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Olhos Verdes, romance, Dom Quixote, 1994,
Prémio Máxima de Literatura
Olhos Verdes trata da aparência e do acaso. Os seus personagens fazem parte do mundo das aparências: trabalham em profissões ou têm inclinações que implicam uma evasão da realidade: Pedro Levi é modelo de roupa interior; Eva Simeão é viciada em TV; o seu ex-marido, Paulo Mateus, deslumbrou-se com a América, que é "outro mundo"; João Baptista Daniel, perseguido por Eva mas não se interessando por esta, é director de marquetingue; Beatriz, sua mulher, é revisora gráfica ("Passa a melhor parte do seu dia a tornar mais pitoresca a realidade"); as irmãs Fonseca, Maria do Céu e Maria das Dores, oscilam entre o esteticismo e o esoterismo; Ísis, amiga de Eva, dedica-se ao disaine; Lourenço é fotógrafo; Anadir é a rainha dos jingles publicitários... Com todos eles, Luísa Costa Gomes pinta um nervoso retrato dos seres da sociedade contemporânea, que se entrecruzam casualmente e se evadem da realidade. Um longo capítulo dedicado a George Berkeley, o filósofo britânico que tentou demonstrar que a realidade material só existe na percepção que temos dela, tenta enquadrar a narrativa numa moldura teórica. Luísa Costa Gomes criou um romance dinâmico, interessante e cheio de humor, que se reflete em muitas das suas linhas: "Tinha saudades dele a partir do metro e quarenta de distância"... "As pessoas são capazes de suportar tudo, desde que o possam suportar confortavelmente sentadas"... "O Bem vale mais que o Mal porque há de menos. É a lei da oferta e da procura."
In Coleção Mil Folhas, Público
leia o Capítulo III
Penetremos então, pois que a isso algo nos compele, no santuário dos íntimos pensamentos de Pedro Levi. O que salta logo à vista no ol de entrada é a convicção de que não lhe resta muito tempo de vida; como e onde é que ele se tornou proprietário desta convicção ,nem vale a pena começar a investigar; vê-se, de qualquer modo, que é uma convicção nova, pelo aspecto exterior, pelo ar de exibição que ostenta, e não muito profunda; mas sempre presente, e de certo a primeira entre pares. Diz a psicologia que é com as ideias profundas que se deve ter mais cuidado, porque vêm lá de baixo carregadas de explosivos sentidos e de ressentimentos, mas neste caso não se aplica tal verdade universal. Quanto a Pedro Levi, - e ele é que sabe - as ideias mais perigosas de sua mente são as que se encontram mesmo ali à mão de semear. A arquitectura mental do modelo tem uma certa analogia com o seu corpo, e isto também vem escrito nos livros que deve ser mesmo assim: a poeira do medo recobre uma organização sem defeitos, baseada no princípio das consultas e no gordo ficheiro que constitui a sua história clínica.
Tencionava sair uma destas manhãs e viu-se fechado por dentro no quarto de cama. Era o sentido protector de Beatriz que se fazia outra vez ouvir. Foi quando telefonou a desmarcar com Maria das Dores e a preocupá-la naquele modo que já descrevemos. Depois queixou-se novamente a Abadir, que tinha muito trabalho de estúdio pela frente e se limitou a dizer:
-Isso não pode continuar, qualquer dia nem sei.
Mas Beatriz tinha um plano, não o fazia à toa. Nessa noite chegou exausta, atirou-se para cima da cama onde Pedro Levi acabara por se acomodar, e declarou:
- Para mim só tem um defeito, é que as traseiras dão para a linha do comboio. De resto, o T1 é espaçoso, luminoso, gracioso e podem-se fazer maravilhas quanto ao espaço. Os acabamentos são um primor e a sala tem uma parede curva muito original. É uma curva discreta, mas mesmo assim. A caixilharia é que é de alumínio, e aí, nada a fazer. Agora falo-te da situação, que é centralíssima, com todos os transportes a passar perto, incluindo o comboio, a camioneta e mesmo uma praça de táxis com cinco efectivos que dão e sobram para as necessidades.
Pesando de um lado os prós e do outro os contras, Beatriz achava o balanço bastante equilibrado. Ainda não falara em dinheiro, que não era um problema para Pedro Levi. Ficou assente que veriam o apartamento logo que fosse possível, no dia seguinte, na semana seguinte, e Pedro Levi abandonou-se a um sentimento de libertação. Quis ir outra vez nadar em piscina pública.
Beatriz trazia retoques para fazer em casa, mas acabou por adormecer e faltou às obrigações. Era preciso saber lidar com os gerentes das lojas, eles que nem pensassem que a mulher ali presente não passava de uma engrenagem sem vida própria, uma mera máquina de cumprir os prazos.
*
Enquanto fazia a provisäo de bolacha maria, acondicionando-a com mil carinhos no fundo da lata, ecoavam pelos salöes do entendimento de Eva Simeäo as últimas cúmplices palavras - e em forma de pergunta!- de Benjamim Floreiro.
- Vivemos o estádio preparatório de uma cultura muito violenta, resignemo-nos ou näo nos resignemos?
Näo era só a bicuda forma conjuntiva que a perturbava, e ela procurava justamente que mais era que a perturbava. Mas era impossível, enquanto ecoavam pelos salöes aquelas palavras rebarbativamente. Por fim, deixou-se muito quieta a olhar para a porta fórmica do armário da cozinha, submetida a uma iluminaçäo crua, -que por coincidência, ou talvez por contiguidade, também aparecia sob a forma de pergunta! - e era esta: porque será que mentia diante de Joäo- Baptista? Assim como assumia com Paulo Mateus a compostura felina e se enrodilhava pelos móveis fatalmente, com Joäo-Batista exagerava, mentia, inventava. Ela imaginava com certo primitivismo que era para se tornar mais interessante aos olhos dele. Concordo com o primitivismo de Eva. Porque lhe falara numa remodelaçäo da revista? Porque lhe dissera que conhecia de cor o mundo inteiro, que atravessara desertos a pé com o cantil a tiracolo? Porque o convencera de que se interessava pelo espaço, pelos carros japoneses, pela imagem corporativa? Mas se eram coisas que näo lhe diziam absolutamente nada! Porque se fazia sempre maior do que era, mais notória, mais valiosa?
- O único homem que até hoje me compreendeu,- confidenciou ela a Isis, atipicamente, um dia ainda antes do café da manhä - foi Helmut Wirtz. Tinha vinte anos na altura e näo tinha ocupaçäo alguma, excepto de vez em quando tocar guitarra. Foi a pessoa mais doce e mais sólida que já conheci. Era pesado como chumbo e, embora muito magro, dava ar de ser inamovível. Os dois sonhos que tive enquanto estivémos juntos, interpretou-mos ele sem uma única falha. Num deles eu era o cadáver da "Lição de Anatomia" de Rembrandt...
- Näo me vais agora contar um sonho que tiveste há quase dez anos, pois näo?- disse Isis a melhor amiga.
Mas era sem dúvida esquisita esta memória de Helmut Wirtz, ali em frente do armário, ao fim de dez anos do mais profundo esquecimento. Na altura näo estivera ao seu alcance apaixonar-se por ele, embora tivesse tentado repetidamente e falhado. E agora a nostalgia, digo-o com base na expressäo facial de Eva e na curvatura acaso excessiva dos ombros, dominava-a, ensombrecia-a. Foi quase sem querer que telefonou para Frankfurt, à procura de uma amiga desses tempos. Era uma pista para encontrar Helmut Wirtz. Mas daquele número ninguém respondeu, nem entäo, nem depois.
*
Era a primeira vez que Pedro Levi formulava aquele sentimento, preto no branco, em letra de forma. Há que tempos, perseguia-o o mal-estar, vivia dentro dele. Agora sabia exactamente o que era e como se dizia: era o sentimento de ter perdido alguma coisa.Não era uma ideia abstracta e não se figurava como uma simples emoção. Era o sentimento concrecto de ter realmente perdido qualquer coisa. Mas não se atreveu a participá-lo a Beatriz, nem a Agadir, nem ao médico turco. A intuição lhe disse que a recipiente desta informação havia de ser Maria das Dores da Fonseca. Telefonou de novo para marcar, mas ao pegar no auscultador lembrou-se que não podia sair de casa. Interrogou-se:
- Como poderei iludir a vigilância estrita de Beatriz, ter o tempo suficiente de fazer o telefonema?
Quando ela chegou a casa, convidou-a para jantar fora. Ela disse:
- Nem pensar. Sei lá quem é o cozinheiro.
Beatriz não tinha confiança nas pessoas. Nos restaurantes, perseguia-a a ideia de que a refeição fora confecionada com o maior dos desprezos. Sabia que o cozinheiro não tinha noções de higiene, isso estava implícito no próprio seu conceito de cozinheiro;que metia o dedo no nariz, coçava a cabeça e depois fazia a salada com as próprias mãos. A salada, essa, fora arrancada directamente do chão onde os cães também fariscavam. E urinavam nas alfaces. Não iria o chefe ao extremo anedótico de cuspir na água de cozer o arroz, a não ser que se encontrasse de disposição particularmente hostil, mas sabia-o pela certa escuro, com muito cabelo, bigodudo, e todo aquele pêlo podia bem acabar misturado à refeição. Isto tudo não disse ela a Pedro Levi, porque era demasiado íntimo para ser dito. Também não lhe disse que João-Baptista telefonara duas vezes e que, mais cedo ou mais tarde, teria de conversar com ele sobre a propriedade de Pedro Levi e de lhe explicar, o que seria praticamente impossível, aquela precisão de dois homens para os mesmos efeitos...
- Vamos amanhã ver a casa,- disse ela- e instalo-te. Depois ficas por tua conta.
Pedro Levi compreendeu num flash o ditado de que há males que vêm por bem. Aproveitando o duche de Beatriz, telefonou a Maria das Dores e marcou para a semana seguinte. Quarta-feira, que era o dia de sorte do ex-modelo.
Levantou-se mais uma vez e procurou. Chegou a meter a mão entre as almofadas do sofá da sala, desalinhando a harmonia da composição. Mas o que teria ele perdido? Era um sentimento do tipo roedor. Devagar, ia tomando conta da espaçosa e arejada vida psíquica do modelo.
*
Eva Simeão esconde as duas latas de bolachas debaixo da cama. Procura lembrar-se do sítio onde arrumou a lanterna. Benjamim fora claríssimo quanto à necessidade da lanterna. O rádio portátil estava na mesa de cabeceira , como sempre, só lhe faltavam as pilhas de reserva. O extintor e o estojo de primeiros socorros tinha-os inscrito na lista das próximas compras prioritárias. Com as duas garrafas de litro e meio de água e as quatro latas de conservas, ficou pejado o espaço por baixo da cama.
Eva passeou-se então pelo apartamento, considerando os objectos expostos do ponto de vista de uma emergência. Em caso de tremor de terra, qual deles cairia primeiro? Era uma pergunta de difícil resposta a partir de certa altura. Outra pergunta de difícil resposta era a seguinte:
- Qual é a parede mestra da casa em que vivo?
Dizia-se que a parede mestra era a última a cair.
Isis a melhor amiga ficaria talvez satisfeita ao saber que os dias de Eva não eram um mar de rosas. Deles passava muitas horas a conversar imaginariamente com João-Baptista e essas eram as horas boas. O director de marquetingue que habitava a imaginação de Eva era substancialmente e qualitativamente diverso do João-Baptista tal como o conhecemos. Desde logo, o tom do cabelo era mais claro, os olhos mais luminosos e sem pés-de-galinha, a pele mais branca e igual. Sabendo, por exemplo, que o cabelo é uma expressão privilegiada da personalidade e que os cabelos vigorosos e brilhantes, em plena forma, traduzem uma saúde boa e um grande dinamismo, conclui-se que o João-Baptista que Eva imaginava era mais vivo e mais dinâmico do que o , por assim dizer, real. Este vigor, no entanto, tinha excepções. O director de marquetingue em abstracto era fraco, romântico, dependente das palavras e das acções de Eva. Ela, nos diálogos brilhava pela inteligência e pela agudeza do espírito, a prontidão dos repartés, tudo o que torna enfim as mulheres fatais. João-Batista arrebanhava o troféu de melhor actor secundário.
No espírito de Eva todas as conversas imaginárias com João-Baptista tomam a forma da entrevista. Dentro desta forma, segue o modelo clássico. Sem antecedentes, nem consequentes. Não se imagina a entrar a porta da rua, subir no elevador, pedir à menina do PBX para falar com o director de marquetingue. As conversas começam de rompante, com João- -Baptista já fixo à cadeira e medusado. E depois também não se imagina a sair, percorrendo o caminho inverso:
- Não sei se já reparou como é insólito um homem a cantar. É pouco varonil. Está-se à espera que as mulheres cantem, é mesmo natural que cantem, mas os homens deviam ter coisas mais viris a fazer.
- Não lhe agrada, então, o canto lírico? Pavarotti?
- Aí está, é ainda mais patético, um homem tão enorme. E mostra-se os dentes, também, inclusive os que estão mais escondidos. Um homem de boca aberta é pouco varonil, não acha?
- Sim, com certeza. Tem razão.
-Não me importa que toquem piano, por exemplo. Não me incomoda. Os movimentos das mãos e o peito inchado também não ajudam. Há mesmo homens que cantam e, quando o fazem, juntam os calcanhares. Os pés ficam assentes, mas débeis, em ângulo quase recto. Lembro-me distintamente de já o ter visto.
- É absolutamente verdade.
- O cúmulo do patético, no entanto, é um homem e uma mulher a cantarem em simultâneo para dentro da boca um do outro. Bem sei, que nos filmes americanos, alguns dos perigos que a situação envolve são acautelados encostando a bochecha direita de um à bochecha esquerda de outro.
João-Baptista lembrava-se então dos seus estudos de proxémica e dizia:
- É difícil realmente encontrar um exemplo em que o espaço desocupado entre duas pessoas seja menor.
- O espaço aí está completamente ocupado, mesmo aquele que é necessário à projecção da fala. Mas o problema que me parece mais grave não é o canto, ou sequer a voz, é simplesmente para onde é que se olha quando se canta?
Mal pensou na pergunta, quis retirá-la e de facto retirou-a. Não quadrava bem ao resto do diálogo. Que coisa diria então?
É muito subjectivo. Para Eva, este é o exemplo de um diálogo sem apelo nem agravo. Cumpriu todos os objectivos, bateu todas as metas. Nada se lhe compara, João-Baptista rende-se, já vinha rendido. Para nós não passa de disparate, senão de rematada loucura.
Tocaram à porta. Eva levantou-se do chão ainda lesta, porque na sua imaginação ela era jovem e ágil e movia-se como uma atleta, mas com a elegância de uma bailarina. Andou com os braços ligeiramente afastados do corpo e as mãos em pose grácil até se esquecer do devaneio em que estivera.
O carteiro entregou-lhe um envelope almofadado que não trazia remetente. Eva abriu curiosa. Era uma cassete de vídeo igual às outras. Ia a caminho da televisão, disposta a desvendar o mistério, quando tocou o telefone. Benjamim cumprimentava-a, efusivo, familiar, simpático, nervoso, atabalhoado, alto,rápido, magro, jovial, todo bem posto, desesperado, aparentemente sob controlo, estridente.Benjamim tinha duas doenças: a primeira era a doença do humor; a segunda, uma coisa qualquer cerebral que o fazia não pronunciar a parte final de algumas palavras.
*
Se tivesse parado um instante para reflectir, talvez o Levi preferisse evitar a passagem, aliás prática, por aquele mesmo jardim perigoso onde, sentado e agarrado à mala castanha de couro, fora ameaçado por uma pequenita de sapatos de verniz e vestido rodado. À chegada a Lisboa, acabadinho de descer da camioneta , sobrevivendo fugazmente. Ele, no meio da sua vida e diríamos afogado nela, não sente quaisquer progressos numa direcção determinada. Desde esse momento até este momento, a expressão que melhor recobre o sentimento geral de Pedro Levi é talvez o de que a sua vida ainda não começou realmente ejá está bem prestes a acabar.Mas agora tem uma casa com uma parede curva e táxi à porta e pode encontrar-se quando quer e com quem quer, embora Anadir lhe tenha dado parte de sua paixão enfurecida pelo inenarrável Benjamim Floreiro. Não perdeu, no entanto, nenhuma oportunidade de se sentar ao colo do modelo e de lhe fazer as festas na cabeça. De vez em quando, arranja-lhe uma trança, põe-lhe um laço. Mas nunca é radical.
Pedro Levi, por seu lado, anda perplexo. Desconfia que o que vê e o que toca são coisas inteiramente diferentes. Por outras palavras, anda preocupado com a noção da distância, com aquela dimensão inventada que é a profundidade de campo. E como está mesmo diante de uma árvore, no tal jardim, nada o impede de tocar o tronco e confirmar: não tem nada, nada a ver com o que vê. Esperava uma consistência borrachosa, uma espuma, um acrílico, e é áspero afinal. Como ele diria no seu lógico jargão, se tivesse a quem o dizer: uma imagem só se pode parecer com outra imagem. Mas não desta maneira, apenas com um franzir de sobrancelhas e a voz aguda, mais ou menos sob esta forma:
.....- É assim: eu vejo, não é? Vejo a árvore, tudo bem. Depois chego-lhe a mão, palpo, não é? Ou estou a ir ...
.....- Sim. E?,- diria impaciente Beatriz.
.....- Bom, é isso, não tem nada a ver uma coisa com outra. Uma coisa é ver, outra coisa é tocar. Ver é ver.
- E podes ver coisas que não estão lá, é isso?
O mundo de Beatriz é totalmente no nonsense. É o conceito pão pão queijo queijo em toda a sua irrepreensível extensão. Mas Beatriz já não o ocupa mais, e na verdade nem se lembra muito bem da cara dela. (Ai, ai, Levi!). Podemos sempre perguntar e até é legítimo: a que raio de propósito é que Pedro Levi, ex-modelo, pernas, cabelo louro, olhos verdes, etc. começa a ficar intrigado com a dimensão inventada?
Sombras de sombras, eis o que nós somos.
*
É esta a mobília do apartamento de Eva: um jogo de sofás cobertos de lençóis brancos; um tapete turco onde se pode ver uma queimadura de cigarro; um candeeiro de pé de metal preto; uma mesa rectangular de tampo de vidro;onde se foram pousando revistas e jornais profusamente ilustrados; duas estantes, uma delas com livros;de prateleiras um tanto rombas devido ao peso dos livros de arte; um armário pequeno que alberga coisas necessárias à vida de todos os dias; um móvel pequeno com a aparelhagem de música, gira-discos, rádio, CD, gravador; a televisão, grande.
Paulo Mateus disse, sentado no lençol:
-Não passa de um cinescópio, um sistema afinal simplicíssimo. O cinescópio é uma pirâmide que no vértice tem acoplado um cilindro constituído pelos canhões de raios catódicos. A base desta pirâmide é o écran. Entre o écran e os canhões há uma rede que tem uns furos. Estes furos correspondem à posição dos pontos luminosos no écran, verdes, vermelhos e azuis. Estes pontos são pré-definidos no écran e em cada momento só uma das cores é iluminada em cada ponto, permitindo-nos ver aquela cor e não outra. Temos primeiro o sinal que a própria televisão gera e que comanda o desvio dos electrões, ou seja, o varrimento horizontal e o varrimento vertical, e este sinal tem um nível baixo e é amplificado até uma alta tensão. Depois há toda a informação que permite aos electrões saberem que cor e intensidade de luz devem transmitir. Essa informação vem pelo ar e entra pela antena. E este sinal tem de ser também amplificado, melhorado, detectado, desmodulado e aplicado ao tubo de raios catódicos para formar a imagem. Na parte de trás do televisor temos um sistema que permite amplificar o sinal recebido em alta voltagem, por isso é qué é perigoso mexer na parte de trás da televisão.
- Nem eu ia mexer na parte de trás da televisão,- disse Eva.
- Os canhões de raios catódicos disparam os electrões a direito; por isso é preciso criar, em torno dos canhões, campos magnéticos que vão deflectir os raios para que possam ir acertando sucessivamente em cada uma das seiscentas e vinte e cinco linhas e preenchendo a totalidade do écran.
-Qual totalidade,- resmungou Eva- eu farto-me de ver espaço negro.
- É porque estás perto de mais. A distância óptima para uma boa visão é igual a oito vezes a altura do écran.
- Há lá dentro qualquer coisa que me faz medo.
- Dentro não há coisa nenhuma.
- Um gás que pode explodir.
- Dentro há vácuo, mais nada.
Eva levantou-se para ir buscar o envelope almofadado. Deu-o a Paulo Mateus e fez um movimento de cabeça em direcção ao écran. Paulo Mateus -já tínhamos mencionado a sua inteligência excepcional- compreendeu imediatamente que Eva o intimava a colocar a cassete no vídeo. Assim o fez, com desenvoltura.
-Qual é o canal do vídeo?- perguntou. Já ligara a televisão. Eva não se lembrava, Paulo experimentou alguns, e acertou.
Sentaram-se os dois a olhar. Viram isto:
Primeiro, a fachada de um café algures. O vídeoamador estava sentado dentro de um carro, porque se via em primeiro plano um retrovisor. O carro arrancou, ouviu-se tossir.
-Onde é que isto é?,- perguntou Paulo Mateus.
- Não faço ideia.
Depois o filme começava. A câmara tão fixa quanto o possível dentro de um carro em movimento, gravava uma paisagem plana sempre igual. Arbustos rasteiros, avermelhados, debaixo de um céu cinzento. O filme durava dez minutos e acabava à chegada a um farol.
- É o cabo de São Vicente,- disse Paulo Mateus.
Eva encolheu os ombros. Tanto lhe fazia que fosse São Vicente ou outra coisa qualquer. O que ela não percebia, o que lhe fazia medo, era que alguém se tivesse lembrado de lhe mandar uma cassete.
- É só isto?- perguntou Paulo Mateus.
- Como é que queres que eu saiba?
Acabara-se a Eva-para-Paulo. Agora era Eva Defesa Pessoal para toda a gente. Até Isis já tinha provado o peso do seu braço.
Ficaram a ver o ruído até a cassete acabar.
Olhos Verdes, romance, Dom Quixote, Lisboa, 1994, 179 pp., Cap. III, págs. 81-91