LUISA COSTA GOMES
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Um Mundo Assim

Prefácio d'O Pequeno Mundo
Abel Barros Baptista

​O primeiro efeito destas linhas, até para quem deixar de as ler, será diferir o momento em que no livro se depara a advertência que já na primeira edição distinguia O Pequeno Mundo: "Leitor! Este livro não fala do 25 de Abril. Não se refere ao 11 de Março e está-se nas tintas para o 25 de Novembro", etc. Era isto em 1988, e o recém-chegado, talvez no embaraço da profusão de datas ou, quando menos, vendo-se sem indicação da relevância delas, há-de julgar que a maior proximidade cronológica tornaria então a advertência mais compreensível do que é hoje. Não estou certo de que assim seja. Sem dúvida que a enumeração de tópicos recusados, do 25 de Abril à comunidade europeia, tinha algum propósito polémico. Porém, ainda concedendo que as polémicas se entendem melhor no momento da eclosão, não vejo vantagem em presumir que a advertência se esgotava nesse propósito polémico e apenas se resguarda agora, como que entre aspas, por fidelidade, ou exposta em vitrina, por desejo de conservação: é que, em qualquer dos casos, o romance acabaria irrecuperavelmente enraízado na circunstância do seu aparecimento por via do próprio processo com que dela se quis distanciar.
A eficácia imediata daquela advertência demarcava O Pequeno Mundo da literatura de ficção que dominantemente se publicava. De resto, num tom de exasperação ainda perceptível. As datas e os tópicos repudiados não tinham ali valor propriamente figurado, eram antes elementos de repertório da "matéria nacional", um pouco no sentido em que, na literatura medieval, se fala da "matéria de Bretanha": conjunto de assuntos dignos de tratamento literário, mais do que isso, conjunto de assuntos que asseguravam a revitalização do romance português e se apresentavam em vínculo irrecusável ao escritor que se quisesse sintonizado com o genuíno curso do seu tempo. E todos se queriam, evidentemente. Dir-se-ia uma época de especial felicidade: enquanto o romance descobria Portugal, Portugal descobria os seus romancistas. Como a felicidade, afinal, sempre se paga com alguns sacrifícios, a consequência foi ter passado para segundo plano, se não excluída, certa dimensão de compromisso com a própria arte: a "matéria nacional" legitimava, por si só, a negligência da forma, o abandono da experimentação e a perda do sentido da tradição literária. Foi por essa altura, anos 80, que, imagine-se! alguns acreditaram que a literatura portuguesa chegara enfim ao romance, na suposição errada de que o romance, por sua vez, não se movera um milímetro, à espera, paciente, que a literatura portuguesa a ele chegasse. Estar-se "nas tintas" para a identidade nacional, e chegar a dizê-lo na entrada de livro, eis o que facilmente passaria por arrogância ou, quando muito, por boutade inconsequente, embora logo a seguir a dedicatória a Camilo Castelo Branco indicasse que estava em causa antes do mais a figura e a responsabilidade do romancista enquanto tal. Daí que, quando depois da enumeração de negativas a advertência perguntava "Suportará o leitor um livro assim?", a ironia decorresse menos do lugar clássico do pedido de benevolência do que da afirmação implicada de que não eram ainda manifestos os limites do vínculo à "matéria nacional" nem evidente a necessidade de outra noção e de outra prática da literatura e do romanesco. E isto, já então mais do que polémica, é que talvez hoje se compreenda melhor.
O que não significa, por outro lado, que nesta segunda edição O Pequeno Mundo venha encontrar melhor fortuna. Continua um livro excêntrico, graças a Deus. Visto que nada estancou a proliferação de histórias policiais e singra por aí um emotivismo singelo - algum dele convicto de que oferecendo "lições de vida" se torna mais seriamente literário do que os produtos do contingente de imitadores e imitadoras dos esquemas narrativos da televisão que entretanto emergiu -, a pergunta "Pode o leitor suportar um livro assim?" mantém-se tão pertinente e sobretudo tão justa como em 1988.
É preciso então sublinhar que o "livro assim" não se definia apenas negativamente e pelo desdém da "matéria nacional". A advertência requeria, como ainda requer, uma reapreciação informada pela leitura do romance, condição para nela perceber o primeiro passo do procedimento irónico do livro - trata-se de um romance epistolar cuja primeira carta, afinal, é endereçada ao próprio leitor - que não obstante também se diferencia do resto na estrita medida em que o delimita enquanto todo organizado. As advertências, como se sabe, são típicas e aliás indispensáveis no romance epistolar; aqui, porém, não a usa a autora para elucidar o modo como chegou à posse de certas cartas, o critério com que as compila ou a razão por que as publica, mas para declarar que as escreveu todas, ou mais precisamente para declarar que escreveu todo o livro. Nesse sentido, a advertência mantém a função positiva do romance epistolar: garantia da unidade do livro pela pressuposição de um desígnio e do respectivo cumprimento.
Assim, O Pequeno Mundo começa por assentar o seu princípio de unidade numa atitude literária. Trata-se, em suma, de um livro construído na relação com a tradição do romance moderno, que homenageia e a que se vincula, através de um género paradigmático, o epistolar, demais, emblematicamente dedicado a Camilo, cada carta recortando-se como exercício requintado de pastiche, mimando prosas em desuso, sem receio antes fazendo praça de certo anacronismo de vocabulário e sintaxe. Mas seria errado reduzir essa atitude literária a um problema de forma ou a intuito meramente paródico: Luísa Costa Gomes não se contenta com adoptar a carta para princípio de composição narrativa, pois obedecendo ao corpo de regras e de procedimentos do romance epistolar regressa também ao universo especificamente romanesco que lhe está associado. O Pequeno Mundo é um inquérito no domínio da moralidade - não apenas às condições do bem e da justiça, da amizade e da felicidade, também à própria condição da moralidade na época contemporânea -, mas um inquérito que procede pela ironia. O terreno em que esses dois traços se articulam sem paradoxo é o que propriamente se chama romanesco.
Até certo ponto, isto não surpreende o leitor das primeiras páginas, que começam por pôr em confronto duas concepções de moralidade. Um médico colocado numa cidade de província, João Miguel, escreve a um amigo, Leonardo, com quem não contactava há algum tempo e sabia retirado numa quinta próxima, as Bétulas. Leonardo responde, aplicando-se a descrever o actual modo de vida na quinta, com a mulher, Camila, e um cão, Cupido, resumido nesta declaração espantosa: "Tudo me faz feliz." Logo a seguir, porém, a segunda carta de João Miguel é recebida com grande hostilidade, justificada por um razoado de ponderações morais: "E estará a virtude em viver de acordo com o seu tempo, gozando o que ele goza, indo por onde ele vai, ou deveremos mais agir connosco e conformados às ideias que não são de tempo algum? É isto que me impacienta quando leio as tuas cartas: o seres tu um resultado tão evidente da falta de princípios. Porque se vivemos numa idade que despreza a excelência e a virtude […], digo que não há como abandonar o século e enfileirar na tradição dos Virgílios, dando as costas à canalhice que se derrama pelo mundo e fechando atrás de si a porta de casa. É uma época deveras escangalhada esta". A isto, responde João Miguel que esta época não é pior do que as outras, que todas desprezaram uniformemente a virtude, ou não haveria justificação para os moralistas, acrescentando: "Nestas coisas de moralidade, há os que se regem por princípios - que são obrigados a quebrar o mais das vezes - e os que andam caso a caso e aspiram vagamente a uma generalidade, a uma espécie de telhado acima da cabeça susceptível do que tem de agir." E assim, neste primeiro confronto, suportado pelas duas figuras que serão o esteio do romance, expõe-se uma primeira versão do problema da moralidade.
Entretanto, o leitor experimentado não chega a passar pela suspeita de que o espera uma troca epistolar de teorias e ponderações: notará, desde o início, a insinuar-se como pretexto da discussão moral, o caso de António de Azevedo, pai de Camila, membro menor de um governo, que anos antes fora obrigado a demitir-se por causa de uma acusação de corrupção, declarada infundada em tribunal, mas nunca inteiramente esclarecida. Além disso, muito depressa surge uma curta carta em que Leonardo dá notícia a João Miguel de que Camila está doente e recusa tratar-se, e muito depressa também outra que começa: "Fui expulso do paraíso, minha mulher morreu." O caso de António de Azevedo assoma ao primeiro plano nas cartas seguintes, alternando com um retrato de Camila e descrições pungentes da sua agonia, mas pouco depois Leonardo desaparece. Tudo isto, em mais ou menos vinte páginas, parece deslocar a leitura das considerações gerais para a narração de uma história, ou até de duas: o romanesco chegou, há-de supor o nosso leitor experimentado. Na verdade, será em consequência desse desaparecimento que se vai perceber que o romanesco já tinha chegado.
João Miguel, procurando localizar o amigo, escreve a uma antiga colega comum, Manuela, cuja resposta o deixa a braços com algumas dificuldades (precisamente as mesmas, de resto, que os leitores enfrentam). Digamos que Manuela faz duas "revelações" inesperadas. A primeira, que a morte de Camila não teria ocorrido quando Leonardo a anunciou ao amigo, mas uns bons seis meses antes: suicidara-se após a separação infeliz e violenta de Leonardo, que aliás a expulsara de casa reputando-a "discípula insuficiente" do programa de Pedagogia Clássica que para ela engendrara. Leonardo, portanto, teria mentido "do princípio ao fim", e as primeiras cartas que dele lemos compunham, afinal, uma peculiar ficção. Em segundo lugar, o mesmo Leonardo sofrera grave depressão, três ou quatro anos antes, na sequência da qual "lhe sobrevieram os moralismos e os delírios racionais" que o levaram a fechar-se com Camila nas Bétulas. Assim, as mentiras seriam solidárias daquelas considerações morais, ambas derivadas de uma mesma causa: Leonardo estava "irremediavelmente louco, praticando uma espécie de terrorismo moral que não passa de uma distorção ansiosa e, no caso dele, suspeito que desejada e trabalhada, da realidade".
Se o desaparecimento de Leonardo interrompe a troca epistolar com João Miguel, e consequentemente a narração que nela tinha curso, a efectiva interrupção consuma-se com a entrada de Manuela. Ainda que as suas alegações se revelem enganadoras, interessadas ou até falsas, o efeito é inexorável: põem em causa tudo o que ficou para trás, ou seja, não apenas a atitude e as descrições de Leonardo, mas também a posição de João Miguel e ainda, ou sobretudo, o propósito com que são colocadas a abrir o romance. A ironia de que falei acima desponta: o romance começa contando uma história em que se conta outra história, entregando parte substancial da acção de uma e da narração de outra a um narrador que depois torna suspeito de falsificar ambas. E desponta para não desaparecer nunca mais, conduzida ao limite em que O Pequeno Mundo arrisca a própria inteligibilidade ao fazê-la depender da capacidade da leitura para lidar com a distância progressivamente crescente que a impede de captar a actualidade e a eficácia de um desígnio unificador.
A interrupção de Manuela produz o efeito do que tecnicamente se designa por anacoluto: deixa o primeiro movimento do romance isolado, ou suspenso, por não se poder ligar ao seguinte no modo esperado ou exigido. Será necessário esperar pelo final do segundo movimento, para então regressar ao primeiro com uma interpretação que estabeleça a continuidade contra o dispositivo que a interrompe. Por isso o anacoluto se define como obstáculo à compreensão na forma de promessa de compreensão por vir, e é sempre muito curiosa a variante em que a promessa se reitera em vez de se cumprir e ao cabo se frustra pelo próprio processo com que visa cumprir-se. Tal variante é o que aqui denomino ironia ou procedimento irónico. E de facto, aquele segundo movimento do romance que se lança a partir da interrupção configura-se através de duas acções contraditórias.
Por um lado, a acção que retoma e alarga o comércio epistolar, basicamente um inquérito conduzido por João Miguel: nesse particular equiparado ao leitor, igualmente defraudado pelas ficções do amigo, procurará estabelecer a verdade, confrontando-as com um estado de coisas que supõe comprovável. Funcionará desde então como centro de expedição postal, enviando cartas e recebendo cartas, convocando novos correspondentes, único ponto de cruzamento de toda a correspondência, constituído pela finalidade que o animará a partir daqui: determinar a verdade sobre o caso de António de Azevedo, aferir a distância entre as cartas de Leonardo e a realidade de Leonardo. Dando-se à tarefa de compilar e organizar testemunhos, provas e documentos, uns e outros dispersos, remotos e muitas vezes de difícil acesso, o lugar de João Miguel define-se antes do mais enquanto garante da promessa de uma história coerente e completa e só depois enquanto protagonista da busca destinada a cumpri-la. Em contrapartida, Leonardo é a causa, o alvo e o objecto do inquérito: representa tudo aquilo que se procura saber, ou tudo aquilo que não se compreende. Assim, do sucesso do inquérito depende a possibilidade de restabelecer o confronto entre as duas figuras que o começo do romance sugeria e a intervenção de Manuela interrompeu.
Entretanto, por outro lado, Manuela representa também a acção que resiste ao inquérito e o torna impossível, porque rigorosamente interminável. A lógica do romance epistolar obriga o inquérito a proceder pelo próprio meio que o impede de chegar a termo satisfatório: as cartas que desacreditam Leonardo não beneficiam de especial protecção ou de qualquer autoridade que as impeça de, por sua vez, virem a ser desacreditadas. Não me refiro propriamente à proliferação de versões rivais sobre o mesmo estado de coisas, fenómeno derivado, mas à acção específica da carta, irredutível à descrição de acções e estados de coisas. Sabe-se que a carta, chegando ao destino, pratica uma acção que pode ser tão letal como uma paulada na testa. Aquele que mente não se limita a apresentar uma versão alternativa da realidade: mente a outro, o que quer dizer que procura impedi-lo de saber o que pretende ou necessita saber, fazendo-o ao mesmo tempo acreditar não tanto na veracidade da versão que lhe oferece, mas na disposição genuína para lhe oferecer a verdade. O mentiroso pratica uma acção que inclui, de forma necessária, o mascaramento de si própria e dos efeitos sobre o alvo da mentira. Por isso a mentira anda aliada à manipulação, uma e outra figuras genuínas do universo do romance epistolar. Não quer dizer, é claro, que todos mintam: quer dizer que existe a possibilidade de todos mentirem, não existindo a possibilidade de delimitar com segurança a acção dos que mentem e as mentiras que proferem. Para João Miguel - como para o leitor - o inquérito prossegue acumulando testemunhos que requerem outros testemunhos que os confirmem ou repudiem, os quais por sua vez ficam sujeitos à mesma condição, até que venha o testemunho dos testemunhos, autoridade imune à suspeita, que é o que o romance epistolar propriamente não deixa vir nunca.
Assim, a acção do inquiridor desencadeia-se a partir da condição que a condena ao fracasso: repare-se que a possibilidade do engano, da mentira e da manipulação não emerge no decurso do inquérito, em resultado de acidente ou contumácia; pelo contrário, precede-o e, mais do que isso, é o que rigorosamente o exige. Nada disto significa, porém, que seja inútil, ou que dele se conclua que tudo são ficções, que a verdade é uma miragem, etc. Obviamente, o procedimento irónico alimenta-se do fracasso, ou seja, aquela possibilidade de restabelecer a continuidade, interrompida pela intervenção de Manuela, do confronto entre duas figuras também depende, afinal, do fracasso do inquérito. Ou ainda, por outras palavras, a ironia não consiste em prometer uma história coerente e completa para depois a negar, mas em substituí-la pela história da busca de uma história coerente e completa sujeitando-a depois às mesmas condições que tornam a primeira inacessível. E nesse processo, chegando ao fim, percebe-se que a única maneira de recuperar para a continuidade da acção narrada aquele primeiro movimento, deixado isolado ou suspenso pela interrupção de Manuela, é estipular que não houve interrupção ou, o que vem a dar no mesmo, que na interrupção já se oferecia a verdade que o resto do romance, por caminhos mais ou menos oblíquos, viria confirmar. Ora, e é o que falta ver, oferecia-se de facto certa coisa ambicionando o desempenho de tão relevante papel, só que junto com outra que ali mesmo lhe barrava o caminho.
A verdadeira acção do romance é a acção epistolar: tudo se passa e tudo se resume à troca de cartas. Assim, à inteligibilidade do romance não interessa apenas a percepção de que a descrição da felicidade nas primeiras cartas de Leonardo não tinha correspondente efectivo: subsiste a questão de saber donde provém a necessidade e qual o intuito de mascarar o estado de coisas vigente e, em particular, a questão de saber porque mascará-lo com aquela particular ficção em vez de outra. Também não importa muito averiguar o que de facto se passou com António de Azevedo, se era ou não culpado de corrupção, se lhe manipularam a ingenuidade ou se perdeu por inépcia, porque importa acima de tudo discernir o laço que liga esse caso à acção de Leonardo, qualquer que esta seja. Além disso, a multiplicação de versões rivais nas cartas de Leonardo - ponto em que, aliás, suspera qualquer outro correspondente - contrasta com a assinalável persistência de princípios; mais ainda, Leonardo demarca-se dos outros por fundar a sua acção - e nunca se sabe qual seja ao certo - em princípios independentes da sua vontade, das suas paixões, interesses ou inclinações, numa palavra, da sua pessoa. Por isso mesmo esses princípios persistem, resistem ao desmascaramento da acção da pessoa que os invoca. Enquanto causa, alvo e objecto do inquérito, Leonardo não representa a distorção da realidade, ou a mentira, ou a manipulação, mas a ligação de uma teoria moral à opacidade da acção que supostamente determina. E o problema dessa ligação é posto ao romance no momento da interrupção de Manuela e justamente em consequência da solução proposta, a tal que ambicionava o estatuto de verdade final do inquérito: a loucura.
Mas "loucura" é uma palavra esquiva no vocabulário de Manuela, e de tal modo que se torna praticamente sinónimo de mau carácter: basta ver que, reputando-o "irremediavelmente louco", não isenta Leonardo do juízo moral, julga-o severamente, estendendo o juízo ao passado longínquo sem qualquer descontinuidade. Há também, é certo, um uso da palavra em sentido clínico, que é o que João Miguel começa por confirmar, aliás no primeiro passo do inquérito. O psiquiatra indicado por Manuela não demora a informá-lo de que Leonardo sofria de "crises de mania, que tomavam a forma de delírios racionais e morais", tendo porém abandonado prematuramente a terapia. Mas zanga-se quando João Miguel lhe pede que fundamente o diagnóstico, acusando-o de lhe pôr em causa a competência científica e a integridade moral. E é então que João Miguel, justificando-se precisamente numa carta para Manuela, enuncia uma possibilidade de interpretação alternativa: "eu pretendia somente trazer à luz que hoje se trata o mais das vezes como psicológico o que dantes caía sob a alçada do moral, e que uma moralidade exacerbada - e qualquer moralidade o é, nos tempos que correm - pode apresentar-se sob a forma de uma doença as olhos destreinados de quem não interprete segundo as coordenadas do moralista." O próprio João Miguel, não por acaso médico, tenderá a não acreditar nisto, o que é para o caso irrelevante: entretanto, deixou assinalados os limites do parecer do psiquiatra e, sobretudo, de um modo que retoma a antinomia básica de Leonardo, aquela que opõe o "hoje" ao "dantes" no domínio da moralidade. Também aqui a formulação genérica resiste à descrença daquele que a enunciou. Mais geralmente, e abreviando o argumento, a psicologia explicaria as desordens provocadas pelo facto de a moralidade ser uma coisa do passado. Tanto a loucura como o diagnóstico do psiquiatra podem facilmente interpretar-se como sintomas desse "cancro da moralidade contemporânea" - de que o mesmo Leonardo, pouco após de reaparecer, fará a teoria, numa carta para João Miguel significativamente acerba a respeito da psiquiatria e da psicanálise -, interpretação obviamente extensível a todo o comércio epistolar, ao respectivo cortejo de paixões e interesses, mentiras e manipulações, delírios e mistificações. Dar-se-á o espantoso caso de as cartas de Leonardo obscurecerem a própria acção do mesmo passo que oferecem a melhor descrição da acção dos outros?
Esta simples possibilidade basta a colocá-lo no centro do inquérito moral de O Pequeno Mundo. Se o "cancro da moralidade contemporânea" não é fruto de hipocondria, então Leonardo foi devorado por uma das suas metástases. Como quer que seja, ao cabo a questão subsiste: Leonardo enlouqueceu entregando-se em consequência a delírios racionais e morais, ou chegou ao delírio por incapacidade, dele mesmo ou imposta pelo mundo, de manter uma acção fundada em princípios morais? Eis, em suma, a pergunta que o romance coloca ao inquérito de João Miguel, satisfazendo-se quando ele se retira, incapaz de concluir e de acreditar. A inteligência de O Pequeno Mundo não consiste apenas em conduzi-lo ao fracasso e em mostrar que esse fracasso é necessário: está sobretudo em não ceder à tentação de compensar o leitor. Isso decerto distingue-o como um dos grandes romances da literatura portuguesa contemporânea. Mas suportará o leitor um livro assim?

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