SOBRE O VULCÃO, cantata de Luís Bragança Gil,
libreto de Luísa Costa Gomes,
encenada por Luísa Costa Gomes na Festival de Teatro do ACARTE, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, Setembro de 1996
CD editado com patrocínio do Ministério da Cultura
Instalação visual de Pat Kaufman
Libretto
Primeira Estação
Personagens: A Mulher (soprano)
O Pedestal (barítono)
O Crânio (tenor)
O Coro
Segunda Estação
Personagens: A Mulher (soprano)
O Milho (barítono)
A Moeda (tenor)
O Coro
Terceira Estação
Personagens: A Mulher
O Coro
Primeira Estação
(A Mulher está acondicionada , em posição fetal, dentro de uma pequena caixa ; o palco está completamente escuro ; sobre a Mulher incide uma luz fraca, azulada ou acinzentada ; o todo deve dar uma ideia fria, nocturna e de pouca profundidade; a caixa está aí a um metro do extremo da boca de cena)
A Mulher ( durante a ária, vai lentamente libertar-se da caixa, num exercício quase contorcionista, movimentando-se de forma a ficar apenas com os braços e o tronco de fora )
Saí uma vez
Uma única vez
Na hora calada
Subi as escadas
De larga antemão
( Sai da caixa; levanta-se; vai à esquerda, onde se ilumina com uma luz ligeiramente mais forte, um quadrado de acrílico, pouco maior do que a caixa)
A palma na lâmina
O pé contrafeito
Caminho, destino
Ah, quem me abandonou
Ao meu próprio critério?
( A Mulher acerca-se da " janela" e abre-a ; o Crânio aparece aí projectado, uma cabeça que ocupa por inteiro a janela; a Mulher vai recuando para a direita e perde-se no escuro)
O Crânio ( o Crânio é, portanto, uma imagem projectada no écran de acrílico; é uma máscara semi-marcial, impositiva)
Ah! Escada de pedra
Incerta do degrau que falta
Subi-te, fugi-te
Não há mais nada para mim
(Na galeria, à direita, abre-se uma frincha estreitíssima, violentamente iluminada; a Mulher - ou seja, a cantora que faz a Mulher - , aproxima-se dessa frincha, apoiando quase a boca à abertura)
(Dueto - a Mulher e o Crânio)
A Mulher (
E em chegando ao patamar
Da porta para além vi
Que se estendia o areal
Negro, duro, insensitivo
O Crânio
Subi-te, fugi-te
Não há mais nada para mim
(À direita ilumina-se agora um rectângulo ao alto, cuja "porta levadiça" a Mulher abre; nela aparece projectada um Pedestal).
O Pedestal
O amor para ti
É uma coisa triste
Triste triste triste
E rigorosa
A Mulher ( enquanto o Pedestal canta, a Mulher fala, dirigindo-se para o escuro, à esquerda)
Gostava de te dizer
Eu, sabes...
Tu não és...tu não és...
Queria dizer...
Sim, eu sei que...
Mas tu, tu também não...
(Terceto - Crânio, Mulher, Pedestal)
O Crânio
Subi-te, fugi-te
Não há mais nada para mim
O Pedestal
Triste e vigorosa
A Mulher
Negro, duro, insensitivo
(Pausa ; a Mulher entra na sua caixa negra ; no palco ficam iluminados à esquerda a janela e à direita a porta)
O Coro ( o Coro, - oito elementos -, está na galeria superior direita)
(Recitativo)
O Coro
(gritos de medo, ruído, pânico)
Para dentro, fujam para dentro!
Não! Não! Não! Para dentro não!
Para onde então?
Não há para onde ir!
Treme... a parede desmorona-se!
Desprende-se a telha do telhado!
A força verga o caixilho da janela!
Debaixo da cama não!
Vai cair vai cair vai cair
O pó de cima une-se ao pó do chão!
Ainda ontem esteve calmo...
Nada fazia prever...
Esta fúria, esta explosão!
Fora, fora! Saiam! Saiam todos!
Não! Eu não saio!
Engole-me a onda! A lava!
Fora, fora, todos!
A terra abre-se, é o abismo, caímos no Inferno!
Arde! Queima! Aaah!
(Silêncio)
O Coro (em uníssono, rindo prazenteiro, voz de trovão)
Que foi, ó trémulos?
Belo susto, hã?
Sou ou não sou o senhor destas paragens?
Todo homem, tudo em grande!
Olhem-me para estes músculos, esta beleza!
(Ri-se)
O Coro (ária)
Pai, porque nos assustas?
Porque nos fazes tremer?
(solo de barítono)
Tenho a paixão do trovão
Nem eu me posso deter
(coro)
Não te basta ser rei indubitável
Hás-de tornar nossa casa
Inabitável
(negro)
Segunda Estação
(Na segunda estação, o palco tem mais profundidade; o conjunto do cenário aparece encostado `a esquerda; compõe-se de uma imensa moldura em acrílico, iluminada do fundo do palco; do lado de lá da moldura, vê-se um monte de milho, provavelmente contido num recipiente transparente; a Mulher aparece encostada na "moldura", à direita; caminha até ao alqueire de Milho -que pode ser, entretanto, um objecto musical - ; a Mulher ajoelha diante do Milho e enterra nele a mão à procura da Moeda)
A Mulher
Quis cair
Quis cair de ravina
No momento
Cair em sua graça
Dueto Mulher-Milho
O Milho
Não oiças o que digo
O que digo é devoluto
Amontoado e pobre
Ouve, antes, a minha música
Sente a meiguice do meu tacto
(A Mulher afasta-se para a direita, para o escuro; quando começa a ária da Moeda, ela aproxima-se de novo, devagar, a escutá-la e novamente procura no Milho)
A Moeda
Princesa, encontra-me no milho
No seio dos bagos e de minhas irmãs
Quero ser tua, a tua favorita
A moeda de ouro guardada na arca
Para os dias fatais
Do exílio
( O Palco obscurece, deixando apenas a moldura iluminada; a Mulher está no escuro; o Coro aparece de novo na Galeria superior direita)
Recitativo
Entra o Coro
O coro (voz de trovão, uníssono)
Quem canta dentro de mim?
Que parte do meu corpo ousa
Importunar-me o sono?
És tu, barriga?
(Voz solo,tenor, dentro do Coro)
Sou Empédocles, o sábio de Agrigento
O Coro
E que sabes tu?
Voz solo, tenor
Chamaste-me e eu acordei
Vi um clarão...
O Coro
E porque me incomodas?
Agora, no fim de milénios?
Voz solo
Tenho saudade, garanto
Da minha sandália de bronze
A que precipitadamente
Abandonei à boca da cratera
O Coro
De bronze, dizes tu?
Um metal tão perfeito,
quase divino...
saboroso...
Voz solo
Estás a vê-la?
O Coro
Ah, que boa, que boa
Que bela sandália de bronze...
Seja ela do filósofo ou do arconte...
Vou-me a ela...vou-me a ela...
Voz solo (ária)
O sangue em volta dos corações
Dos homens é o seu pensamento
E sem o par da sandália não penso
O par do Amor e da Discórdia
Lamento não poder
Lamento não poder pensar
Quando o Ódio tolhe e termina
O tempo dedicado do Amor
O Coro (voz de trovão, em uníssono)
Ooh, comi depressa demais...
Sinto-me mal...sinto-me tão mal...
Acho que vou vomitar!
O Coro (vozes soltas)
Isso foi ar que engoliu ...
Foi ar que engoliu ao jantar!
O Coro (uníssono)
Ooh, ooh, estou mal...
Estou mal...
Voz solo(voz de Empédocles)
Subir no veio do fogo
Para rever Agrigento e o meu povo
(negro)
Terceira Estação
(O palco apresenta agora a sua máxima amplitude e profundidade; a Mulher dorme, deitada sobre os picos ou "ameias" do castelo; o Coro aparece na galeria superior direita, pouco iluminada; canta quase num sussurro)
Coro
Caminhou, caíu
Caminhou, caíu a dormir
(A Mulher tosse no sono)
Na última hora do dia
Levantou-se um castelo de lua
(A Mulher tosse)
E em vez de entrar confiante