CLÁUDIO e CONSTANTINO
Paradoxos da democracia
“- Vamos todos jogar críquete para o convés superior.
- Excelente ideia – disse Constantino, reparando na forma como estavam vestidos, de bermudas, camisas floridas, bonés de beisebol com a pala virada para a nuca, como crianças que tivessem inchado e crescido demais.
- Decidimos ir todos e agora vamos.
- Excelente ideia, temperatura ideal – disse Constantino, a lembrar-se do Avô que nunca perdia uma oportunidade de mencionar a temperatura do ar.O grupo esperou um pouco mais. Suspeitando que Constantino não devia ter percebido o conceito, o que tinha falado voltou a falar:
- Não te queres calçar? Para o críquete, convém.
- Eu não quero jogar críquete.
Percorreu o grupo um arrepio de surpresa. Não queria jogar críquete? Como assim? Então isso podia fazer-se? Todos tinham decidido que todos iriam! E todos fazem o que todos querem, nenhum faz o que cada um quer! Era o que faltava!Isso implicaria uma mudança de planos, teria novamente de se atravessar o processo de debate&negociação&deliberação&compromissos! Para chegar ao consenso, seria coisa para desperdiçar uma manhã inteira!
- Podem ir sem mim – disse Constantino. – Não temos de ir todos para onde vocês todos decidiram que se iria. Eu não decidi nada. Não tenho de vos seguir.
- Todos quer dizer todos, não quer dizer todos menos um, todos menos um não é todos.
- Arredondem para cima e todos menos um é como se fosse “todos”.
- Isso não faz sentido. Tu és parte integrante do todo! O todo integral não é todo sem as suas partes integrantes!
- Não é verdade – disse Constantino, espreguiçando-se – todos os todos são arredondados, não há todos perfeitos, excepto no ideal e na forma.
– O conjunto de todos os passageiros inclui-te necessariamente a ti. – disse o porta-voz, exasperado. – Vivemos numa democracia! Toda a gente faz o que toda a gente quer! Ninguém faz o que cada um quer!
- Lamento, não quero ir, estou aqui a pensar na minha vida e no que aprendi, se é que aprendi alguma coisa que me valha a pena para o resto da vida. Por exemplo, será que quero aprender que não se pode confiar em estranhos? Que o mundo é um lugar de enganos? Não estou nada certo disso.
— Então não vai ninguém! – disse o porta-voz.
— Não sei porquê – disse Constantino.
— Porque somos um conjunto! E até temos um subconjunto!
– Ponham-me noutro conjunto, dos que não vão jogar críquete!
– Com o teu egocentrismo vais estragar-nos uma bela partida de críquete! Com a tua teimosia em não querer fazer o que ficou decidido que se ia fazer!
Entreolharam-se os turistas, confabularam, calaram-se, hesitantes. Um gordo de camisa azul e com o cabelo a chispar de louro adiantou-se, e perguntou:
- Porque não jogas tu o críquete?
- Não me apetece agora.
- Tenho aqui umas pastilhas muito boas que te podem fazer mudar de ideias. Tomas uma e passas a querer jogar críquete.
- Não sou uma pessoa que toma pastilhas – disse Constantino, indignado.
- Tenho aqui umas outras pastilhas que, se as tomares, te transformam num ápice numa pessoa que toma pastilhas.
- Não tomo pastilhas que me tornem numa pessoa que toma pastilhas.
- Só uma – pediu o turista.
- Nem uma.
Os turistas entristeceram. Se bem entendi, nem os eremitas pareciam contentes. Constantino teve pena e por uma questão de boa educação, vestiu-se, calçou-se e seguiu o grupo. A seu lado, amuava um grande ruivo que lhe confidenciou:
- Detesto jogar o críquete. Estava muito melhor na minha cabina, quente e confortável, a ler um romance de aventuras.
- Então porque vem jogar?
- Todos decidiram contra a leitura e a favor do críquete e eu, que detesto críquete, tenho de vir jogar, mas venho contrariado, garanto-lhe.
Deixou-se ficar para trás, arrastando os pés, para pelo menos não ter de pertencer ao primeiro turno do jogo. Dois outros, mais à frente, diziam:
- Detesto críquete, é um jogo que nem percebo bem. Anda-se para ali a bater a bola com o taco, uma em cada duas cai na água. O voleibol é que é bom, mas ninguém gosta de jogar voleibol porque é um desporto em que é preciso fazer exercício.
- O críquete é muito parado – disse o outro – não é bem um desporto, é uma conversa com tacos e bolas. Atiras a bola, atiram-te a bola, atiras a bola, correm para apanhar a bola, atiras a bola, atiram-te a bola, duas em cada três vezes a bola cai na água.
Por onde ia passando, Constantino ouvia queixas contra o críquete, e elogios a outros jogos e desportos muito mais do agrado de quem falava. Isto intrigou-o, que todos tivessem decidido fazer o que nenhum deles queria realmente fazer. O que se passou a seguir podia ter sido uma lição para Constantino se ele tivesse querido aproveitá-la e foi isto: chegado ao convés, o grupo procurou em vão os tacos de críquete e o campo de críquete. Encontrou, em seu lugar, tacos do cróquete, bolas de cróquete e um campo com os característicos aros do jogo de cróquete. Passado o choque inicial, gerou-se uma discussão sobre de quem seria a responsabilidade de ter atribuído valor de críquete ao cróquete, responsabilidade que ficou por apurar, de tal modo confuso e equívoco tinha sido o início do processo. Não sendo possível jogar críquete com tacos de cróquete, pois os últimos são parecidos com martelos e os primeiros parecem-se com alfinetes grandes mas são feitos de madeira, sem a cabeça e com uma pega (mas não como as pegas dos bules) houve um compasso de espera a ver se alguém iniciava um outro processo de consenso. O grande ruivo atirou a bola e deu umas tacadas, conseguiu passar a bola por baixo de um aro, e pouco depois estavam todos a passar bolas por baixo de aros com relativa satisfação. Sem mais, estavam a jogar cróquete, que é a finalidade natural dos tacos de cróquete. Constantino não pôde deixar de reparar numa rapariga lindíssima, mas muito desajeitada, que não conseguia passar bola nenhuma por debaixo dos aros e ofereceu-se para a ajudar. Cedo compreenderam que não iam a lado nenhum e decidiram ir conversar e passear de um lado para o outro para outro lado. Mas o grupo, vendo-os com vontade de partir, reuniu-se e vetou a separação. Iriam todos conversar dos eventos do dia e passear de um lado para o outro. Quando perceberam que teriam de levar aquela gente toda atrás, Constantino e a rapariga desistiram do passeio e por olhares e meias palavras combinaram encontrar-se mais tarde, depois do jantar, ali mesmo. Não sendo as meias palavras palavras inteiras, a combinação que eles pensavam ter ficado clara fez Constantino esperar umas horas no convés superior esquerdo, enquanto a rapariga desesperava no convés superior direito com os pés dentro da água clorada da piscina. Os pés tinham quase perdido a cor original quando Constantino, de passagem, sem esperança de a encontrar, por acaso a encontrou.”
(in Cláudio e Constantino, Cap. XXXVII, Viagens de Constantino)