Levantei os olhos para ela, maravilhada. É que eu acabava nesse momento de escrever as linhas gerais de um conto cujo tema era exactamente a troca de identidades. Senti-me como Kafka, em viagem, a assinar “Joseph K.” no livro de registos do hotel. É uma experiência verdadeiramente religiosa, a epifania ficcional.