|
Treze Contos de Sobressalto, contos, Bertrand, 1981; Dom Quixote, 1995
Ao dar à estampa este volume de treze contos cuidadosamente seleccionados, a Livraria Bertrand Propõe à atenção dos seus leitores um nome altamente prometedor no âmbito das coisas literárias. Poderíamos ir mais longe e dizer que, mais do que uma promessa, estamos perante uma realidade da literatura portuguesa. De facto, Luísa Costa Gomes é uma escritora inquietante e precisa, senhora de um estilo extremamente invulgar em livros de estreia, do qual sobressai uma escolha rigorosa do vocábulo e o enlace particularmente fascinante das várias áreas do texto. Sendo o conto um género de tratamento muito específico, que exige grande capacidade de expressão e de economia, para lá da sedução da escrita, não temos dúvidas em apontar Luísa Costa Gomes e os seus 13 Contos de Sobressalto como um acontecimento literário de primeiro plano e a certeza de que desponta com ela mais um nome para o cada vez menos ortodoxo panorama das letras portuguesas.
Índice
Sonho duma noite do Ladrão
Ordálio Necrofilia Excelência Triângulo Os Arquimimos vão ao Baile |
Uma noite na Ópera
Cocktail Molotov Frankenstein Revisitado Os dois relógios Lépido Scornpower Suite Fenomenologia dum Espírito |
leia o conto Ordálio
Às três da tarde não devia haver ciclistas. Destes que decidem atravessar sem aviso prévio - ia a beber duma garrafinha de água que voou cinquenta metros.
Pela esquerda deslizam chapéus e cotovelos cujos olhos evita, das suas molduras de vidro; imóvel, calcula que não podem ver o corpo - a bicicleta caída mais à frente, o volante encaracolado, a roda vã girando no ar... e como o corpo sangra. Do chão fixa mansamente o farol aceso.
As mãos tremem e o depósito da gasolina está meio vazio; o tapete tem manchas de lama seca, a maçaneta perdeu a cabeça e o só problema, o que conta, é que não há um mapa no porta-luvas, na pasta.
A única certeza - é uma auto-estrada. Que auto-estrada não sabe dizer, não sabe por onde começar a pensar. Vítima de sinalização derisória. Um cartaz diz obras a cem metros (não existem), outro - perigo - de repente é uma auto-estrada lânguida comendo as suas vacas pelas bermas e no verde - começar por um ponto de referência nebuloso, paira a luminosa seta vermelha cris aponta talvez para cima, estertor e morte do sistema, orienticida.
Esconder o corpo.
Aproximam-se mais chapéus e bandeiras, há uma festa num sítio algures - enumera os mais prováveis -, a minimaratona do norte, a gincana de trangalhadanças, a ele homem de festas o que lhe foi acontecer.
O que me foi acontecer, um cartaz diz-me Dortmund outro Marlboro, um pouco roído, um deles pelo menos devia ser azul, mas são ambos escritos à mão, provisórios, propositados, um depois do outro em pouco espaço, eu sei o que é Dortmund, é onde eu vivo, talvez esteja a voltar para lá - saio do nevoeiro. Suponho que há uma relação entre todas estas coisas, mas foi-se-me a alma de abacista e o fôlego nas contas, cem metros, mais cem metros, um sinal mais um sinal, dois sinais a cem metros igual a saber onde começou o nevoeiro e onde acabou, talvez os cálculos me levem para longe de Dortmund. Suporto com brandura o ordálio - o nevoeiro, a auto-estrada, o acidente.
Orientar-se, é a partir dum ponto dado, ordenar tudo - e pensou ter arrumado a questão do mapa. Mas que ponto é esse, o ponto em que estou, à minha frente, atrás de mim, o amolgão no farol à esquerda, o corpo à minha direita, definido o sistema das coisas neste momento - como ordenar o lugar para onde vou se o desconheço, se desconheço o próprio lugar onde mato um homem? É preciso antes conhecer tudo.
Deixar aí a bicicleta.
O homem volta a sangrar, mancha, andara vinte quilómetros - o pisca-pisca ficou preso, teria de voltar indefinidamente à direita, criar um círculo e percorrê-lo preso ao mesmo centro, um pcadeiro de areia movediça. Enterrá-lo, puxar da pá e enterrá-lo.
Se o ponto de referência se move, tudo viaja com ele; se eu vou, tudo irá comigo, o mostrador, o corpo, a mala, nas posições respectivas, a planície perder-se-á, aparecem montes ao fundo, chaminés e outra planície impondo-se muito branca, não saberei se é a mesma, compreendo unicamente o morto que posso dizer está à minha direita mas só enquanto eu estou à sua esquerda - tudo isto conheço com rigor. E mais nada, o resto é sorvido, como a bicicleta, a minha casa, ontem, na mesma espiral e à frente os aros são tão largos que os não posso ainda definir.
Viajar para Dortmund.
Pode uma paisagem de chaminés constituir um ponto de referência? Depois outra vez a planície indistinguível, e terei voltado ao mesmo lugar, à mesma espécie de lugar - porque sei o que é esquerda e direita embora não saiba como possa sabê-lo, talvez que ao considerar a mão se dê um sentimento próprio, quase um enjoo que lhe diz respeito por inteiro - e que o mecanismo do pensamento acerado se ponha em marcha como um relógio, em direcção ao oriente; a partir daqui cortam-se etapas, o norte e o sul põem-se nos seus lugares e eu posso aí chegar porque suponho primeiro que lá estão; construo ponto a ponto um mapa, daqui para ali com o corpo às costas a pouco e pouco rígido, atento às flutuações das vacas e às alternâncias das chaminés como se do alto dum miradouro recenseasse coordenadas.
e o que diz ele, o que ele diz, está morto, deixam-me só sinais que me desnorteiam.
eu suponho que a estrada continua, à medida que vou continuando, imagino que termine à medida que vou continuando e ela não termina; há uma cidade no fim desta auto--estrada (?), não sei qual nem onde exactamente; para saber onde fica não posso dizer no fim desta auto-estrada unicamente, mas no meio, no princípio, no canto de outras cidades. Com o mapa, simplifica-se. É só olhar de cima e tem-se o país todo e as relações inextricáveis, segue-se com o dedo a estrada até à passagem de nível, às bifurcações, contam-se quilómetros às centenas, calcula-se e economiza-se, porque já sabemos donde vimos e onde estamos a chegar, e qual é a ligação entre esses dois lugares no caldo do lugar geral, que os torna, por assim dizer, lugares.
O casal no carro vermelho olha-o suspeitoso. A mulher levanta os óculos para os deixar cair sobre a cana do nariz. Regista um tremor, espalma as mãos nas pernas para as limpar e quando o carro desaparece na espiral, abre a porta, deita fora o corpo e está purificado.
Não saber onde estou.
A não ser que me chegue a gasolina.
Pela esquerda deslizam chapéus e cotovelos cujos olhos evita, das suas molduras de vidro; imóvel, calcula que não podem ver o corpo - a bicicleta caída mais à frente, o volante encaracolado, a roda vã girando no ar... e como o corpo sangra. Do chão fixa mansamente o farol aceso.
As mãos tremem e o depósito da gasolina está meio vazio; o tapete tem manchas de lama seca, a maçaneta perdeu a cabeça e o só problema, o que conta, é que não há um mapa no porta-luvas, na pasta.
A única certeza - é uma auto-estrada. Que auto-estrada não sabe dizer, não sabe por onde começar a pensar. Vítima de sinalização derisória. Um cartaz diz obras a cem metros (não existem), outro - perigo - de repente é uma auto-estrada lânguida comendo as suas vacas pelas bermas e no verde - começar por um ponto de referência nebuloso, paira a luminosa seta vermelha cris aponta talvez para cima, estertor e morte do sistema, orienticida.
Esconder o corpo.
Aproximam-se mais chapéus e bandeiras, há uma festa num sítio algures - enumera os mais prováveis -, a minimaratona do norte, a gincana de trangalhadanças, a ele homem de festas o que lhe foi acontecer.
O que me foi acontecer, um cartaz diz-me Dortmund outro Marlboro, um pouco roído, um deles pelo menos devia ser azul, mas são ambos escritos à mão, provisórios, propositados, um depois do outro em pouco espaço, eu sei o que é Dortmund, é onde eu vivo, talvez esteja a voltar para lá - saio do nevoeiro. Suponho que há uma relação entre todas estas coisas, mas foi-se-me a alma de abacista e o fôlego nas contas, cem metros, mais cem metros, um sinal mais um sinal, dois sinais a cem metros igual a saber onde começou o nevoeiro e onde acabou, talvez os cálculos me levem para longe de Dortmund. Suporto com brandura o ordálio - o nevoeiro, a auto-estrada, o acidente.
Orientar-se, é a partir dum ponto dado, ordenar tudo - e pensou ter arrumado a questão do mapa. Mas que ponto é esse, o ponto em que estou, à minha frente, atrás de mim, o amolgão no farol à esquerda, o corpo à minha direita, definido o sistema das coisas neste momento - como ordenar o lugar para onde vou se o desconheço, se desconheço o próprio lugar onde mato um homem? É preciso antes conhecer tudo.
Deixar aí a bicicleta.
O homem volta a sangrar, mancha, andara vinte quilómetros - o pisca-pisca ficou preso, teria de voltar indefinidamente à direita, criar um círculo e percorrê-lo preso ao mesmo centro, um pcadeiro de areia movediça. Enterrá-lo, puxar da pá e enterrá-lo.
Se o ponto de referência se move, tudo viaja com ele; se eu vou, tudo irá comigo, o mostrador, o corpo, a mala, nas posições respectivas, a planície perder-se-á, aparecem montes ao fundo, chaminés e outra planície impondo-se muito branca, não saberei se é a mesma, compreendo unicamente o morto que posso dizer está à minha direita mas só enquanto eu estou à sua esquerda - tudo isto conheço com rigor. E mais nada, o resto é sorvido, como a bicicleta, a minha casa, ontem, na mesma espiral e à frente os aros são tão largos que os não posso ainda definir.
Viajar para Dortmund.
Pode uma paisagem de chaminés constituir um ponto de referência? Depois outra vez a planície indistinguível, e terei voltado ao mesmo lugar, à mesma espécie de lugar - porque sei o que é esquerda e direita embora não saiba como possa sabê-lo, talvez que ao considerar a mão se dê um sentimento próprio, quase um enjoo que lhe diz respeito por inteiro - e que o mecanismo do pensamento acerado se ponha em marcha como um relógio, em direcção ao oriente; a partir daqui cortam-se etapas, o norte e o sul põem-se nos seus lugares e eu posso aí chegar porque suponho primeiro que lá estão; construo ponto a ponto um mapa, daqui para ali com o corpo às costas a pouco e pouco rígido, atento às flutuações das vacas e às alternâncias das chaminés como se do alto dum miradouro recenseasse coordenadas.
e o que diz ele, o que ele diz, está morto, deixam-me só sinais que me desnorteiam.
eu suponho que a estrada continua, à medida que vou continuando, imagino que termine à medida que vou continuando e ela não termina; há uma cidade no fim desta auto--estrada (?), não sei qual nem onde exactamente; para saber onde fica não posso dizer no fim desta auto-estrada unicamente, mas no meio, no princípio, no canto de outras cidades. Com o mapa, simplifica-se. É só olhar de cima e tem-se o país todo e as relações inextricáveis, segue-se com o dedo a estrada até à passagem de nível, às bifurcações, contam-se quilómetros às centenas, calcula-se e economiza-se, porque já sabemos donde vimos e onde estamos a chegar, e qual é a ligação entre esses dois lugares no caldo do lugar geral, que os torna, por assim dizer, lugares.
O casal no carro vermelho olha-o suspeitoso. A mulher levanta os óculos para os deixar cair sobre a cana do nariz. Regista um tremor, espalma as mãos nas pernas para as limpar e quando o carro desaparece na espiral, abre a porta, deita fora o corpo e está purificado.
Não saber onde estou.
A não ser que me chegue a gasolina.
crítica
"O leitor apercebe-se, progressivamente rendido, que há nesta sequência de textos uma experiência de linguagem inovadora e desconcertante."
Eduardo Prado Coelho
"A originalidade das narrativas de Luísa Costa Gomes incomoda. Tal como nessa oficina se foge aos estereótipos das personagens, a autora escapa aos parentescos literários."
Jorge Listopad
"As treze histórias de violência chegam-nos, assim, como o testemunho revertido (...) e sempre lúcido (manifestando-se a lucidez no ritmo calmo e seguro das narrativas) de uma visão desencantada, mordaz, mesmo cruel de um "mundo" que não é (...) nem "reiteração do exterior" nem mera abstracção".
Maria Lúcia Lepecki
Eduardo Prado Coelho
"A originalidade das narrativas de Luísa Costa Gomes incomoda. Tal como nessa oficina se foge aos estereótipos das personagens, a autora escapa aos parentescos literários."
Jorge Listopad
"As treze histórias de violência chegam-nos, assim, como o testemunho revertido (...) e sempre lúcido (manifestando-se a lucidez no ritmo calmo e seguro das narrativas) de uma visão desencantada, mordaz, mesmo cruel de um "mundo" que não é (...) nem "reiteração do exterior" nem mera abstracção".
Maria Lúcia Lepecki