O Plasticum
Olhe, desculpe, faz favor, olhe, deixou cair o papel do gelado. Aquele ali. Não é seu? Como é que sabe que não é seu, está assinado? Bordou-lhe o monograma? É seu, sim, que eu bem o vi atirar o papel do gelado para o chão. E o pauzinho. E a embalagem do iogurte. E o pacote do sumo. E a lata da cerveja. Nem foi para o chão, foi para o ar, para trás das costas. Não fez uma covinha discreta no entre pernas para sepultar o seu lixo. Isso era capaz de demonstrar alguma consciência da sua pouca-vergonha. Já viu que a Câmara teve o cuidado de encher a praia de caixotões verde-tropa, brutos, mal jeitosos, postados ali e ali e ali até ao infinito, de três em três passos? Não é artilharia de costa, não é instalação de algum artista de intervenção. A Câmara desfeou um dos mais belos areais da país por sua causa e o senhor não lhe corresponde com o mesmo afecto?! À ida, no caminho para o automóvel familiar, é só estender o braço e largar o lixo no caixote. Não tem de se desviar da sua rota. Admito que abrir a tampa pode dar trabalho para quem já vai cansado de tanto divertimento, a Câmara aqui errou, esteve mal, os caixotes deviam ter uma tampa automática, como essas luzes que se acendem à nossa passagem. Já estou a maçá-lo com esta história do papelinho e do pauzinho? Enjeita a responsabilidade do pauzinho e do papel do gelado? Aceita a da lata de cerveja? A lata de alumínio vai demorar duzentos anos a desaparecer! Vai andar para aqui de praia em praia, de maré em maré, acaba incrustada no gelo de algum círculo polar. Muito bem, não se enerve. E a casca de banana, também não lhe pertence? Claro que foi o menino, mas o menino não é seu? Não reconhece a paternidade ao menino por causa do lixo do menino que é tão seu como se fosse feito por si? Ele é pequenino, ainda não sabe, embora provavelmente aprenda mais depressa do que o senhor que a praia não é nossa, nem é vossa, é um dom que já aqui estava muito antes de nós nascermos e muito antes de termos tido a ideia de vir sujá-la. Estamos de acordo, a casca de banana é orgânica, não discuto. Mas também suja.
E nisto, perante o meu espanto, o que eu imaginara ser um porcalhão poluidor e inconsciente ergueu-se numa voz de tempestade e fez-me o Sermão da Areia, que foi mais ou menos assim: “Cresci ecologista ferrenho e ando a pregar a reciclagem desde que tirei os cueiros. Os plásticos biodegradáveis aparentemente levam mais tempo que os outros a degradar-se! Sabe quantos milhões de toneladas de resíduos plásticos são produzidos anualmente na Europa? São vinte e sete milhões. E lixo descartável? Tem presentes os números? Duzentos e cinquenta milhões de copos de café, quarenta milhões de embalagens de plástico de comida para fora, mil milhões de palhinhas, dez mil milhões de beatas, setecentos e vinte e um milhões de garrafas de plástico. Cada garrafinha demora quatrocentos e cinquenta anos em média a desparecer. Todo esse plástico anda no mar e chega às nossas praias vindo da Turquia e da Espanha. Eu não atiro o lixo para o chão por inconsciência, nem por falta de vergonha. Aqui onde me vê sou um ecologista desiludido, batido pela vida, esmagado pelo gigantismo da tarefa que temos pela frente. Repare que as pessoas em geral, desde que tenham dois dedos de testa e olhos na cara, estão alarmadas porque têm consciência da catástrofe ecológica e climática que vivemos, enquanto os governantes conversam entre si e estudam formas de ir encanando a perna à rã com paninhos quentes. O mais que se pode fazer é responsabilizar o comum dos mortais pela palhinha e pela embalagem de plástico que o comum dos mortais, aliás, não criou! Mas as empresas globalmente mais poluidoras, a Coca-Cola, a Pepsi Cola, a Nestlé, a Danone e a Mondelez International (Nabisco, Oreo, Ritz, etc,) quem é que lhes deita a mão? Não parecem preocupadas em mudar os seus esquemas. Como as pessoas, por mais conscientes e activistas que sejam, não podem desistir completamente dos seus padrões de consumo sem enlouquecer, deixar crescer umas barbas e ir pregar para o deserto a comer gafanhotos, eu atiro para o chão, sim, em sinal de protesto nihilista! É menos de uma gota no oceano! Quando quiserem conversar sobre a mudança de paradigma do descartável para o sustentável, podemos conversar.” E eu, que nem sabia que ainda havia nihilistas, apanhei o lixo dele e fui pôr no caixote, claro, o que é que eu havia de fazer?
E nisto, perante o meu espanto, o que eu imaginara ser um porcalhão poluidor e inconsciente ergueu-se numa voz de tempestade e fez-me o Sermão da Areia, que foi mais ou menos assim: “Cresci ecologista ferrenho e ando a pregar a reciclagem desde que tirei os cueiros. Os plásticos biodegradáveis aparentemente levam mais tempo que os outros a degradar-se! Sabe quantos milhões de toneladas de resíduos plásticos são produzidos anualmente na Europa? São vinte e sete milhões. E lixo descartável? Tem presentes os números? Duzentos e cinquenta milhões de copos de café, quarenta milhões de embalagens de plástico de comida para fora, mil milhões de palhinhas, dez mil milhões de beatas, setecentos e vinte e um milhões de garrafas de plástico. Cada garrafinha demora quatrocentos e cinquenta anos em média a desparecer. Todo esse plástico anda no mar e chega às nossas praias vindo da Turquia e da Espanha. Eu não atiro o lixo para o chão por inconsciência, nem por falta de vergonha. Aqui onde me vê sou um ecologista desiludido, batido pela vida, esmagado pelo gigantismo da tarefa que temos pela frente. Repare que as pessoas em geral, desde que tenham dois dedos de testa e olhos na cara, estão alarmadas porque têm consciência da catástrofe ecológica e climática que vivemos, enquanto os governantes conversam entre si e estudam formas de ir encanando a perna à rã com paninhos quentes. O mais que se pode fazer é responsabilizar o comum dos mortais pela palhinha e pela embalagem de plástico que o comum dos mortais, aliás, não criou! Mas as empresas globalmente mais poluidoras, a Coca-Cola, a Pepsi Cola, a Nestlé, a Danone e a Mondelez International (Nabisco, Oreo, Ritz, etc,) quem é que lhes deita a mão? Não parecem preocupadas em mudar os seus esquemas. Como as pessoas, por mais conscientes e activistas que sejam, não podem desistir completamente dos seus padrões de consumo sem enlouquecer, deixar crescer umas barbas e ir pregar para o deserto a comer gafanhotos, eu atiro para o chão, sim, em sinal de protesto nihilista! É menos de uma gota no oceano! Quando quiserem conversar sobre a mudança de paradigma do descartável para o sustentável, podemos conversar.” E eu, que nem sabia que ainda havia nihilistas, apanhei o lixo dele e fui pôr no caixote, claro, o que é que eu havia de fazer?
Crónica de Agosto no Jornal da Gandaia