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O Trono e o Domínio, conto, Edições Rolim, 1984
Luísa Costa Gomes e Rui Romão
O TRONO E O DOMÍNIO é uma novela escrita em co-autoria com Rui Romão e foi editada pelas edições rolim, colecção fantástico, nº. 10, em Março de 1985. A primeira parte dessa novela era constituída pelo conto aqui reproduzido em versão revista. Esta versão foi incluída na antologia Ficções Científicas & Fantásticas distribuída em 2006 com o jornal Público, publicada pela Chimpazé Intelectual. Embora trabalhado, o texto mantém a sua marcada natureza de juvenília.
leia o conto
- Anda por aí um tipo a fazer muitas perguntas... - soprou o secretário ao ouvido do Domínio-Mor. - Eliminamo-lo?
Urjân observava o desfile com olho crítico.
- Diz-se-Lhe ?- insistiu o secretário.
O Domínio impacientava-se sempre que se Lhe referiam em vão.
- E íamos incomodá-Lo com trivialidades ?! Os anjos que guardem esse tipo um pouco mais de perto. A que Ordem pertence ele?
- Faz-se passar por um Trono.
- Mas que barulheira infernal, Diamantino! Sempre estes cânticos! Não se pode moderar o som?
- Julgo que estarão a cantar dentro das normas, mas se Vossa Serenidade desejar...
- Que espécie de perguntas anda ele a fazer?
Diamantino fechou-se num silêncio embaraçado. Um anjo isolado passava, correndo, atrasado para a contemplação.
- Investiga, não sabemos ainda bem com que intenção; faz perguntas sobre os diabos, sobre as Guerras Remotas que nos confrontaram...
- Acho-os um bocado caídos hoje - interrompeu o Domínio, apontando o queixo etéreo ao contingente de anjos. - Como se chama ele afinal?
- Diz chamar-se Lashtar e encontrar-se em missão confidencial da parte das altas potestades. Mas nós não possuímos Registo desta missão.
- É sempre a mesma desordem... - resmungou o Domínio. - Gostava de saber para que nos servirão as máquinas de registar, se não registam...
- Vossa Serenidade estará com certeza inteirada da infinita complexidade da nossa tarefa. Nem possuímos registo de nenhum Trono chamado Lashtar.
- Caberia perguntar a Vossa Secretariedade - ironizou o Domínio - de que possui afinal Vossa Secretariedade registo...
- Vossa Serenidade conhece as dificuldades de organização do Registo, considerando que o número de Tronos é infinito, que as missões confidenciais não são, na sua maioria, registáveis e que há ordens que emanam do Alto.
- Como assim, "do Alto"? - rosnou entre dentes o Domínio. - Quem mais dá ordens além de mim? Quer-me parecer que Vossa Secretariedade faz espírito!
- Para todos os efeitos, suspeitamos violentamente de Lashtar, por isso mandámos...
- Mandámos?
- Mandou-se que Lashtar fosse vigiado de perto e que se tomasse nota de todos os seus passos.
Diamantino calou-se, esperando as perguntas do Domínio. Mas ele continuava a observar o desfile, e o secretário, seguindo-lhe o olhar, pensou:
- Oxalá não os conte!
- Estão cá todos? - perguntou logo o Domínio, e acrescentou. - A telepatia hierárquica tem as suas desvantagens.
- Justamente, não, Serenidade. Faltam alguns.
- Alguns? E onde andam esses alguns?
- Uns em Oxu, outros em Mitilene de Zoa. A reparar.
- Oxu já precisa de reparação? Como o tempo passa. Claro que a coisa não tem o mesmo brilho quando não estão todos. O segredo dos desfiles é o volume, é a quantidade.
- Perdoe-me Vossa Serenidade se insistir... -insistiu o secretário - mas cedo ou tarde seremos forçados a tomar providências.
- A corte celestial está a transformar-se numa corte policial - disse, muito depressa, e desejou não o ter dito. As frases pioravam sem remissão. E pensar que todos os "slogans" de todos os dormitórios e refeitórios dos Serafins aos anjos eram de sua autoria. Que o céu pululava de lemas seus, que os seus ditos eram gravados e ecoavam nas paradas!
O Domínio quis apagar a impressão da frase. Virou-se um pouco de lado e, fixando a orelha do secretário, perguntou:
-Então e aquele problema de águas em Tripti?
-Está sanado - respondeu o secretário e pensou. - Que desfile cansativo...
- Sempre foram cansativos - confirmou o Domínio-Mor.
E nesse instante desejou não ser telepata, não ter que governar coortes, ordens angélicas, intrigas celestiais, para não falar na multitude de uma criação dispersa e mal acabada; desejou sentar-se algures em Mitilene de Zoa, à porta de um consultório filosófico, e repousar.
*
-É um demónio! - anunciou Diamantino, acenando suavemente os relatórios. Empurrou-os para diante do Domínio e esperou.
-Um diabo? - espantou-se Urjân. - Mas não tínhamos acabado com eles?
-Vossa Serenidade tem uma forma muito directa de colocar as questões. Na minha opinião, ainda restam demais.
- Quem comandou as coortes celestiais nas últimas batalhas e chacinas?
O secretário percorreu devagar as folhas do dossier, depois estendeu um dedo à procura do nome:
- O anjo de guarda a... Tíbur.
- Concentra-te e chama-o lá - ordenou o Domínio-Mor. E depressa, que está aqui uma grande corrente de ar.
O azul, na verdade, esfriava. Anjos voavam dois a dois, cantando; as altas hierarquias meditavam, banhadas na luz, e Ele dormia, vigiado pelos Serafins, os Querubins e os Tronos atentos aos Seus sonhos.
- Três nonos do céu na doce vida, quando é preciso protegê-los e sustentá-los, cá estamos nós.
O anjo de Tíbur materializava-se. Precisavam-se os contornos do seu espírito; por último apareceu a espada, que era de fogo.
- Chega-te cá - sorriu-lhe o Domínio. - Já agora aqueço-me no gládio.
Tíbur arrastava-se a custo. Era um anjo muito velho, quase antigo. Diamantino fez sinal a dois anjos simples para que o amparassem e lhe segurassem nas asas, já que insistia em fazer a complicada saudação do anjo legionário, erguendo-as acima da cabeça. Mas emaranhavam-se-lhe as barbas nas asas e parou, fixando o Domínio, intimidado:
- Tíbur - disse Urjân - temos aqui uma situação delicada. Apareceu aí uma criatura que supomos ser um diabo...
- É o que indicam os relatórios de vigilância - afirmou o Secretário nas costas de Tíbur, que começava lentamente a voltar-se para ele.
- Ora os nossos relatórios falavam de Solução Final, de Grande Extermínio - a expressão até é minha - e concluiu-se que o Inimigo fora totalmente aniquilado.
Tíbur encarava o secretário e começava a rodar na direcção do Domínio quando Diamantino disse:
- Solução Final por força da feliz expressão de Vossa Serenidade. O número de diabos é, por natureza, infinito...
Tíbur estava agora de frente para o Domínio e virava-se para o Secretário quando o Domínio replicou com veemência:
- Qual infinito! Eles eram 86 456, contei-os eu e Ele também os trouxe contados até Lhe dar o sono!
Tíbur, cansado de rodar em vão, deixou-se ficar de frente para o Secretário, esperando a contradição dele, que não veio. Depois, balbuciou:
- Fi...ni...to!
Os anjos que giravam cabeças e asas acompanhando as rígidas voltas de Tíbur não puderam retê-lo por mais tempo. Tíbur avançou para o Domínio-Mor, ergueu o braço e caiu aos três pés da mesa.
- Que foi? - perguntou o Domínio, interdito.
- São os nervos a dar de si - desculpou-o o Secretário. E, para os anjos. - Ajudem-no a recompôr-se.
Tíbur recuperava alguns sentidos e cobria o rosto envergonhado com a asa. Mais calmo, preparou-se para falar, fixando um ponto a meio caminho entre Urjân e o Secretário. Arfava. O clima de Tíbur acabara o que o desespero do exílio tinha começado.
- Avançar... disse eu... setecentos demónios...setecentos mil demónios vezes sete...centos...
Diamantino encorajava-o, sorrindo, a falar calmamente.
- Eles... mortos... mortos... Santo Deus!
Urjân e Diamantino entreolharam-se, apavorados. Iria, enfim, acordar à invocação de um velho anjo das batalhas? Deixaram passar o tempo, nada aconteceu. Respiraram. Tíbur adormecia de pasmo.
- Os relatórios das últimas batalhas são algo confusos; Vossa Serenidade sabe que, na altura, os serviços estavam desorganizados, e não podemos considerar Tíbur responsável...embora tenha sido formalmente responsabilizado pelos massacres, pelo fracasso dos massacres e pela divulgação hierárquica dos massacres dentro de algumas ordens inferiores; foi ainda responsabilizado pelos rumores que corriam sobre os massacres, pelo facto de esses rumores serem considerados verdadeiros e por ter perturbado com toda a ondulação causada nas esferas a contemplação das Primeiras Hierarquias.
- Lúcifer! - clamou o anjo no seu sono, brandindo a garra. - Infinitos!
O Domínio abanou de novo a cabeça à contingência dos saberes. Determinara a Solução Final, ela estava consignada em relatório selado e aprovado, como se atrevia o presente episódio a desmentir o que ficara manifestamente cumprido e resolvido? A Criação e a Destruição faziam-se de uma vez para sempre, não apareciam e desapareciam como um qualquer passe de magia, um truque de feira!
- A ser demónio, supondo que o é, quem é ele? – perguntou.
- Supomos que Astaroth, embora bem disfarçado. Pelas nossas contas deve ser um dos últimos nobres infernais ainda em actividade. Insto Vossa Serenidade a que o mandemos buscar para ser submetido aos Testes.
- Astaroth, um que foi príncipe dos Tronos? - perguntou o Domínio. E reflectiu: -Degradou-se em diabo da preguiça, não é verdade? Ensinava matemáticas...Nunca nos deu que fazer até agora.
Astaroth, enquanto pertenceu à ordem dos Tronos, na Primeira Hierarquia, não passaria facilmente despercebido. Sendo os Tronos as próprias rodas da Carroça Celestial, foi Astaroth enquanto Trono uma roda imensa coberta de olhos e emanando a luz limpa do Espírito ; é o Círculo dos Tronos que marca a fronteira a partir da qual a processão divina se conspurca de umas tintas de matéria. São, por isso, os Tronos, os últimos antes da transição, debruçados ao varandim do espírito de onde avistam e sentem já, quem sabe, as emanações mais vibrantes da matéria, sentindo talvez a atracção maior pelo que lhes é oposto. Para combater estas atracções, principais causadoras das Guerras Remotas, havia a Ordem dos Domínios. Se Lashtar era afinal o Trono Astaroth, decaído em duque dos infernos, e regressado à Corte para perturbar as hierarquias com perguntas sobre águas passadas, sobre massacres abafados para não incomodar o sono de Deus, então havia que agir.
- Desleixámo-nos, Diamantino – gemeu o Domínio.
O secretário baixou a cabeça. Era um serviço infinito. Fosse ele omnipotente, omnisciente, nada mais fácil. Mas assim, com três nonos do céu em permanente contemplação, o universo a crescer, a má desordem tinha que rebentar em qualquer lado.
- O melhor é aplicar-lhe o Método – decidiu o Domínio.- Os Testes raramente são conclusivos.
*
Um murmúrio corre o céu, suspendem-se as infinitas execuções dos anjos. Há um príncipe dos Tronos que aflora a alteração da ordem nas hierarquias: deixou a contemplativa comunhão no espírito de Deus para entrar, furtivamente, no estrato dos Domínios. Urjân, o Domínio-Mor, e Diamantino, seu Secretário, sentem-lhe a presença, confusos e agitados.
- Há muita luz, Diamantino.
Diamantino remexe os relatórios em silêncio, sem tentar responder.
- Um Trono? – pergunta o Domínio, aterrado - E vem falar comigo?
Apercebe-se já a auréola do Trono, a luminosa curvatura coberta de olhos brilhantes de claridade e doçura. Urjân prostra-se, subjugado, e espera a voz do Trono. Quando o sentiu insuportavelmente próximo entoou, incontinente:
- Ó Anjo da Face! Olhos do Senhor! Espírito da Obediência e da Resignação, Trono de Deus, Sustentador das Supremas Hierarquias! Ó Espelho Vivo da Submissão e da Humildade Extrema!
- Reconheço que erro ao entrar no estrato dos Domínios. Rogo-lhe que me perdoe. Ouvimos infelizmente alguns murmúrios - disse o Trono - acerca de um príncipe da nossa Ordem; com autorização, reuniram-se os Tronos em conselho e ouviram-se uns aos outros sobre os murmúrios que os afectam. Decidiram enviar-me à ordem dos Domínios para apurar a verdade dos rumores.
- Suspeitamos, de facto, que tenha sido outrora um Trono... -respondeu o Domínio, mais à vontade, e emendou, depois de uma troca de olhares com o secretário: - O relatório de vigilância indica que será Astaroth, mas o próprio diz ser o Pseudo-Trono Lashtar, que investiga o desaparecimento de alguns demónios...
O Trono olhava com todos os olhos e sorria com todos os olhos, e compreendia.
- Desaparecimento de demónios? -espantou-se o Trono. - E quando se deu isso?
- Em tempos remotos... um ou dois... um caso sem qualquer importância... mas Lashtar insiste... pareceu-nos suspeito...
- Perdoe-me interrompê-lo, mas pareceu suspeito o desaparecimento ou a investigação?
-Ambos, realmente... o desaparecimento em tempos remotos, demasiado recuados no aion... mas Lashtar insiste... pareceu-nos suspeito...
Houve um silêncio. Diamantino adiantou-se um pouco, estendendo os relatórios:
- Vossa Grande Resignação dá-me licença que acrescente detalhes clarificadores? O que fez parecer suspeito a Sua Serenidade o Pseudo-Lashtar não foi a investigação de per se mas o modus operandi do suposto Trono sublime, que consideramos ser na verdade o Anti-Trono Astaroth, príncipe infernal, infiltrado na Corte com obscuros propósitos. Lashtar comporta-se com arrogância e, de forma tortuosa, busca, exige e rouba informação confidencial, intima e sabota o trabalho dos anjos da nossa Ordem. Como Vossa Resignação pode constatar, esta conduta não é própria de um Trono.
O Trono ouvia obedientemente Diamantino, que concluía:
- Assim provocou, o Insensato, alterações de consequências tão inevitáveis quanto imprevisíveis.
- Mandam-me os de minha Ordem saber o que tencionais fazer dele.
- Sua Serenidade mandou que fosse submetido ao Método.
- Mas dizia-se que lhe aplicariam os Testes... - queixou-se o Trono.
Diamantino e o Domínio entreolharam-se. A contemplação absoluta do espírito, que era tarefa e natureza dos Tronos, parecia ter-se interrompido mais que o devido, com toda a agitação, o diz-se diz-se, a intriga originada por Lashtar.
- Considerámos afinal o Método Torquemada - interrompeu o Domínio. - O processo mais simples e eficaz de confirmação da culpabilidade.
- Santo Deus! - exclamou o Trono, resignadamente. Urjân e Diamantino encolheram-se num reflexo, esperando a resposta à invocação. Mas ainda desta vez Ele não se manifestou.
- Lamento ter de concluir que o pobre Lashtar desobedeceu às hierarquias inferiores. Temo sentir a obrigação de lhe pedir um favor, Urjân.
E, rodando sobre si próprio, num belo efeito de luzes, piscou com os olhos três palavras argentinas: CLEMÊNCIA, PACIÊNCIA e uma terceira que Urjân não perceberam bem.
- Quero com isto dizer que os Tronos rogam a Vossa Serenidade que submeta Lashtar aos Testes e abandone o Método.
- Já o esperava - disse Urjân. - Não sei se é possível, o caso está em marcha e não depende só de mim. Os Testes têm frequentemente resultados ambíguos, principalmente quando se trata de hierarquias superiores e de anjos cuja queda não foi acidental.
- Não haveria necessidade de aplicar a totalidade dos testes - concedeu imediatamente o Trono. - Escolheríamos apenas os que nos parecessem mais reveladores e mais seguros.
Piscou rapidamente as designações, com solicitude enorme, corrigindo por vezes a ordem das provas.
- Cinquenta e três exames! - disse o Domínio.- É um número quase infinito! Além de que é ímpar e a norma não permite.
O Trono considerou suavemente o que escrevera e instalou-se melhor. Depois olhou para Urjân e fechando uns olhos, apagou algumas designações.
- Dezassete, nunca! - disse o Domínio.
-Se não fosse demasiada imposição da minha parte, pedir-lhe-ia que escolhêssemos juntos as provas.
- Concedo! - respondeu o Domínio, esquecendo completamente que estava a falar com um espírito da primeira hierarquia, infinitamente seu superior. Diamantino, atrás do Trono, aconselhava Urjân na aceitação ou na recusa das propostas.
- O Inquérito de Determinação da Angelicidade? - perguntou o Trono.
- Sim, pode ficar - respondeu o Domínio, amuado.
- O teste O.R.S.?... A Prova dos Nove?... Os exames escolásticos?... A análise de Dionísio?... A dactiloscopia... o pneumograma... o halograma... a leitura de Tauler... e, naturalmente, uma avaliação curricular...
- Chegam dez provas - cortou o Domínio.
- Seja o que Deus quiser! - concluiu o Trono e preparou-se para sair. O Domínio reteve-o.
- E que quer Ele, ao certo? – Passou-lhe pela cabeça que o Trono, em virtude da proximidade, tivesse alguma informação pertinente. Mas a luz dos olhos do Trono brilhou, espalhando-se sobre Urjân como um véu. Ele pressentiu, um momento, a serenidade da ansiada contemplação, o esquecimento do poder activo, a dissolvência na luz. Depois olhou com nostalgia Diamantino prostrado e a orla do rasto do Trono que se afastava rodando, subindo em espiral.
- Lashtar que se prepare para os Testes -ordenou. - É preciso convocar Azrael e o anjo da acusação.
Diamantino levantara-se e tomava notas.
- Não te esqueças de pedir a presença da Corte. Nesta espécie de julgamentos, quanto mais público, melhor.
*
No centro do círculo infinito preside Azrael, o anjo da morte, ao julgamento de Lashtar. Os anjos, nos seus lugares hierárquicos, postados nos nove anéis concêntricos que ascendem em degraus e se esbatem em cima, na luz, no poder, assistem; imóveis, suspensos, seguem o ecoar da discussão que opõe Raziel a Lashtar:
- ... e insisto, Trono Lashtar, só os anjos que se precipitaram na revolta perderam a dádiva duma natureza puramente espiritual, e agora sofrem a corrupção de que padece a matéria. Só o corpo é mal, Lashtar, e o teu corpo é a prova irrefutável da tua malícia, o estigma da...
- Nihil est incorporabile nisi quod non est, só o que não é, não tem corpo, como disse alguém... – interrompeu displicentemente Lashtar. - Raziel, estou daqui a ver o teu corpo, as tuas asas azuis, a túnica cinza, como a água que escorre...Os arcanjos também são materiais, ainda que subtilmente; apenas Ele é puro espírito!
- Eu, corpo? - retorquiu, de aura lívida, Raziel. - Nós, corpo? Blasfemas!
Percorre a assistência um murmúrio de contida indignação. Os Serafins flamejam das alturas.
-Tu blasfemas! -responde asperamente Lashtar.- Cito-te o heresiarca Crisóstomo: "o anjo não tem corpo, nem mesmo o demónio !" E Arque de Trifenia: "angelus subtilissimus solum spiritus", e Gregório Magno: "angelus namque solummodo spiritus!". Lembra-te, Raziel, ó anjo germânico, que afirmações destas foram consignadas no index universalis e censuradas desde que foram proferidas no tempo. Tu atraiçoas-te com estas frases! Repara - e Lashtar, subitamente suave, ergue o rosto - só Ele é... só Ele existe na beata auto-suficiência da Luz, eternamente... só Ele é o espírito... nós, apenas anjos, arrastamos nas galáxias, no indefinido aion, este nosso lamentável quase-corpo, carne sine carne, prisioneiros entre a divina natureza e a matéria, entre Ele a criação... – E, encarando Raziel que se impacientava, redobrou: - Porque a matéria real, sim, é estupenda: sólida, firme, à Sua semelhança.
- Ouvistes, hierarquias? Ouvistes, coortes? Offensa in excelsis! Lashtar afirma que os anjos bons são feitos da mesquinha matéria, como os nirinos, os bliontes, os próprios vis humanos, atrever-se-á acaso a afirmar-nos semelhantes aos homens que estão aos pés, no profundo da escada evolutiva?
Reina um silêncio interdito. Os Tronos remexem-se e entreolham-se, abanando tristemente cabeças.
- Ele criou-nos – continua Raziel - antes de toda a criação para que nos estabelecêssemos na Luz, per omnia! O que quer que façamos é virtuoso, pois verte da Sua bondade infinita e inefável, deslizando dos Altos Serafins aos Sábios Querubins...
Mas Lashtar interrompe, sonhador:
- Ele é o mais próximo e o mais distante. Chamo-Lhe docemente Tu quando Lhe falo, quando se acerca; mas a Sua voz, poderei tomá-la pela minha voz?
- Não dizes ser o Trono Lashtar? Porque falas em estar junto Dele? Só os Serafins têm esse privilégio, e alguns Querubins da Frente! Tu crês de grande engenho deitar no discurso o cheiro enjoativo dos dleões, que confunde o recto juízo e a sã deliberação. Pergunto-to agora sem rodeios, para que o digas perante o céu inteiro: quem és tu?
- Eu sou o Trono Lashtar.
- Como falas então em estar junto Dele?
- Eu escolhi estar mais perto e mais longe. - E acrescentou: - Sim, angeli libero arbítrio habent - sem cuidar demais a gramática.
-Fomos criados para O servirmos, para O sustentarmos, como pecaríamos de pé diante da Face?
- Porque ele nos manda ser livres e só ele nos pode condenar. Explica-me, se és capaz, a sobrepovoação do planeta Tréfuli onde estão, enregelados, centenares de milenares de Joaquins?
Raziel sobressalta-se, grita, ataca:
- Ao que vêm agora os Joaquins? O planeta Tréfuli? Esse enregelamento?
- Informar-vos-ei , irmãos de todas as hierarquias, das minhas investigações.
Os Tronos soerguem-se e fixam Lashtar. Na sua imensa benignidade, querem reconhecê-lo como um deles. Mas a sua natureza é alheia à intriga, muitos deles desmaiam diante do esboço de qualquer conflito. Quando finalmente as hierarquias se recolhem em compacto silêncio, presas da anunciada palavra de Lashtar, ressoa inesperada a voz de Azrael que diz:
- Raziel prosseguirá o inquérito e a argumentatio. O Trono Lashtar ater-se às quaestiones in disputatione debet.
Alguns protestos das ordens inferiores. Raziel, inspirando, recomeça:
- De onde viemos? Quem somos? Onde estamos? Para onde vamos? Qual o nosso destino? Estas são as perguntas originárias que agora nos fazemos. Mas a sabedoria consiste não em perguntar ociosamente, mas em responder. O Trono Lashtar afirmou verbatim: somos quase-corpo, podemos pecar, a Voz faz-se ouvir na proximidade da nossa Voz. Blasfémias. Como acontece um Trono acercar-se da Face, desprezando as hierarquias? As ordens dos anjos merecem-nos o mesmo respeito que nos merece a Obra. E elas são eternas, cada uma comunicando perfeição à ordem imediatamente inferior, cada uma recebendo com temor e tremor a perfeição que emana da Face. Negá-lo é introduzir a semente do desperdício, o germe nocivo...
- O coração - interrompe Lashtar - está próximo da Voz. O anjo ascende, cai. A única hierarquia é a do mérito, da meritória acção, da boa intenção... Raziel, tu não O conheces e enuncias regulae, angelo canonico! Quando Ele criou a criação (numa imensa alegria) e doendo-lhe depois o desamparo das coisas, criou-nos também a nós como sombras para protegermos de si próprios os planetas. Assim to explico: cada um de nós recebeu Dele a Incumbência que é guardarmos a planta, esta, a alma, aquela; só a Incumbência é sagrada, nós somos mensageiros; trazemos a cada coisa o conhecimento do Seu plano, que nós desconhecemos.
Lashtar estava desencorajado. Os Tronos, de lágrimas nos olhos resignados, procuravam reunir coragem para intimamente decidirem.
- Dizes então – começou Raziel - que há um anjo para cada coisa criada? Que Ele nos criou depois da Obra? Que não há espécies definidas e que as atribuições das ordens são vagas já que os anjos ascendem, caem, conforme a sua vontade e - digamos assim - a sua liberdade?
Fez uma pausa oratória, olhou em redor e, apontando com expressão de evidência as hierarquias silenciosas, perguntou:
- E estes aqui, quem são? Acaso serão impostores, se dizes a verdade? Serão nurturinos vestidos de branco cujas asas inexplicavelmente cresceram? Quem são, responde?
-São meus irmãos, anjos da Face, guardas da Obra. E são impostores, sim, alguns, pois arregimentam coortes e impunemente destroem o que só a Ele pertence.
Da altura dos Domínios sobe um rugido de indignação. As Virtudes e as Potestades murmuram, há por todo o lado um bater seco de asas, um entrechocar de vozes. Raziel percorre com os olhos a assistência e fixa Lashtar, por largo tempo. Depois decide:
- Lashtar teceu ele próprio a sua desgraça.
*
- E então? - perguntou o Domínio-Mor. Acalmada a indignação contra Lashtar, que o fizera afastar-se precipitadamente do julgamento, esperava que Diamantino lhe comunicasse a sentença de Azrael.
- Os resultados dos testes são inconclusivos como justamente calculara Vossa Serenidade. No O.R.S., Lashtar alcançou a média, nos exames escolásticos um valor bastante alto, o que nada prova a seu favor; o halograma apareceu um pouco turvo, mas é compreensível, até desejável na ordem dos Tronos. Quanto ao currículo, não se pode garantir que seja genuíno dado que trata, na maior parte dos casos, de eventos remotos, muito anteriores ao Registo.
- E então? - insistiu o Domínio.
- A conclusão de Azrael foi clara: ambiguum est, disse ele.
- E a sentença?
- Exílio em Tréfuli para ambos.
- Ambos? - perguntou, assustado, o Domínio.
- Tanto Lashtar como Raziel defenderam, no dizer do anjo superior, teses heréticas. É como se Lashtar tivesse desvendado o diabo escondido em Raziel. Mas é preferível não entrarmos em detalhes.
- Sim, compreendo - atalhou o Domínio-Mor. - Azrael será sempre o melhor dos juízes. E Raziel foi demasiado acusativo.
- Terminou a cerimónia da Confirmação da Queda. Vão já a caminho de Tréfuli.
*
- Urjân! - clamou a Voz, branda.
O Domínio estremeceu inteiramente. Lívido, desorbitado, puxando para si Diamantino, perguntou num sopro, espiando o espaço ameaçador:
- Quem me chama?
O Secretário deixou-se escorregar, num desmaio. Urjân, passado o primeiro terror, engoliu em seco e encaminhou-se para a Voz.
Entrou subtil no domínio dos Tronos, deitados em funda concentração, rodas imóveis. Reflectiam com intensidade: um instante de negligência poria em causa a potência do Poder. Urjân arregaçou a túnica e saltitou com infinita precaução sobre eles. Ultrapassou depois as gigantescas iluminotecas dos Querubins ensimesmados na meditação e árdua análise da Obra, pairando num silêncio húmido. Gabriel, sentado num largo leito de prontões, entoava passagens do Triântico Gloricial perante uma corte de pequenos querubins telepatas. Os seus cabelos loiros refulgiam, esparsos sobre a túnica. Seguiu com os olhos Urjân quando ele passou, agitado.
- A Sua cólera far-se-á ouvir até às extremidades do mundo - continuou Gabriel - e os chamados à justiça encaminhar-se-ão para Ele arrastando o coração pesado.
Afastava-se Urjân da molhada sabedoria dos Querubins e chegava ao círculo do fogo que enlaça o domínio dos Serafins, os amigos de Deus. Eles espalham-se em grupos, à volta de fogueiras, cantam juntos em surdina. Nada lhes perturba a esplêndida generosidade e convidam Urjân a sentar-se no meio deles:
- Fui chamado - diz Urjân, escusando-se, rodeando o grupo.
- Que bom! Que sorte! - entoam em coro alguns Serafins.- Quem nos dera! Ser chamado! Que felicidade!
Urjân não respondeu. Atravessou os grupos que ele julgou, intimamente, convidarem-no a furtar-se à urgência do mandamento da Voz. Esmorecia já o fogo e Urjân embrenhava-se no cinzento lusco-fusco. Era um nevoeiro pardo, seco; um fumo espesso que se estendia igualmente em todas as direcções.
Urjân considerou o destino de Deus que era criar e julgar-Se, e o caminho pesou-lhe, lamentando a ausência dos limites da Voz, a armadilha que a Si Mesma preparara – Ser Tudo, até a sua Negação - e murmurando sempre “Quem guardará os guardas?” subia devagar para o centro; começava a sentir agora distintamente a Presença; espalhava-se à sua volta uma rede fina que aligeirava o esforço; Ele era grande, apiedava-se sobretudo dos criminosos. Urjân percebeu, enfim, por entre as névoas, a claridade das conclusões muito adiadas:
- Omnipotência! - disse, revelado. E repetiu: - Omnipotência!
Chegava ao local obscuro, ao seio de Deus. Entreviu no negrume um vulto, caminhando devagar. Urjân precipitou-se ao chão, prostrou-se e esperou. Adivinhava os Seus passos. Depois sentiu-O parar, e hesitava entre erguer os olhos ou permanecer de bruços, quando O ouviu chamá-lo pelo nome. Assim de perto, Urjân reconheceu-Lhe a voz. Suspirou pelo remoto país dos Domínios, onde não voltaria mais. E quando, ainda trémulo, levantou a cabeça, enfrentou o olhar irónico de Lashtar.
Urjân observava o desfile com olho crítico.
- Diz-se-Lhe ?- insistiu o secretário.
O Domínio impacientava-se sempre que se Lhe referiam em vão.
- E íamos incomodá-Lo com trivialidades ?! Os anjos que guardem esse tipo um pouco mais de perto. A que Ordem pertence ele?
- Faz-se passar por um Trono.
- Mas que barulheira infernal, Diamantino! Sempre estes cânticos! Não se pode moderar o som?
- Julgo que estarão a cantar dentro das normas, mas se Vossa Serenidade desejar...
- Que espécie de perguntas anda ele a fazer?
Diamantino fechou-se num silêncio embaraçado. Um anjo isolado passava, correndo, atrasado para a contemplação.
- Investiga, não sabemos ainda bem com que intenção; faz perguntas sobre os diabos, sobre as Guerras Remotas que nos confrontaram...
- Acho-os um bocado caídos hoje - interrompeu o Domínio, apontando o queixo etéreo ao contingente de anjos. - Como se chama ele afinal?
- Diz chamar-se Lashtar e encontrar-se em missão confidencial da parte das altas potestades. Mas nós não possuímos Registo desta missão.
- É sempre a mesma desordem... - resmungou o Domínio. - Gostava de saber para que nos servirão as máquinas de registar, se não registam...
- Vossa Serenidade estará com certeza inteirada da infinita complexidade da nossa tarefa. Nem possuímos registo de nenhum Trono chamado Lashtar.
- Caberia perguntar a Vossa Secretariedade - ironizou o Domínio - de que possui afinal Vossa Secretariedade registo...
- Vossa Serenidade conhece as dificuldades de organização do Registo, considerando que o número de Tronos é infinito, que as missões confidenciais não são, na sua maioria, registáveis e que há ordens que emanam do Alto.
- Como assim, "do Alto"? - rosnou entre dentes o Domínio. - Quem mais dá ordens além de mim? Quer-me parecer que Vossa Secretariedade faz espírito!
- Para todos os efeitos, suspeitamos violentamente de Lashtar, por isso mandámos...
- Mandámos?
- Mandou-se que Lashtar fosse vigiado de perto e que se tomasse nota de todos os seus passos.
Diamantino calou-se, esperando as perguntas do Domínio. Mas ele continuava a observar o desfile, e o secretário, seguindo-lhe o olhar, pensou:
- Oxalá não os conte!
- Estão cá todos? - perguntou logo o Domínio, e acrescentou. - A telepatia hierárquica tem as suas desvantagens.
- Justamente, não, Serenidade. Faltam alguns.
- Alguns? E onde andam esses alguns?
- Uns em Oxu, outros em Mitilene de Zoa. A reparar.
- Oxu já precisa de reparação? Como o tempo passa. Claro que a coisa não tem o mesmo brilho quando não estão todos. O segredo dos desfiles é o volume, é a quantidade.
- Perdoe-me Vossa Serenidade se insistir... -insistiu o secretário - mas cedo ou tarde seremos forçados a tomar providências.
- A corte celestial está a transformar-se numa corte policial - disse, muito depressa, e desejou não o ter dito. As frases pioravam sem remissão. E pensar que todos os "slogans" de todos os dormitórios e refeitórios dos Serafins aos anjos eram de sua autoria. Que o céu pululava de lemas seus, que os seus ditos eram gravados e ecoavam nas paradas!
O Domínio quis apagar a impressão da frase. Virou-se um pouco de lado e, fixando a orelha do secretário, perguntou:
-Então e aquele problema de águas em Tripti?
-Está sanado - respondeu o secretário e pensou. - Que desfile cansativo...
- Sempre foram cansativos - confirmou o Domínio-Mor.
E nesse instante desejou não ser telepata, não ter que governar coortes, ordens angélicas, intrigas celestiais, para não falar na multitude de uma criação dispersa e mal acabada; desejou sentar-se algures em Mitilene de Zoa, à porta de um consultório filosófico, e repousar.
*
-É um demónio! - anunciou Diamantino, acenando suavemente os relatórios. Empurrou-os para diante do Domínio e esperou.
-Um diabo? - espantou-se Urjân. - Mas não tínhamos acabado com eles?
-Vossa Serenidade tem uma forma muito directa de colocar as questões. Na minha opinião, ainda restam demais.
- Quem comandou as coortes celestiais nas últimas batalhas e chacinas?
O secretário percorreu devagar as folhas do dossier, depois estendeu um dedo à procura do nome:
- O anjo de guarda a... Tíbur.
- Concentra-te e chama-o lá - ordenou o Domínio-Mor. E depressa, que está aqui uma grande corrente de ar.
O azul, na verdade, esfriava. Anjos voavam dois a dois, cantando; as altas hierarquias meditavam, banhadas na luz, e Ele dormia, vigiado pelos Serafins, os Querubins e os Tronos atentos aos Seus sonhos.
- Três nonos do céu na doce vida, quando é preciso protegê-los e sustentá-los, cá estamos nós.
O anjo de Tíbur materializava-se. Precisavam-se os contornos do seu espírito; por último apareceu a espada, que era de fogo.
- Chega-te cá - sorriu-lhe o Domínio. - Já agora aqueço-me no gládio.
Tíbur arrastava-se a custo. Era um anjo muito velho, quase antigo. Diamantino fez sinal a dois anjos simples para que o amparassem e lhe segurassem nas asas, já que insistia em fazer a complicada saudação do anjo legionário, erguendo-as acima da cabeça. Mas emaranhavam-se-lhe as barbas nas asas e parou, fixando o Domínio, intimidado:
- Tíbur - disse Urjân - temos aqui uma situação delicada. Apareceu aí uma criatura que supomos ser um diabo...
- É o que indicam os relatórios de vigilância - afirmou o Secretário nas costas de Tíbur, que começava lentamente a voltar-se para ele.
- Ora os nossos relatórios falavam de Solução Final, de Grande Extermínio - a expressão até é minha - e concluiu-se que o Inimigo fora totalmente aniquilado.
Tíbur encarava o secretário e começava a rodar na direcção do Domínio quando Diamantino disse:
- Solução Final por força da feliz expressão de Vossa Serenidade. O número de diabos é, por natureza, infinito...
Tíbur estava agora de frente para o Domínio e virava-se para o Secretário quando o Domínio replicou com veemência:
- Qual infinito! Eles eram 86 456, contei-os eu e Ele também os trouxe contados até Lhe dar o sono!
Tíbur, cansado de rodar em vão, deixou-se ficar de frente para o Secretário, esperando a contradição dele, que não veio. Depois, balbuciou:
- Fi...ni...to!
Os anjos que giravam cabeças e asas acompanhando as rígidas voltas de Tíbur não puderam retê-lo por mais tempo. Tíbur avançou para o Domínio-Mor, ergueu o braço e caiu aos três pés da mesa.
- Que foi? - perguntou o Domínio, interdito.
- São os nervos a dar de si - desculpou-o o Secretário. E, para os anjos. - Ajudem-no a recompôr-se.
Tíbur recuperava alguns sentidos e cobria o rosto envergonhado com a asa. Mais calmo, preparou-se para falar, fixando um ponto a meio caminho entre Urjân e o Secretário. Arfava. O clima de Tíbur acabara o que o desespero do exílio tinha começado.
- Avançar... disse eu... setecentos demónios...setecentos mil demónios vezes sete...centos...
Diamantino encorajava-o, sorrindo, a falar calmamente.
- Eles... mortos... mortos... Santo Deus!
Urjân e Diamantino entreolharam-se, apavorados. Iria, enfim, acordar à invocação de um velho anjo das batalhas? Deixaram passar o tempo, nada aconteceu. Respiraram. Tíbur adormecia de pasmo.
- Os relatórios das últimas batalhas são algo confusos; Vossa Serenidade sabe que, na altura, os serviços estavam desorganizados, e não podemos considerar Tíbur responsável...embora tenha sido formalmente responsabilizado pelos massacres, pelo fracasso dos massacres e pela divulgação hierárquica dos massacres dentro de algumas ordens inferiores; foi ainda responsabilizado pelos rumores que corriam sobre os massacres, pelo facto de esses rumores serem considerados verdadeiros e por ter perturbado com toda a ondulação causada nas esferas a contemplação das Primeiras Hierarquias.
- Lúcifer! - clamou o anjo no seu sono, brandindo a garra. - Infinitos!
O Domínio abanou de novo a cabeça à contingência dos saberes. Determinara a Solução Final, ela estava consignada em relatório selado e aprovado, como se atrevia o presente episódio a desmentir o que ficara manifestamente cumprido e resolvido? A Criação e a Destruição faziam-se de uma vez para sempre, não apareciam e desapareciam como um qualquer passe de magia, um truque de feira!
- A ser demónio, supondo que o é, quem é ele? – perguntou.
- Supomos que Astaroth, embora bem disfarçado. Pelas nossas contas deve ser um dos últimos nobres infernais ainda em actividade. Insto Vossa Serenidade a que o mandemos buscar para ser submetido aos Testes.
- Astaroth, um que foi príncipe dos Tronos? - perguntou o Domínio. E reflectiu: -Degradou-se em diabo da preguiça, não é verdade? Ensinava matemáticas...Nunca nos deu que fazer até agora.
Astaroth, enquanto pertenceu à ordem dos Tronos, na Primeira Hierarquia, não passaria facilmente despercebido. Sendo os Tronos as próprias rodas da Carroça Celestial, foi Astaroth enquanto Trono uma roda imensa coberta de olhos e emanando a luz limpa do Espírito ; é o Círculo dos Tronos que marca a fronteira a partir da qual a processão divina se conspurca de umas tintas de matéria. São, por isso, os Tronos, os últimos antes da transição, debruçados ao varandim do espírito de onde avistam e sentem já, quem sabe, as emanações mais vibrantes da matéria, sentindo talvez a atracção maior pelo que lhes é oposto. Para combater estas atracções, principais causadoras das Guerras Remotas, havia a Ordem dos Domínios. Se Lashtar era afinal o Trono Astaroth, decaído em duque dos infernos, e regressado à Corte para perturbar as hierarquias com perguntas sobre águas passadas, sobre massacres abafados para não incomodar o sono de Deus, então havia que agir.
- Desleixámo-nos, Diamantino – gemeu o Domínio.
O secretário baixou a cabeça. Era um serviço infinito. Fosse ele omnipotente, omnisciente, nada mais fácil. Mas assim, com três nonos do céu em permanente contemplação, o universo a crescer, a má desordem tinha que rebentar em qualquer lado.
- O melhor é aplicar-lhe o Método – decidiu o Domínio.- Os Testes raramente são conclusivos.
*
Um murmúrio corre o céu, suspendem-se as infinitas execuções dos anjos. Há um príncipe dos Tronos que aflora a alteração da ordem nas hierarquias: deixou a contemplativa comunhão no espírito de Deus para entrar, furtivamente, no estrato dos Domínios. Urjân, o Domínio-Mor, e Diamantino, seu Secretário, sentem-lhe a presença, confusos e agitados.
- Há muita luz, Diamantino.
Diamantino remexe os relatórios em silêncio, sem tentar responder.
- Um Trono? – pergunta o Domínio, aterrado - E vem falar comigo?
Apercebe-se já a auréola do Trono, a luminosa curvatura coberta de olhos brilhantes de claridade e doçura. Urjân prostra-se, subjugado, e espera a voz do Trono. Quando o sentiu insuportavelmente próximo entoou, incontinente:
- Ó Anjo da Face! Olhos do Senhor! Espírito da Obediência e da Resignação, Trono de Deus, Sustentador das Supremas Hierarquias! Ó Espelho Vivo da Submissão e da Humildade Extrema!
- Reconheço que erro ao entrar no estrato dos Domínios. Rogo-lhe que me perdoe. Ouvimos infelizmente alguns murmúrios - disse o Trono - acerca de um príncipe da nossa Ordem; com autorização, reuniram-se os Tronos em conselho e ouviram-se uns aos outros sobre os murmúrios que os afectam. Decidiram enviar-me à ordem dos Domínios para apurar a verdade dos rumores.
- Suspeitamos, de facto, que tenha sido outrora um Trono... -respondeu o Domínio, mais à vontade, e emendou, depois de uma troca de olhares com o secretário: - O relatório de vigilância indica que será Astaroth, mas o próprio diz ser o Pseudo-Trono Lashtar, que investiga o desaparecimento de alguns demónios...
O Trono olhava com todos os olhos e sorria com todos os olhos, e compreendia.
- Desaparecimento de demónios? -espantou-se o Trono. - E quando se deu isso?
- Em tempos remotos... um ou dois... um caso sem qualquer importância... mas Lashtar insiste... pareceu-nos suspeito...
- Perdoe-me interrompê-lo, mas pareceu suspeito o desaparecimento ou a investigação?
-Ambos, realmente... o desaparecimento em tempos remotos, demasiado recuados no aion... mas Lashtar insiste... pareceu-nos suspeito...
Houve um silêncio. Diamantino adiantou-se um pouco, estendendo os relatórios:
- Vossa Grande Resignação dá-me licença que acrescente detalhes clarificadores? O que fez parecer suspeito a Sua Serenidade o Pseudo-Lashtar não foi a investigação de per se mas o modus operandi do suposto Trono sublime, que consideramos ser na verdade o Anti-Trono Astaroth, príncipe infernal, infiltrado na Corte com obscuros propósitos. Lashtar comporta-se com arrogância e, de forma tortuosa, busca, exige e rouba informação confidencial, intima e sabota o trabalho dos anjos da nossa Ordem. Como Vossa Resignação pode constatar, esta conduta não é própria de um Trono.
O Trono ouvia obedientemente Diamantino, que concluía:
- Assim provocou, o Insensato, alterações de consequências tão inevitáveis quanto imprevisíveis.
- Mandam-me os de minha Ordem saber o que tencionais fazer dele.
- Sua Serenidade mandou que fosse submetido ao Método.
- Mas dizia-se que lhe aplicariam os Testes... - queixou-se o Trono.
Diamantino e o Domínio entreolharam-se. A contemplação absoluta do espírito, que era tarefa e natureza dos Tronos, parecia ter-se interrompido mais que o devido, com toda a agitação, o diz-se diz-se, a intriga originada por Lashtar.
- Considerámos afinal o Método Torquemada - interrompeu o Domínio. - O processo mais simples e eficaz de confirmação da culpabilidade.
- Santo Deus! - exclamou o Trono, resignadamente. Urjân e Diamantino encolheram-se num reflexo, esperando a resposta à invocação. Mas ainda desta vez Ele não se manifestou.
- Lamento ter de concluir que o pobre Lashtar desobedeceu às hierarquias inferiores. Temo sentir a obrigação de lhe pedir um favor, Urjân.
E, rodando sobre si próprio, num belo efeito de luzes, piscou com os olhos três palavras argentinas: CLEMÊNCIA, PACIÊNCIA e uma terceira que Urjân não perceberam bem.
- Quero com isto dizer que os Tronos rogam a Vossa Serenidade que submeta Lashtar aos Testes e abandone o Método.
- Já o esperava - disse Urjân. - Não sei se é possível, o caso está em marcha e não depende só de mim. Os Testes têm frequentemente resultados ambíguos, principalmente quando se trata de hierarquias superiores e de anjos cuja queda não foi acidental.
- Não haveria necessidade de aplicar a totalidade dos testes - concedeu imediatamente o Trono. - Escolheríamos apenas os que nos parecessem mais reveladores e mais seguros.
Piscou rapidamente as designações, com solicitude enorme, corrigindo por vezes a ordem das provas.
- Cinquenta e três exames! - disse o Domínio.- É um número quase infinito! Além de que é ímpar e a norma não permite.
O Trono considerou suavemente o que escrevera e instalou-se melhor. Depois olhou para Urjân e fechando uns olhos, apagou algumas designações.
- Dezassete, nunca! - disse o Domínio.
-Se não fosse demasiada imposição da minha parte, pedir-lhe-ia que escolhêssemos juntos as provas.
- Concedo! - respondeu o Domínio, esquecendo completamente que estava a falar com um espírito da primeira hierarquia, infinitamente seu superior. Diamantino, atrás do Trono, aconselhava Urjân na aceitação ou na recusa das propostas.
- O Inquérito de Determinação da Angelicidade? - perguntou o Trono.
- Sim, pode ficar - respondeu o Domínio, amuado.
- O teste O.R.S.?... A Prova dos Nove?... Os exames escolásticos?... A análise de Dionísio?... A dactiloscopia... o pneumograma... o halograma... a leitura de Tauler... e, naturalmente, uma avaliação curricular...
- Chegam dez provas - cortou o Domínio.
- Seja o que Deus quiser! - concluiu o Trono e preparou-se para sair. O Domínio reteve-o.
- E que quer Ele, ao certo? – Passou-lhe pela cabeça que o Trono, em virtude da proximidade, tivesse alguma informação pertinente. Mas a luz dos olhos do Trono brilhou, espalhando-se sobre Urjân como um véu. Ele pressentiu, um momento, a serenidade da ansiada contemplação, o esquecimento do poder activo, a dissolvência na luz. Depois olhou com nostalgia Diamantino prostrado e a orla do rasto do Trono que se afastava rodando, subindo em espiral.
- Lashtar que se prepare para os Testes -ordenou. - É preciso convocar Azrael e o anjo da acusação.
Diamantino levantara-se e tomava notas.
- Não te esqueças de pedir a presença da Corte. Nesta espécie de julgamentos, quanto mais público, melhor.
*
No centro do círculo infinito preside Azrael, o anjo da morte, ao julgamento de Lashtar. Os anjos, nos seus lugares hierárquicos, postados nos nove anéis concêntricos que ascendem em degraus e se esbatem em cima, na luz, no poder, assistem; imóveis, suspensos, seguem o ecoar da discussão que opõe Raziel a Lashtar:
- ... e insisto, Trono Lashtar, só os anjos que se precipitaram na revolta perderam a dádiva duma natureza puramente espiritual, e agora sofrem a corrupção de que padece a matéria. Só o corpo é mal, Lashtar, e o teu corpo é a prova irrefutável da tua malícia, o estigma da...
- Nihil est incorporabile nisi quod non est, só o que não é, não tem corpo, como disse alguém... – interrompeu displicentemente Lashtar. - Raziel, estou daqui a ver o teu corpo, as tuas asas azuis, a túnica cinza, como a água que escorre...Os arcanjos também são materiais, ainda que subtilmente; apenas Ele é puro espírito!
- Eu, corpo? - retorquiu, de aura lívida, Raziel. - Nós, corpo? Blasfemas!
Percorre a assistência um murmúrio de contida indignação. Os Serafins flamejam das alturas.
-Tu blasfemas! -responde asperamente Lashtar.- Cito-te o heresiarca Crisóstomo: "o anjo não tem corpo, nem mesmo o demónio !" E Arque de Trifenia: "angelus subtilissimus solum spiritus", e Gregório Magno: "angelus namque solummodo spiritus!". Lembra-te, Raziel, ó anjo germânico, que afirmações destas foram consignadas no index universalis e censuradas desde que foram proferidas no tempo. Tu atraiçoas-te com estas frases! Repara - e Lashtar, subitamente suave, ergue o rosto - só Ele é... só Ele existe na beata auto-suficiência da Luz, eternamente... só Ele é o espírito... nós, apenas anjos, arrastamos nas galáxias, no indefinido aion, este nosso lamentável quase-corpo, carne sine carne, prisioneiros entre a divina natureza e a matéria, entre Ele a criação... – E, encarando Raziel que se impacientava, redobrou: - Porque a matéria real, sim, é estupenda: sólida, firme, à Sua semelhança.
- Ouvistes, hierarquias? Ouvistes, coortes? Offensa in excelsis! Lashtar afirma que os anjos bons são feitos da mesquinha matéria, como os nirinos, os bliontes, os próprios vis humanos, atrever-se-á acaso a afirmar-nos semelhantes aos homens que estão aos pés, no profundo da escada evolutiva?
Reina um silêncio interdito. Os Tronos remexem-se e entreolham-se, abanando tristemente cabeças.
- Ele criou-nos – continua Raziel - antes de toda a criação para que nos estabelecêssemos na Luz, per omnia! O que quer que façamos é virtuoso, pois verte da Sua bondade infinita e inefável, deslizando dos Altos Serafins aos Sábios Querubins...
Mas Lashtar interrompe, sonhador:
- Ele é o mais próximo e o mais distante. Chamo-Lhe docemente Tu quando Lhe falo, quando se acerca; mas a Sua voz, poderei tomá-la pela minha voz?
- Não dizes ser o Trono Lashtar? Porque falas em estar junto Dele? Só os Serafins têm esse privilégio, e alguns Querubins da Frente! Tu crês de grande engenho deitar no discurso o cheiro enjoativo dos dleões, que confunde o recto juízo e a sã deliberação. Pergunto-to agora sem rodeios, para que o digas perante o céu inteiro: quem és tu?
- Eu sou o Trono Lashtar.
- Como falas então em estar junto Dele?
- Eu escolhi estar mais perto e mais longe. - E acrescentou: - Sim, angeli libero arbítrio habent - sem cuidar demais a gramática.
-Fomos criados para O servirmos, para O sustentarmos, como pecaríamos de pé diante da Face?
- Porque ele nos manda ser livres e só ele nos pode condenar. Explica-me, se és capaz, a sobrepovoação do planeta Tréfuli onde estão, enregelados, centenares de milenares de Joaquins?
Raziel sobressalta-se, grita, ataca:
- Ao que vêm agora os Joaquins? O planeta Tréfuli? Esse enregelamento?
- Informar-vos-ei , irmãos de todas as hierarquias, das minhas investigações.
Os Tronos soerguem-se e fixam Lashtar. Na sua imensa benignidade, querem reconhecê-lo como um deles. Mas a sua natureza é alheia à intriga, muitos deles desmaiam diante do esboço de qualquer conflito. Quando finalmente as hierarquias se recolhem em compacto silêncio, presas da anunciada palavra de Lashtar, ressoa inesperada a voz de Azrael que diz:
- Raziel prosseguirá o inquérito e a argumentatio. O Trono Lashtar ater-se às quaestiones in disputatione debet.
Alguns protestos das ordens inferiores. Raziel, inspirando, recomeça:
- De onde viemos? Quem somos? Onde estamos? Para onde vamos? Qual o nosso destino? Estas são as perguntas originárias que agora nos fazemos. Mas a sabedoria consiste não em perguntar ociosamente, mas em responder. O Trono Lashtar afirmou verbatim: somos quase-corpo, podemos pecar, a Voz faz-se ouvir na proximidade da nossa Voz. Blasfémias. Como acontece um Trono acercar-se da Face, desprezando as hierarquias? As ordens dos anjos merecem-nos o mesmo respeito que nos merece a Obra. E elas são eternas, cada uma comunicando perfeição à ordem imediatamente inferior, cada uma recebendo com temor e tremor a perfeição que emana da Face. Negá-lo é introduzir a semente do desperdício, o germe nocivo...
- O coração - interrompe Lashtar - está próximo da Voz. O anjo ascende, cai. A única hierarquia é a do mérito, da meritória acção, da boa intenção... Raziel, tu não O conheces e enuncias regulae, angelo canonico! Quando Ele criou a criação (numa imensa alegria) e doendo-lhe depois o desamparo das coisas, criou-nos também a nós como sombras para protegermos de si próprios os planetas. Assim to explico: cada um de nós recebeu Dele a Incumbência que é guardarmos a planta, esta, a alma, aquela; só a Incumbência é sagrada, nós somos mensageiros; trazemos a cada coisa o conhecimento do Seu plano, que nós desconhecemos.
Lashtar estava desencorajado. Os Tronos, de lágrimas nos olhos resignados, procuravam reunir coragem para intimamente decidirem.
- Dizes então – começou Raziel - que há um anjo para cada coisa criada? Que Ele nos criou depois da Obra? Que não há espécies definidas e que as atribuições das ordens são vagas já que os anjos ascendem, caem, conforme a sua vontade e - digamos assim - a sua liberdade?
Fez uma pausa oratória, olhou em redor e, apontando com expressão de evidência as hierarquias silenciosas, perguntou:
- E estes aqui, quem são? Acaso serão impostores, se dizes a verdade? Serão nurturinos vestidos de branco cujas asas inexplicavelmente cresceram? Quem são, responde?
-São meus irmãos, anjos da Face, guardas da Obra. E são impostores, sim, alguns, pois arregimentam coortes e impunemente destroem o que só a Ele pertence.
Da altura dos Domínios sobe um rugido de indignação. As Virtudes e as Potestades murmuram, há por todo o lado um bater seco de asas, um entrechocar de vozes. Raziel percorre com os olhos a assistência e fixa Lashtar, por largo tempo. Depois decide:
- Lashtar teceu ele próprio a sua desgraça.
*
- E então? - perguntou o Domínio-Mor. Acalmada a indignação contra Lashtar, que o fizera afastar-se precipitadamente do julgamento, esperava que Diamantino lhe comunicasse a sentença de Azrael.
- Os resultados dos testes são inconclusivos como justamente calculara Vossa Serenidade. No O.R.S., Lashtar alcançou a média, nos exames escolásticos um valor bastante alto, o que nada prova a seu favor; o halograma apareceu um pouco turvo, mas é compreensível, até desejável na ordem dos Tronos. Quanto ao currículo, não se pode garantir que seja genuíno dado que trata, na maior parte dos casos, de eventos remotos, muito anteriores ao Registo.
- E então? - insistiu o Domínio.
- A conclusão de Azrael foi clara: ambiguum est, disse ele.
- E a sentença?
- Exílio em Tréfuli para ambos.
- Ambos? - perguntou, assustado, o Domínio.
- Tanto Lashtar como Raziel defenderam, no dizer do anjo superior, teses heréticas. É como se Lashtar tivesse desvendado o diabo escondido em Raziel. Mas é preferível não entrarmos em detalhes.
- Sim, compreendo - atalhou o Domínio-Mor. - Azrael será sempre o melhor dos juízes. E Raziel foi demasiado acusativo.
- Terminou a cerimónia da Confirmação da Queda. Vão já a caminho de Tréfuli.
*
- Urjân! - clamou a Voz, branda.
O Domínio estremeceu inteiramente. Lívido, desorbitado, puxando para si Diamantino, perguntou num sopro, espiando o espaço ameaçador:
- Quem me chama?
O Secretário deixou-se escorregar, num desmaio. Urjân, passado o primeiro terror, engoliu em seco e encaminhou-se para a Voz.
Entrou subtil no domínio dos Tronos, deitados em funda concentração, rodas imóveis. Reflectiam com intensidade: um instante de negligência poria em causa a potência do Poder. Urjân arregaçou a túnica e saltitou com infinita precaução sobre eles. Ultrapassou depois as gigantescas iluminotecas dos Querubins ensimesmados na meditação e árdua análise da Obra, pairando num silêncio húmido. Gabriel, sentado num largo leito de prontões, entoava passagens do Triântico Gloricial perante uma corte de pequenos querubins telepatas. Os seus cabelos loiros refulgiam, esparsos sobre a túnica. Seguiu com os olhos Urjân quando ele passou, agitado.
- A Sua cólera far-se-á ouvir até às extremidades do mundo - continuou Gabriel - e os chamados à justiça encaminhar-se-ão para Ele arrastando o coração pesado.
Afastava-se Urjân da molhada sabedoria dos Querubins e chegava ao círculo do fogo que enlaça o domínio dos Serafins, os amigos de Deus. Eles espalham-se em grupos, à volta de fogueiras, cantam juntos em surdina. Nada lhes perturba a esplêndida generosidade e convidam Urjân a sentar-se no meio deles:
- Fui chamado - diz Urjân, escusando-se, rodeando o grupo.
- Que bom! Que sorte! - entoam em coro alguns Serafins.- Quem nos dera! Ser chamado! Que felicidade!
Urjân não respondeu. Atravessou os grupos que ele julgou, intimamente, convidarem-no a furtar-se à urgência do mandamento da Voz. Esmorecia já o fogo e Urjân embrenhava-se no cinzento lusco-fusco. Era um nevoeiro pardo, seco; um fumo espesso que se estendia igualmente em todas as direcções.
Urjân considerou o destino de Deus que era criar e julgar-Se, e o caminho pesou-lhe, lamentando a ausência dos limites da Voz, a armadilha que a Si Mesma preparara – Ser Tudo, até a sua Negação - e murmurando sempre “Quem guardará os guardas?” subia devagar para o centro; começava a sentir agora distintamente a Presença; espalhava-se à sua volta uma rede fina que aligeirava o esforço; Ele era grande, apiedava-se sobretudo dos criminosos. Urjân percebeu, enfim, por entre as névoas, a claridade das conclusões muito adiadas:
- Omnipotência! - disse, revelado. E repetiu: - Omnipotência!
Chegava ao local obscuro, ao seio de Deus. Entreviu no negrume um vulto, caminhando devagar. Urjân precipitou-se ao chão, prostrou-se e esperou. Adivinhava os Seus passos. Depois sentiu-O parar, e hesitava entre erguer os olhos ou permanecer de bruços, quando O ouviu chamá-lo pelo nome. Assim de perto, Urjân reconheceu-Lhe a voz. Suspirou pelo remoto país dos Domínios, onde não voltaria mais. E quando, ainda trémulo, levantou a cabeça, enfrentou o olhar irónico de Lashtar.