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O Defunto Elegante, romance, Relógio d'Água, 1996
Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista
Um cidadão chinês é barbaramente defenestrado algures em Portugal, para onde viera, ao que se julga, com o propósito de aperfeiçoar o conhecimento da língua portuguesa. A polícia descobre os criminosos quando prende um grupo de fumadores de cachimbo que ocupava o patamar de certo condomínio: mas, nesse ponto, já uma densa teia, tecida de interesses que ligam um empreendimento imobiliário ao tráfico de droga, atraíra os gémeos Belágua e o seu primo, um advogado de província e a proprietária de uma quinta em N., uma marquesa e a sua filha, e ainda uma bióloga ecologista e uns quantos professores universitários. Saltando entre o mundo rural e o ambiente urbano, O Defunto Elegante é um cadavre exquis que não dá tréguas ao leitor mais indiferente.
Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista
Um cidadão chinês é barbaramente defenestrado algures em Portugal, para onde viera, ao que se julga, com o propósito de aperfeiçoar o conhecimento da língua portuguesa. A polícia descobre os criminosos quando prende um grupo de fumadores de cachimbo que ocupava o patamar de certo condomínio: mas, nesse ponto, já uma densa teia, tecida de interesses que ligam um empreendimento imobiliário ao tráfico de droga, atraíra os gémeos Belágua e o seu primo, um advogado de província e a proprietária de uma quinta em N., uma marquesa e a sua filha, e ainda uma bióloga ecologista e uns quantos professores universitários. Saltando entre o mundo rural e o ambiente urbano, O Defunto Elegante é um cadavre exquis que não dá tréguas ao leitor mais indiferente.
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Lorsqu’on fait un conte, c’est à quelqu’un qui l’écoute; et pour peu que le conte dure, il est rare que le conteur ne soit interrompu quelquefois par son auditeur.
Diderot
Diderot
CARTA I
De Z. para X.
N., 3 de Outubro de 1995
Querida X.:
Se falámos há pouco pelo telefone, vejo mal que razões tão «ponderosas» possam existir para que te escreva. A insistência com que tens alimentado esta correspondência deixa-me perplexo, e estou à espera, aliás, do momento em que confirmarei que não passa de mais um capricho, um desses traços do teu whimsical behaviour, como dizes, e a que me foste habituando de ano para ano. A distância ou a separação, creio eu, são facto- res irrisórios, pelo menos no mundo actual, moderno ou pós-moderno, como queiras, em que se comunica tele e tudo é mó- vel (até nas berças: ainda hoje de manhã, enquanto lia o jornal naquela esplanada manhosa perto de casa, aprendi bastante sobre stocks de perfis de alumínio graças a um bimbo com uma camisa feita de pano de barraca de praia que, no passeio, andando de um lado para o outro, «comunicava» entusiasmado com um cliente ou colega de trabalho, não percebi bem). Confesso, ou protesto mais uma vez, que escrever cartas me chateia, ou melhor, já que escrevo, me entedia: é assim uma espécie de logografia, em que se vai dizendo ou escrevendo seja o que for, porque o mais importante é haver carta, a carta em si mesma e por si mesma, diga ela o que disser. Aliás, se calhar, até acabas por ter razão: talvez se justifique escrever cartas quando não precisamos delas para falar com o outro ou com os outros. Já pensaste no que faria o Valmont com um telemóvel? Talvez possas vender esta ideia a alguém da publicidade: o Valmont telefonando à Michelle Pfeiffer, dentro de uma carruagem puxada por cavalos com antenas, e o Laclos suicidando-se depois de rasgar páginas e páginas do romance. Pelo meu lado, adopto o caminho oposto, e ainda hei-de pensar se não deveria escrever uma pequena monografia esclarecendo a influência do telefone sobre o romance epistolar: influência libertadora, é claro, por- que as personagens, podendo telefonar para marcar encontros secretos ou públicos, para se insultarem ou acarinharem, ficam com as cartas para repetir e alongar o assunto resumida mas eficazmente comunicado pelo telefone. Seria a pura inutilidade, a manifestação por si mesma, o gosto de escrever sem assunto, sem necessidade ou urgência de comunicar. Mais ou menos o que se passa, portanto, com o meu malfadado romance, que ali está parado (isso mesmo: não avancei uma linha), quando o importante não é que avance ou deixe de avançar, mas que se complete e exista. Disseste-me no outro dia que a escolha deste local e o isolamento que implica eram a raiz do desaire, que eu preciso de trânsito, mau cheiro e montras, mas acho que te en- ganas. A verdade é que estou cada vez mais convencido de que, muito simplesmente, não tenho romance para escrever, quando muito os vagos contornos de uma história, delineada sem gran- de imaginação, como tu própria foste a primeira a dizer, e louvado seja Deus pela franqueza que te insuflou no espírito. Essa é que é a raiz do desaire. Por que raio me lembrei de escrever um romance? Por que raio tantas pessoas de tantas profissões diferentes, de advogados a poetas, se lembram de escrever romances? A razão é só uma: visibilidade. As pessoas querem ser vistas, e as pessoas que escrevem alguma coisa querem escrever alguma coisa que as torne visíveis aos olhos do maior número possível de pessoas, tanto aos olhos de outras pessoas que escrevem como das que nada escrevem ou hardly lêem. Pois eu, numa palavra, estou farto da penumbra, da sombra, da cortina, do bastidor, do raio que o parta: eu, numa palavra, quero tornar-me visível, pôr-me em posição de ser visto. Eu, numa palavra, resolvi escrever um romance porque não tinha nem romance pa- ra escrever nem outro meio de me tornar visível. E, para isso, vim para o meio do nada, onde não vejo ninguém e ninguém me vê. Pois agora, neste estado de espírito negro, ou pelo menos cinzento, acho que atingirei a visibilidade bem mais depressa se escrever um ensaio-ficção provocatório com o título Telemóvel e Sexo Oral. Como vês, entre escrever isto e dizer que abandonei o projecto do romance, a diferença é pouca ou nenhuma. E assim até acabo mesmo por dizer uma coisa que não te disse há pouco pelo telefone. Já tinha decidido mandar o romance para o brejo, mas não to disse, com receio de que me perguntasses quando iria, então, embora daqui. Não tinha pronta nenhuma resposta convincente, e com franqueza não me apetece voltar. Bem não direi que estou, mas pelo menos ninguém me chateia. Olha, vê se me arranjas um crime. O meu romance não tem cri- me e sem crime, se calhar, não se faz um romance. Outra ideia: o Laclos, em vez de se suicidar, escreve a história do assassino do telemóvel.
Beijinhos,
a) Z.
CARTA II
De Z. para X.
N., 3 de Outubro de 1995
Querida X.:
Tentei telefonar várias vezes, mas estava impedido (falavas com quem?). Vai esta na aberração do correio azul a ver se che- ga antes da outra, que foi em correio normal. Desconsidera o que digo a respeito do romance quando a leres, e se já a leste faz de conta que não disse nada. Há bocado, surpreendi uma conversa muito curiosa naquele cafezinho da estrada. Acho que já tenho o crime, e até se ajusta perfeitamente à história que me interessa contar. Mas preciso de voltar ao café para apurar uns pormenores que me escaparam. Depois te conto.
Beijinhos,
a) Z.
PS.: Outra ideia: o Valmont comprando um telemóvel e o funcionário da Telecel mostrando-lhe fotografias da Michelle Pfeiffer com o Malkovich e dizendo, num tom insinuante:
«-- Que fariam eles com um telemóvel?». Actor para fazer de
Valmont?
CARTA III
De Z. para Y.
N., 3 de Outubro de 1995
Caro Y.:
Não sei lá que vida é a tua, mas nunca estás em casa. Telefonei nas mais diversas horas e nem o gravador me atendeu. Que andas a fazer? Acabo de escrever à X., e começo a sentir alguns remorsos. Continuo a entretê-la com a história do romance, mas mais dia menos dia tenho que arrumar esta situação e esclarecer as coisas de vez. Reconheço que a coisa me dá um certo gozo, até porque vou apurando a técnica da mistificação, sempre proveitosa neste como em todos os tempos. Hoje, por exemplo, escrevi uma carta meio desesperada, dizendo-lhe que o romance está parado, que não avanço há dois meses, que desisto, e lá lhe fui dizendo que não tenciono vol- tar tão cedo. Logo a seguir, escrevi outra, que mandei em correio azul para chegar primeiro, dizendo-lhe que desconsideras- se a primeira, porque tinha arranjado uma ideia, um crime que me fazia falta, e não sei que mais. Claro que o propósito da segunda carta é atrair-lhe a atenção para a primeira, e confio que os nossos laboriosos serviços postais não me vão pregar a par- tida de fazer chegar mais tarde a que foi em correio azul. De qualquer modo, ela continua a insistir para que eu lhe escreva, e eu já pensei se não devia mesmo amanhar um romance com o raio das cartas, que são a única coisa que escrevo, e bem me custa, podes crer, arranjar assunto para pelo menos duas páginas (o mínimo exigido pela nossa amiga). Se a encontrares, faz de conta que nada sabes de mim, pede notícias, pergunta pelo romance, e se ela te der algum sinal de que desconfia, telefona-me: pelo menos, serve-me para avaliar a eficácia da mistificação.
Um abraço,
a) Z.
CARTA IV
De X. para Z.
L., 17 de Outubro de 1995
Querido Z.:
A tua carta teve artes de se infiltrar entre duas contas impa- gáveis, atiradas a uma caixa de sapatos que eu dedico a S. Ju- das Tadeu, advogado dos impossíveis, pelo que só hoje, dia do recebimento dos dinheiros devidos por uma tradução que eu andei a fazer quando era nova, a voltei a encontrar com sur- presa e agrado. Estranhando, embora, estas tuas atitudes. Se é que chego a lembrar-me, primeiro andavas cansado das secu- ras do raciocínio e dos limites de uma prática coerciva e qui- seste escrever um romance. O teu entusiasmo, que eu partilhei com o pé um pouco atrás -- já não é a primeira vez que assisto a estes entusiasmos -- levou-te a dizer uma frase assim como:
«só o romance pode salvar», não se entendendo se a virtude salvífica dessa arte moribunda, com o futuro já todo por trás dela, a adiantada, se aplicava meramente à tua pessoa ou à Hu- manidade em peso. Aprovei, mesmo assim. Afinal, do roman- ce nunca veio mal ao mundo, descontando este ou aquele caso especial e involuntário, embora esteja de momento capaz de achar que vivemos um enjoativo superavit de ficção, que me leva a procurar ensaio, teoria ou documentário onde, ai de mim!, vão ingerindo à grande e à francesa as normas do dis- curso ficcional.
E, como em tudo, é quando o romance se torna mais pobre, mais fechado em «histórias» e determinado pelo «formato», que ele inunda as praças e os mercados, a televisão, as revistas, os jornais, de tal modo que a ficção folhetinesca se tornou praticamente modelo universal da organização da experiência, da linguagem e da comunicação.
Agora vejo que começas a ter as tuas dúvidas. É normal. Mas ponho-as na conta deste personagem rebarbativo e quezilento em que te tornas à escrita, quiçá puxado pela pena do estilo. Aposto que, quando cuspiste no selo do envelope, já nem te lembravas de ter dito que andavas atrás de «visibilidade»!
Devo dizer-te, se é que isto tem alguma importância, que a ideia do crime me parece absolutamente dispensável. Escreve- ram-se grandes romances sem a menção sequer de um esboço de escaramuça e a própria ideia de que só existe romance se houver ilegalidade me impressiona como verdadeiramente imo- ral. De resto, nem todo o crime é matéria de romance. Se o as- sassinato do Kennedy fez correr rios de tinta, se há bons textos que partem da exploração de fait-divers -- como a Bíblia, que faz um escarcéu dos diabos por causa de uma simples maçã — calculo assim por alto que a maior parte do que acontece é irre- levante e daria, quando muito, uma short story bastante chôcha e short.
Para escrever um romance tem de haver, creio eu, para além da absoluta necessidade íntima de o fazer, menos crime do que mente incriminativa, bom gosto pela complicação intrigante e substancial conhecimento da tradição. A história, que não é teia da intriga, interessa pouco. Pelo menos interessa-me pouco a mim, que me esqueço do princípio dela assim que vai a meio, no que segue o caminho das anedotas, incidentes e outras peri- pécias, no grande precipício do olvido. Mas, claro, devo ser eu, e deve ser da idade, que só uma grande falta de memória, e de vergonha, nos mantém persuadidos de que trazemos alguma no- vidade ao mundo.
Não te apresses em voltar. Lisboa está na mesma, com um tempo magnífico, esta temperatura dolce que é um cocktail explosivo quando associada ao fumo dos carros, enfim, uma rentrée exactamente igual às anteriores, de tal modo que ao entrar hoje na sala tive uma espécie de alucinação, via os troncos dos alunos fixos às cadeiras, e só as cabeças eram móveis, mas um pouco desenculatradas do pescoço, como aquelas fotografias monstruosas que se tiram nas feiras. E, por falar em móveis, acho as tuas ideias para o Valmont e o telemóvel abomináveis, nem sequer aproveitáveis para a publicidade que, no entanto, excele e abunda em ideias ditas peregrinas.
Não te esqueças de pedir ao senhor Manuel que te apanhe umas pêras. Devem estar uma delícia. Como é que ele está? Diz que mando cumprimentos.
Já vou atrasada. O meu horário, feito por uns sádicos, que se acoitam ao digno termo de colegas, obriga-me a uma aula às duas da tarde. Devo apressar-me ou adormecem antes de eu entrar na sala. E, por uma questão de amor-próprio, já agora que- ria ser eu a adormecê-los.
Bom trabalho.
a) X.
PS.: Isto é inacreditável! Imagina que só hoje, dezoito, é que recebi a carta que mandaste por correio azul e que foi, por enga- no, parar a casa do vizinho do número 37, um ser aliás ignóbil, que me apareceu aqui às seis da tarde em tronco nu e calças de pijama, a entregar a carta aberta (!), e a dizer-me, com o ar mais tranquilo deste mundo, que a tinha lido e não tinha percebido nada. Todo malandro, esqueceu-se de a entregar durante quinze dias! Será possível? Fiquei de tal modo boqueaberta que não fui capaz de articular palavra, e ele a sorrir-me e a menear o tronco! E depois, quando ele saíu, é que me lembrei de que já não é a primeira vez que isto acontece, porque o carteiro tem uma doença qualquer neurológica que o deve fazer confundir o um com o sete, e aqui há uns meses largos levou ao vizinho do 37 o meu extracto do Banco e uma carta do Y., ligeiramente delirante, em que me parece que ele dizia estar a ser perseguido por um gigantesco dragão de borracha, ou uma coisa impossível do género, e o homem leu a carta e comentou-a comigo, até me deu o nome de uma bruxa que tirava mau-olhado e que era mui- to amada pelo povo ali da Mouraria. Na altura, depois da minha já habitual boqueabertura, disse-lhe que era inclassificável o que ele tinha feito, porque é das coisas que se aprendem com o leite materno, nunca ler a correspondência dos outros. Ele não devia saber exactamente o que queria dizer «inclassificável», achou que eu estava a acusá-lo de vir de uma classe inferior e todo enxofrado, saiu a bater com a porta. Por que será que me lembro agora tão bem do que não me lembrei há pouco?
CARTA V
De Z. para X.
N., 19 de Outubro de 1995
Minha menina:
Pelos modos, participo galhardamente da grande excrementação romanesca que, a teus olhos, enodoa o mundo de hoje. Não ser anacrónico, ou estar em sintonia com a «sensibilidade» do momento, ainda a merdosa, já não é inteiramente mau. Siga, en- tão, mais uma nódoa para o pano, agora sem dúvida reciclado, e recebe deste teu correspondente uns quantos esclarecimentos. Não cuspo no selo: tenho um stick de cola. Recuso a paternidade da sentença idiota «só o romance pode salvar»: lembro-me apenas de ter lido que o Heidegger disse isso uma vez, mas fa- lava de Deus ou de um deus, e, como imaginas, nunca li o Heidegger. Não percebo onde foste buscar essa ideia de que eu estaria cansado das securas do raciocínio: fartei-me, quando mui- to, dos raciocínios das securas. E acima de tudo não me torno «personagem rebarbativo e quezilento» (sic) quando me ponho a escrever: eu sou quezilento e sou rebarbativo, e assim mesmo me mostro quando não procuro a visibilidade. Cantankerous é o termo que deverás usar, pois foi com ele que iniciaste uma das tuas cartas, uns dois anos atrás, aliás noutras circunstâncias. Hoje estou até um tanto touchy. Pergunto-me se por isso mesmo insistes em receber cartas minhas todas as semanas, ou se terá sido para estimular essa dimensão de quezília que desempenhaste durante estas duas semanas a pequena cena da desaparecida que não atende o telefone e tarda a responder às cartas que recebe. Acresce que boquiaberto não se escreve «boqueaberto», saiu não tem acento no i e o o de chocha não carrega acento circunflexo. Nota: aqui deixo as palavras sublinhadas para que as escrevas correctamente trinta vezes. Castigo inexorável, e se te apetecer vinga-te depois nos alunos. Acrescento, se me permites que diga tudo, que não acredito numa linha do que escreves- te no PS sobre o vizinho do número 37 (para não falar da carta do Y., de todo implausível: ignorava até que ele escrevia cartas, e a ti particularmente). Abriu a carta que recebeu por engano? Em tronco nu e calças de pijama? É tal a inverosimilhança, que não descortino a compatibilidade com as «normas do discurso ficcional» (saborosa expressão, esta, na tua boca, ou na tua ca- neta...). Teremos aqui um exemplo da «ficção folhetinesca [que] se tornou praticamente modelo universal da organização da experiência, da linguagem, da comunicação»? Só faltava acrescentares que o homem se parece com o Richard Gere, sendo es- te actor da minha particular embirração e por certo eficaz numa ficção inventada com o amável propósito de me irritar. Ou já esqueceste que há menos de dois meses me escreveste a falar do dito vizinho do 37 e que, então, te referiste ao energúmeno em termos bem menos agrestes e bem mais..., tu sabes o que quero dizer. Suponho que andas a inventar um vizinho (eu, aliás, nem me lembro de haver 37 na rua), mal imagino para quê, e com esse vezo de professorinha que às vezes emerge nas tuas prosas chocas (não chochas, repara), fazes emigrar a invenção para a correspondência -- se calhar, para dar um picantezinho a tudo isto. E quando digo tudo isto refiro-me, mais uma vez, às cartas que me escreves e às que me obrigas ou quase obrigas a escre- ver-te, para depois me responderes com sarcasmos, remoques e invencionices. Não queres incluir na próxima uma fotografia tua a fazer gaifonas? Acho que o disparador automático daquela Canon anacrónica ainda funciona: se não, pede ao vizinho do número 37. Quem sabe se não poderá tirar a fotografia com uma mão enquanto segura as calças do pijama com a outra? Re- conhece depressa que seria uma cena bem mais abominável do que as minhas ideias sobre o Valmont...
Bom, isto está a ficar um tanto escabroso e, apesar de a tua carta me ter irritado, não quero abrir caminho à esbodegação...
Palavra engraçada, não é? Melhor do que esta só me ocorre me- noscabo ou menoscabar... Mudo de tom. Prevenindo a esbode- gação e sem menoscabo das tuas ideias muito próprias, lastimo que tenhas desvalorizado as observações a respeito da visibili- dade: era o que de mais sério havia na minha carta, que diabo! E, além disso, quero fazer-te saber que não entendes nada do meu interesse no crime: não me interessa a ilegalidade, e quan- do falo de crime o que procuro é precisamente o que chamas mente incriminativa. É o crime como metáfora da desordem in- troduzida na ordem, o crime como princípio de descoberta, o crime como dispositivo de organização e principalmente o cri- me como instrumento de delimitação da narrativa: princípio, meio e fim, entendes?, se te lembras um pouco do Aristóteles que terás lido na faculdade. E isto não releva senão de um
«substancial conhecimento da tradição»: relê o Crime e Casti- go, por exemplo. Mas estou demasiado irritado para securas de raciocínio, e afinal não mudo de tom. Manda lá a fotografia com as gaifonas, ou outra, que nem me lembro da tua cara quando te zangas e, seja como for, tenho saudades, algumas pe- lo menos.
Vou telefonar-te daqui a bocado e, se te surpreender um pou- co mais simpática, ainda pode ser que te poupe a experiência desta carta, ou mando-a mesmo, que talvez te dê mais precisa ideia do significado da palavra quezilento. Darei os cumprimen- tos ao sr. Manuel (anda o homem de monco caído, «derivado» a uns problemas de partilhas que ainda não entendi), mas dispen- so as pêras, que me fazem aerocolia...
Beijinhos,
a) Z.
CARTA VI
De Z. para X.
N., 23 de Outubro de 1995
Querida X.:
O telefonema de sábado apaziguou a minha irritação, sem res- tos sensíveis, e foi com razoável incómodo, ou mesmo mágoa, que, mal desliguei, me adverti de que a minha última carta já ia a caminho. A inexorabilidade do sistema postal é incompatível com o arrependimento. Sim, confesso que me arrependi de a ter envia- do, se não mesmo de a ter escrito, e eis-me escrevendo esta com a deliberação ou a disposição de corrigir o efeito daquela, posto não recorra agora ao correio azul: não vale a pena, já que, ou me engano muito, ou reagirás a ambas com a atitude dos últimos tem- pos, em que nunca acabo de discernir a paciência da indiferença: se calhar, são mesmo indiscerníveis. Mas o que realmente me irri- tou na tua carta foi o PS, não as palavras sobranceiras e mais ou menos aleivosas que dedicas ao romance, ou ao meu romance, para ser mais preciso. No próprio dia em que recebi a tua carta, liguei ao Y., e, por sorte ou por azar, apanhei-o em casa, o que vem sendo cada vez mais difícil. Pois ele negou-me categoricamente (enfaticamente talvez seja o advérbio adequado) que alguma vez te tenha escrito. Soltou uma gargalhadinha nervosa quando mencionei o monstro de borracha, mas de começo mostrara-se um pouco agastado, porque, creio, supôs que eu estava enciumado, o que não deixa de ter a sua graça: imagina o Y. cortejando a mulher próxima do próximo com recurso a ficções paranóicas, ele, que meio mundo reputa homossexual, posto não o seja, ou diga que não o é, que apenas lhe tem faltado adjuvante (termo dele mesmo, sem dúvida infectado de semiótica primária) para praticar a heterossexualidade (e tendo eu, certa vez, aventado que a pode- ria praticar sozinho, caso em que se tornaria um ortossexual, obtive esta resposta, tão serena como memorável: «Singular equívoco, meu caro. Vejo que ignoras quase tudo a respeito da termino- logia adequada, porque isso faria de mim qualquer coisa como um autossexual»). Mas, se calhar, foi o que aconteceu, e por vezes -- confesso-o com sinceridade ou com cinismo, e a alternativa é muito possivelmente falsa, pois, como alguém disse, o cinismo é apenas a sinceridade dos patifes --, acredito mais depressa em ti do que nele. Lembro-me de que o pai, na única vez que o encontrei, me disse qualquer coisa do género: «tenha cuidado com este meu filho, que é um mentiroso compulsivo». Mas o homem era psiquiatra, desequilibrado, ostensivamente brejeiro e conta-filmes (aliás, sem me conhecer, contou-me logo uma série de histórias de colegas e amigos, de doentes homens e de doentes mulheres, supostamente confidenciais), e por isso cuidei que mentiroso era ele, ri-me e não dei relevo ao aviso. E o certo é que nunca surpreendi no Y. uma mentira, fosse por acção, fosse por omissão (há quem diga que não se mente por omissão, mas discordo). Provavelmente, quis fazer-se engraçado, e agora envergonha-se da carta: ou talvez te tenha suposto vulnerável e lançasse o barro à parede, como diz o teu sr. Manuel, ainda que sem propósito de solicitar ou sem esperança de alcançar adjuvante. Como quer que seja, recolhida a negativa -- que, reconheço, nem era muito importante --, imaginei que tudo o mais era mistificação, que presumiras que eu enviara a carta pequena em correio azul com alguma intenção oculta, e que tinhas resolvido fazer de conta que não a receberas a tempo para neutralizar o efeito da intenção que não sabias ao certo qual fosse. Não era nenhuma, claro, mas a distância é o combustível adequado para estes mecanismos da presunção suspeitosa, virtualmente inesgotável, embora tóxico. Sei que a história do crime que ouvi no café não sustenta um mínimo de plausibilidade nem para a reviravolta de disposição que a carta anuncia, nem para a pressa do correio azul, sobretudo tendo presente que, quando ta contei no sábado, concordei sem resistência que dali não se tira nada que valha um parágrafo. Mas tu sabes como mudo de humores. Enfim, numa palavra e voltando ao que interessa, estou disposto a admitir que o tal vizinho existe e que, sim, senhor, o carteiro tem um problema neurológico. Só não sei como prevenir eventuais extravios: escrevo 37 em vez de 17 e confio que o carteiro troca os números e te entrega as cartas, ou desenho um 17 gigantesco, a ver se, pela visibilidade (!), venço o problema neurológico do homem? A solução limite é escrever em código, para o abominável do 37 não perceber, mas ficará sempre por garantir que reconduz a carta ao seu destino. Aliás, quem sabe se não está aí o crime que procuro? Desviar correspondência ou abrir correspondência alheia é crime... Ou será contravenção? Ti- ve em tempos uma namorada, estudante de direito, que me explicou a diferença, mas só me lembro de que ela -- a diferença, não a namorada -- existe. Tenho que averiguar isto: quando menos, dá-me para um episódio intercalar.
Não decidi por enquanto se ponho esta carta no correio (caso a recebas, porém, não depreendas daí que decidi fosse o que fosse: certos processos de deliberação prosseguem depois de consumada a acção que visam decidir...). Noto que tenho estado a escrever sobre o mais e o menos, como dizia a Giovanna, ape- sar de ter começado a carta com a intenção firme de a dedicar ao crime. Fica para a próxima. Lembro-me de ter lido há dias, tenho que averiguar onde (mas terá sido numa das tuas cartas?), que o recurso ao crime era hoje um expediente fácil ou conven- cional para estruturar uma história e conformar o romance ao princípio bacoco dos nossos críticos e jornalistas, que é o da
«história bem contada». Também li que o romance policial é genuinamente aristotélico, por ser o paradigma de uma ficção que segue as prescrições do Aristóteles sobre a organização da história ou intriga, conforme se traduza a palavra grega que jul- go ser mythos. Fica tudo para a próxima oportunidade (se não for antes): se esta correspondência não vier a ser outra vez per- turbada pelo vizinho do 37, está bom de ver.
Beijinhos (e desculpa as rabugens da outra carta) do sempre teu
a) Z.
De Z. para X.
N., 3 de Outubro de 1995
Querida X.:
Se falámos há pouco pelo telefone, vejo mal que razões tão «ponderosas» possam existir para que te escreva. A insistência com que tens alimentado esta correspondência deixa-me perplexo, e estou à espera, aliás, do momento em que confirmarei que não passa de mais um capricho, um desses traços do teu whimsical behaviour, como dizes, e a que me foste habituando de ano para ano. A distância ou a separação, creio eu, são facto- res irrisórios, pelo menos no mundo actual, moderno ou pós-moderno, como queiras, em que se comunica tele e tudo é mó- vel (até nas berças: ainda hoje de manhã, enquanto lia o jornal naquela esplanada manhosa perto de casa, aprendi bastante sobre stocks de perfis de alumínio graças a um bimbo com uma camisa feita de pano de barraca de praia que, no passeio, andando de um lado para o outro, «comunicava» entusiasmado com um cliente ou colega de trabalho, não percebi bem). Confesso, ou protesto mais uma vez, que escrever cartas me chateia, ou melhor, já que escrevo, me entedia: é assim uma espécie de logografia, em que se vai dizendo ou escrevendo seja o que for, porque o mais importante é haver carta, a carta em si mesma e por si mesma, diga ela o que disser. Aliás, se calhar, até acabas por ter razão: talvez se justifique escrever cartas quando não precisamos delas para falar com o outro ou com os outros. Já pensaste no que faria o Valmont com um telemóvel? Talvez possas vender esta ideia a alguém da publicidade: o Valmont telefonando à Michelle Pfeiffer, dentro de uma carruagem puxada por cavalos com antenas, e o Laclos suicidando-se depois de rasgar páginas e páginas do romance. Pelo meu lado, adopto o caminho oposto, e ainda hei-de pensar se não deveria escrever uma pequena monografia esclarecendo a influência do telefone sobre o romance epistolar: influência libertadora, é claro, por- que as personagens, podendo telefonar para marcar encontros secretos ou públicos, para se insultarem ou acarinharem, ficam com as cartas para repetir e alongar o assunto resumida mas eficazmente comunicado pelo telefone. Seria a pura inutilidade, a manifestação por si mesma, o gosto de escrever sem assunto, sem necessidade ou urgência de comunicar. Mais ou menos o que se passa, portanto, com o meu malfadado romance, que ali está parado (isso mesmo: não avancei uma linha), quando o importante não é que avance ou deixe de avançar, mas que se complete e exista. Disseste-me no outro dia que a escolha deste local e o isolamento que implica eram a raiz do desaire, que eu preciso de trânsito, mau cheiro e montras, mas acho que te en- ganas. A verdade é que estou cada vez mais convencido de que, muito simplesmente, não tenho romance para escrever, quando muito os vagos contornos de uma história, delineada sem gran- de imaginação, como tu própria foste a primeira a dizer, e louvado seja Deus pela franqueza que te insuflou no espírito. Essa é que é a raiz do desaire. Por que raio me lembrei de escrever um romance? Por que raio tantas pessoas de tantas profissões diferentes, de advogados a poetas, se lembram de escrever romances? A razão é só uma: visibilidade. As pessoas querem ser vistas, e as pessoas que escrevem alguma coisa querem escrever alguma coisa que as torne visíveis aos olhos do maior número possível de pessoas, tanto aos olhos de outras pessoas que escrevem como das que nada escrevem ou hardly lêem. Pois eu, numa palavra, estou farto da penumbra, da sombra, da cortina, do bastidor, do raio que o parta: eu, numa palavra, quero tornar-me visível, pôr-me em posição de ser visto. Eu, numa palavra, resolvi escrever um romance porque não tinha nem romance pa- ra escrever nem outro meio de me tornar visível. E, para isso, vim para o meio do nada, onde não vejo ninguém e ninguém me vê. Pois agora, neste estado de espírito negro, ou pelo menos cinzento, acho que atingirei a visibilidade bem mais depressa se escrever um ensaio-ficção provocatório com o título Telemóvel e Sexo Oral. Como vês, entre escrever isto e dizer que abandonei o projecto do romance, a diferença é pouca ou nenhuma. E assim até acabo mesmo por dizer uma coisa que não te disse há pouco pelo telefone. Já tinha decidido mandar o romance para o brejo, mas não to disse, com receio de que me perguntasses quando iria, então, embora daqui. Não tinha pronta nenhuma resposta convincente, e com franqueza não me apetece voltar. Bem não direi que estou, mas pelo menos ninguém me chateia. Olha, vê se me arranjas um crime. O meu romance não tem cri- me e sem crime, se calhar, não se faz um romance. Outra ideia: o Laclos, em vez de se suicidar, escreve a história do assassino do telemóvel.
Beijinhos,
a) Z.
CARTA II
De Z. para X.
N., 3 de Outubro de 1995
Querida X.:
Tentei telefonar várias vezes, mas estava impedido (falavas com quem?). Vai esta na aberração do correio azul a ver se che- ga antes da outra, que foi em correio normal. Desconsidera o que digo a respeito do romance quando a leres, e se já a leste faz de conta que não disse nada. Há bocado, surpreendi uma conversa muito curiosa naquele cafezinho da estrada. Acho que já tenho o crime, e até se ajusta perfeitamente à história que me interessa contar. Mas preciso de voltar ao café para apurar uns pormenores que me escaparam. Depois te conto.
Beijinhos,
a) Z.
PS.: Outra ideia: o Valmont comprando um telemóvel e o funcionário da Telecel mostrando-lhe fotografias da Michelle Pfeiffer com o Malkovich e dizendo, num tom insinuante:
«-- Que fariam eles com um telemóvel?». Actor para fazer de
Valmont?
CARTA III
De Z. para Y.
N., 3 de Outubro de 1995
Caro Y.:
Não sei lá que vida é a tua, mas nunca estás em casa. Telefonei nas mais diversas horas e nem o gravador me atendeu. Que andas a fazer? Acabo de escrever à X., e começo a sentir alguns remorsos. Continuo a entretê-la com a história do romance, mas mais dia menos dia tenho que arrumar esta situação e esclarecer as coisas de vez. Reconheço que a coisa me dá um certo gozo, até porque vou apurando a técnica da mistificação, sempre proveitosa neste como em todos os tempos. Hoje, por exemplo, escrevi uma carta meio desesperada, dizendo-lhe que o romance está parado, que não avanço há dois meses, que desisto, e lá lhe fui dizendo que não tenciono vol- tar tão cedo. Logo a seguir, escrevi outra, que mandei em correio azul para chegar primeiro, dizendo-lhe que desconsideras- se a primeira, porque tinha arranjado uma ideia, um crime que me fazia falta, e não sei que mais. Claro que o propósito da segunda carta é atrair-lhe a atenção para a primeira, e confio que os nossos laboriosos serviços postais não me vão pregar a par- tida de fazer chegar mais tarde a que foi em correio azul. De qualquer modo, ela continua a insistir para que eu lhe escreva, e eu já pensei se não devia mesmo amanhar um romance com o raio das cartas, que são a única coisa que escrevo, e bem me custa, podes crer, arranjar assunto para pelo menos duas páginas (o mínimo exigido pela nossa amiga). Se a encontrares, faz de conta que nada sabes de mim, pede notícias, pergunta pelo romance, e se ela te der algum sinal de que desconfia, telefona-me: pelo menos, serve-me para avaliar a eficácia da mistificação.
Um abraço,
a) Z.
CARTA IV
De X. para Z.
L., 17 de Outubro de 1995
Querido Z.:
A tua carta teve artes de se infiltrar entre duas contas impa- gáveis, atiradas a uma caixa de sapatos que eu dedico a S. Ju- das Tadeu, advogado dos impossíveis, pelo que só hoje, dia do recebimento dos dinheiros devidos por uma tradução que eu andei a fazer quando era nova, a voltei a encontrar com sur- presa e agrado. Estranhando, embora, estas tuas atitudes. Se é que chego a lembrar-me, primeiro andavas cansado das secu- ras do raciocínio e dos limites de uma prática coerciva e qui- seste escrever um romance. O teu entusiasmo, que eu partilhei com o pé um pouco atrás -- já não é a primeira vez que assisto a estes entusiasmos -- levou-te a dizer uma frase assim como:
«só o romance pode salvar», não se entendendo se a virtude salvífica dessa arte moribunda, com o futuro já todo por trás dela, a adiantada, se aplicava meramente à tua pessoa ou à Hu- manidade em peso. Aprovei, mesmo assim. Afinal, do roman- ce nunca veio mal ao mundo, descontando este ou aquele caso especial e involuntário, embora esteja de momento capaz de achar que vivemos um enjoativo superavit de ficção, que me leva a procurar ensaio, teoria ou documentário onde, ai de mim!, vão ingerindo à grande e à francesa as normas do dis- curso ficcional.
E, como em tudo, é quando o romance se torna mais pobre, mais fechado em «histórias» e determinado pelo «formato», que ele inunda as praças e os mercados, a televisão, as revistas, os jornais, de tal modo que a ficção folhetinesca se tornou praticamente modelo universal da organização da experiência, da linguagem e da comunicação.
Agora vejo que começas a ter as tuas dúvidas. É normal. Mas ponho-as na conta deste personagem rebarbativo e quezilento em que te tornas à escrita, quiçá puxado pela pena do estilo. Aposto que, quando cuspiste no selo do envelope, já nem te lembravas de ter dito que andavas atrás de «visibilidade»!
Devo dizer-te, se é que isto tem alguma importância, que a ideia do crime me parece absolutamente dispensável. Escreve- ram-se grandes romances sem a menção sequer de um esboço de escaramuça e a própria ideia de que só existe romance se houver ilegalidade me impressiona como verdadeiramente imo- ral. De resto, nem todo o crime é matéria de romance. Se o as- sassinato do Kennedy fez correr rios de tinta, se há bons textos que partem da exploração de fait-divers -- como a Bíblia, que faz um escarcéu dos diabos por causa de uma simples maçã — calculo assim por alto que a maior parte do que acontece é irre- levante e daria, quando muito, uma short story bastante chôcha e short.
Para escrever um romance tem de haver, creio eu, para além da absoluta necessidade íntima de o fazer, menos crime do que mente incriminativa, bom gosto pela complicação intrigante e substancial conhecimento da tradição. A história, que não é teia da intriga, interessa pouco. Pelo menos interessa-me pouco a mim, que me esqueço do princípio dela assim que vai a meio, no que segue o caminho das anedotas, incidentes e outras peri- pécias, no grande precipício do olvido. Mas, claro, devo ser eu, e deve ser da idade, que só uma grande falta de memória, e de vergonha, nos mantém persuadidos de que trazemos alguma no- vidade ao mundo.
Não te apresses em voltar. Lisboa está na mesma, com um tempo magnífico, esta temperatura dolce que é um cocktail explosivo quando associada ao fumo dos carros, enfim, uma rentrée exactamente igual às anteriores, de tal modo que ao entrar hoje na sala tive uma espécie de alucinação, via os troncos dos alunos fixos às cadeiras, e só as cabeças eram móveis, mas um pouco desenculatradas do pescoço, como aquelas fotografias monstruosas que se tiram nas feiras. E, por falar em móveis, acho as tuas ideias para o Valmont e o telemóvel abomináveis, nem sequer aproveitáveis para a publicidade que, no entanto, excele e abunda em ideias ditas peregrinas.
Não te esqueças de pedir ao senhor Manuel que te apanhe umas pêras. Devem estar uma delícia. Como é que ele está? Diz que mando cumprimentos.
Já vou atrasada. O meu horário, feito por uns sádicos, que se acoitam ao digno termo de colegas, obriga-me a uma aula às duas da tarde. Devo apressar-me ou adormecem antes de eu entrar na sala. E, por uma questão de amor-próprio, já agora que- ria ser eu a adormecê-los.
Bom trabalho.
a) X.
PS.: Isto é inacreditável! Imagina que só hoje, dezoito, é que recebi a carta que mandaste por correio azul e que foi, por enga- no, parar a casa do vizinho do número 37, um ser aliás ignóbil, que me apareceu aqui às seis da tarde em tronco nu e calças de pijama, a entregar a carta aberta (!), e a dizer-me, com o ar mais tranquilo deste mundo, que a tinha lido e não tinha percebido nada. Todo malandro, esqueceu-se de a entregar durante quinze dias! Será possível? Fiquei de tal modo boqueaberta que não fui capaz de articular palavra, e ele a sorrir-me e a menear o tronco! E depois, quando ele saíu, é que me lembrei de que já não é a primeira vez que isto acontece, porque o carteiro tem uma doença qualquer neurológica que o deve fazer confundir o um com o sete, e aqui há uns meses largos levou ao vizinho do 37 o meu extracto do Banco e uma carta do Y., ligeiramente delirante, em que me parece que ele dizia estar a ser perseguido por um gigantesco dragão de borracha, ou uma coisa impossível do género, e o homem leu a carta e comentou-a comigo, até me deu o nome de uma bruxa que tirava mau-olhado e que era mui- to amada pelo povo ali da Mouraria. Na altura, depois da minha já habitual boqueabertura, disse-lhe que era inclassificável o que ele tinha feito, porque é das coisas que se aprendem com o leite materno, nunca ler a correspondência dos outros. Ele não devia saber exactamente o que queria dizer «inclassificável», achou que eu estava a acusá-lo de vir de uma classe inferior e todo enxofrado, saiu a bater com a porta. Por que será que me lembro agora tão bem do que não me lembrei há pouco?
CARTA V
De Z. para X.
N., 19 de Outubro de 1995
Minha menina:
Pelos modos, participo galhardamente da grande excrementação romanesca que, a teus olhos, enodoa o mundo de hoje. Não ser anacrónico, ou estar em sintonia com a «sensibilidade» do momento, ainda a merdosa, já não é inteiramente mau. Siga, en- tão, mais uma nódoa para o pano, agora sem dúvida reciclado, e recebe deste teu correspondente uns quantos esclarecimentos. Não cuspo no selo: tenho um stick de cola. Recuso a paternidade da sentença idiota «só o romance pode salvar»: lembro-me apenas de ter lido que o Heidegger disse isso uma vez, mas fa- lava de Deus ou de um deus, e, como imaginas, nunca li o Heidegger. Não percebo onde foste buscar essa ideia de que eu estaria cansado das securas do raciocínio: fartei-me, quando mui- to, dos raciocínios das securas. E acima de tudo não me torno «personagem rebarbativo e quezilento» (sic) quando me ponho a escrever: eu sou quezilento e sou rebarbativo, e assim mesmo me mostro quando não procuro a visibilidade. Cantankerous é o termo que deverás usar, pois foi com ele que iniciaste uma das tuas cartas, uns dois anos atrás, aliás noutras circunstâncias. Hoje estou até um tanto touchy. Pergunto-me se por isso mesmo insistes em receber cartas minhas todas as semanas, ou se terá sido para estimular essa dimensão de quezília que desempenhaste durante estas duas semanas a pequena cena da desaparecida que não atende o telefone e tarda a responder às cartas que recebe. Acresce que boquiaberto não se escreve «boqueaberto», saiu não tem acento no i e o o de chocha não carrega acento circunflexo. Nota: aqui deixo as palavras sublinhadas para que as escrevas correctamente trinta vezes. Castigo inexorável, e se te apetecer vinga-te depois nos alunos. Acrescento, se me permites que diga tudo, que não acredito numa linha do que escreves- te no PS sobre o vizinho do número 37 (para não falar da carta do Y., de todo implausível: ignorava até que ele escrevia cartas, e a ti particularmente). Abriu a carta que recebeu por engano? Em tronco nu e calças de pijama? É tal a inverosimilhança, que não descortino a compatibilidade com as «normas do discurso ficcional» (saborosa expressão, esta, na tua boca, ou na tua ca- neta...). Teremos aqui um exemplo da «ficção folhetinesca [que] se tornou praticamente modelo universal da organização da experiência, da linguagem, da comunicação»? Só faltava acrescentares que o homem se parece com o Richard Gere, sendo es- te actor da minha particular embirração e por certo eficaz numa ficção inventada com o amável propósito de me irritar. Ou já esqueceste que há menos de dois meses me escreveste a falar do dito vizinho do 37 e que, então, te referiste ao energúmeno em termos bem menos agrestes e bem mais..., tu sabes o que quero dizer. Suponho que andas a inventar um vizinho (eu, aliás, nem me lembro de haver 37 na rua), mal imagino para quê, e com esse vezo de professorinha que às vezes emerge nas tuas prosas chocas (não chochas, repara), fazes emigrar a invenção para a correspondência -- se calhar, para dar um picantezinho a tudo isto. E quando digo tudo isto refiro-me, mais uma vez, às cartas que me escreves e às que me obrigas ou quase obrigas a escre- ver-te, para depois me responderes com sarcasmos, remoques e invencionices. Não queres incluir na próxima uma fotografia tua a fazer gaifonas? Acho que o disparador automático daquela Canon anacrónica ainda funciona: se não, pede ao vizinho do número 37. Quem sabe se não poderá tirar a fotografia com uma mão enquanto segura as calças do pijama com a outra? Re- conhece depressa que seria uma cena bem mais abominável do que as minhas ideias sobre o Valmont...
Bom, isto está a ficar um tanto escabroso e, apesar de a tua carta me ter irritado, não quero abrir caminho à esbodegação...
Palavra engraçada, não é? Melhor do que esta só me ocorre me- noscabo ou menoscabar... Mudo de tom. Prevenindo a esbode- gação e sem menoscabo das tuas ideias muito próprias, lastimo que tenhas desvalorizado as observações a respeito da visibili- dade: era o que de mais sério havia na minha carta, que diabo! E, além disso, quero fazer-te saber que não entendes nada do meu interesse no crime: não me interessa a ilegalidade, e quan- do falo de crime o que procuro é precisamente o que chamas mente incriminativa. É o crime como metáfora da desordem in- troduzida na ordem, o crime como princípio de descoberta, o crime como dispositivo de organização e principalmente o cri- me como instrumento de delimitação da narrativa: princípio, meio e fim, entendes?, se te lembras um pouco do Aristóteles que terás lido na faculdade. E isto não releva senão de um
«substancial conhecimento da tradição»: relê o Crime e Casti- go, por exemplo. Mas estou demasiado irritado para securas de raciocínio, e afinal não mudo de tom. Manda lá a fotografia com as gaifonas, ou outra, que nem me lembro da tua cara quando te zangas e, seja como for, tenho saudades, algumas pe- lo menos.
Vou telefonar-te daqui a bocado e, se te surpreender um pou- co mais simpática, ainda pode ser que te poupe a experiência desta carta, ou mando-a mesmo, que talvez te dê mais precisa ideia do significado da palavra quezilento. Darei os cumprimen- tos ao sr. Manuel (anda o homem de monco caído, «derivado» a uns problemas de partilhas que ainda não entendi), mas dispen- so as pêras, que me fazem aerocolia...
Beijinhos,
a) Z.
CARTA VI
De Z. para X.
N., 23 de Outubro de 1995
Querida X.:
O telefonema de sábado apaziguou a minha irritação, sem res- tos sensíveis, e foi com razoável incómodo, ou mesmo mágoa, que, mal desliguei, me adverti de que a minha última carta já ia a caminho. A inexorabilidade do sistema postal é incompatível com o arrependimento. Sim, confesso que me arrependi de a ter envia- do, se não mesmo de a ter escrito, e eis-me escrevendo esta com a deliberação ou a disposição de corrigir o efeito daquela, posto não recorra agora ao correio azul: não vale a pena, já que, ou me engano muito, ou reagirás a ambas com a atitude dos últimos tem- pos, em que nunca acabo de discernir a paciência da indiferença: se calhar, são mesmo indiscerníveis. Mas o que realmente me irri- tou na tua carta foi o PS, não as palavras sobranceiras e mais ou menos aleivosas que dedicas ao romance, ou ao meu romance, para ser mais preciso. No próprio dia em que recebi a tua carta, liguei ao Y., e, por sorte ou por azar, apanhei-o em casa, o que vem sendo cada vez mais difícil. Pois ele negou-me categoricamente (enfaticamente talvez seja o advérbio adequado) que alguma vez te tenha escrito. Soltou uma gargalhadinha nervosa quando mencionei o monstro de borracha, mas de começo mostrara-se um pouco agastado, porque, creio, supôs que eu estava enciumado, o que não deixa de ter a sua graça: imagina o Y. cortejando a mulher próxima do próximo com recurso a ficções paranóicas, ele, que meio mundo reputa homossexual, posto não o seja, ou diga que não o é, que apenas lhe tem faltado adjuvante (termo dele mesmo, sem dúvida infectado de semiótica primária) para praticar a heterossexualidade (e tendo eu, certa vez, aventado que a pode- ria praticar sozinho, caso em que se tornaria um ortossexual, obtive esta resposta, tão serena como memorável: «Singular equívoco, meu caro. Vejo que ignoras quase tudo a respeito da termino- logia adequada, porque isso faria de mim qualquer coisa como um autossexual»). Mas, se calhar, foi o que aconteceu, e por vezes -- confesso-o com sinceridade ou com cinismo, e a alternativa é muito possivelmente falsa, pois, como alguém disse, o cinismo é apenas a sinceridade dos patifes --, acredito mais depressa em ti do que nele. Lembro-me de que o pai, na única vez que o encontrei, me disse qualquer coisa do género: «tenha cuidado com este meu filho, que é um mentiroso compulsivo». Mas o homem era psiquiatra, desequilibrado, ostensivamente brejeiro e conta-filmes (aliás, sem me conhecer, contou-me logo uma série de histórias de colegas e amigos, de doentes homens e de doentes mulheres, supostamente confidenciais), e por isso cuidei que mentiroso era ele, ri-me e não dei relevo ao aviso. E o certo é que nunca surpreendi no Y. uma mentira, fosse por acção, fosse por omissão (há quem diga que não se mente por omissão, mas discordo). Provavelmente, quis fazer-se engraçado, e agora envergonha-se da carta: ou talvez te tenha suposto vulnerável e lançasse o barro à parede, como diz o teu sr. Manuel, ainda que sem propósito de solicitar ou sem esperança de alcançar adjuvante. Como quer que seja, recolhida a negativa -- que, reconheço, nem era muito importante --, imaginei que tudo o mais era mistificação, que presumiras que eu enviara a carta pequena em correio azul com alguma intenção oculta, e que tinhas resolvido fazer de conta que não a receberas a tempo para neutralizar o efeito da intenção que não sabias ao certo qual fosse. Não era nenhuma, claro, mas a distância é o combustível adequado para estes mecanismos da presunção suspeitosa, virtualmente inesgotável, embora tóxico. Sei que a história do crime que ouvi no café não sustenta um mínimo de plausibilidade nem para a reviravolta de disposição que a carta anuncia, nem para a pressa do correio azul, sobretudo tendo presente que, quando ta contei no sábado, concordei sem resistência que dali não se tira nada que valha um parágrafo. Mas tu sabes como mudo de humores. Enfim, numa palavra e voltando ao que interessa, estou disposto a admitir que o tal vizinho existe e que, sim, senhor, o carteiro tem um problema neurológico. Só não sei como prevenir eventuais extravios: escrevo 37 em vez de 17 e confio que o carteiro troca os números e te entrega as cartas, ou desenho um 17 gigantesco, a ver se, pela visibilidade (!), venço o problema neurológico do homem? A solução limite é escrever em código, para o abominável do 37 não perceber, mas ficará sempre por garantir que reconduz a carta ao seu destino. Aliás, quem sabe se não está aí o crime que procuro? Desviar correspondência ou abrir correspondência alheia é crime... Ou será contravenção? Ti- ve em tempos uma namorada, estudante de direito, que me explicou a diferença, mas só me lembro de que ela -- a diferença, não a namorada -- existe. Tenho que averiguar isto: quando menos, dá-me para um episódio intercalar.
Não decidi por enquanto se ponho esta carta no correio (caso a recebas, porém, não depreendas daí que decidi fosse o que fosse: certos processos de deliberação prosseguem depois de consumada a acção que visam decidir...). Noto que tenho estado a escrever sobre o mais e o menos, como dizia a Giovanna, ape- sar de ter começado a carta com a intenção firme de a dedicar ao crime. Fica para a próxima. Lembro-me de ter lido há dias, tenho que averiguar onde (mas terá sido numa das tuas cartas?), que o recurso ao crime era hoje um expediente fácil ou conven- cional para estruturar uma história e conformar o romance ao princípio bacoco dos nossos críticos e jornalistas, que é o da
«história bem contada». Também li que o romance policial é genuinamente aristotélico, por ser o paradigma de uma ficção que segue as prescrições do Aristóteles sobre a organização da história ou intriga, conforme se traduza a palavra grega que jul- go ser mythos. Fica tudo para a próxima oportunidade (se não for antes): se esta correspondência não vier a ser outra vez per- turbada pelo vizinho do 37, está bom de ver.
Beijinhos (e desculpa as rabugens da outra carta) do sempre teu
a) Z.