Um Mundo de Estalajadeiros
Um amigo doutorado em História de Arte agora deu em estalajadeiro, como ele próprio diz. Aluga o seu apartamento e vive ao lado. Nos intervalos das lides, estuda e escreve o seu historiar artístico; depois lava roupa, faz camas, limpa as casas de banho, deita fora o que foi destruído pelo visitante e recompõe a figura para novo aluguer. Tem o desafogo económico para perseguir as actividades do espírito, todas elas não lucrativas. Outra, professora de Matemática e filósofa em tempos livres, saiu da casa própria, à Graça, fez dela airbnb e foi viver não para muito longe. Continua na zona, contratou uma agência que a troco de comissão faz tudo o que ela não quiser fazer. Isto é gente que teve a sorte de viver nas zonas velhas ou nobres das cidades. Mas grande parte destes estalajadeiros vive agora em periferias que pululam de lisboetas desalojados, de coimbrões, de portuenses exilados nas ruínas das segundas casas, ou nas quintas derrocadas das famílias, a sonhar renovações, recuperações e alojamentos típicos e de charme. Ou seja, em suma, novos alugueres. Portugal é agora um imenso Algarve. É bem bom que esta extraordinária fase da História Humana se case com mais antiga ambição portuguesa – foi, é, e será, viver dos rendimentos. É a falta de empregos, dir-me-ão. É a crise. Qual quê. Está-nos na massa do sangue. O sonho do português é a reforma, é viver sem trabalhar, ainda que o faça só depois de quarenta e cinco anos de trabalho. É o equivalente a ser rico, mas com tempo de serviço. Chamem-nos parvos, a ver se a gente se rala.
Nesta altura da conversa há sempre quem chame a atenção para os aspectos positivos do novo paradigma mundial da hotelaria - todos a viver em casa de todos. A vantagem óbvia é a recuperação das ruínas, o olhar para o património familiar do ponto de vista da exploração económica. A recuperação de ruínas à força da ganância. E nas casas próprias, o que foi investimento vivido no espaço que habitávamos, passou a ser desinvestido da sua história privada e familiar para ser abordado do ponto de vista do produto, da commodity. Ao mesmo tempo que o espaço é desinvestido, separa-nos da nossa casa e passamos a vê-la como algo que pode ser cobiçado por outros (não por “ladrões”, mas por “turistas”, que em vez de tirar, dão) e assim nos desligamos da nossa vida anterior e da nossa história. Assim que percebemos que as nossas salas interessam a outrem, passam a ter outro valor para nós. Queremos alugar, queremos vender, queremos alienar, queremos rentabilizar. Mas não a qualquer um nem por qualquer preço. Trata-se de um valor, por um lado, inquantificável, porque vem do hábito e do amor que lhe temos, e por outro, inteiramente real. E como, de certa maneira, essas mesmas coisas que os outros cobiçam, para nós, valem simbolicamente, acabam a valer uma cifra abstracta, cem mil, quatrocentos mil, meio milhão, é igual. Daí o extraordinário paradoxo de uma especulação imobiliária absurda, determinada pela cobiça do estrangeiro, a comissão do agente imobiliário e a mirífica fantasia do proprietário.
O airbnb é uma operação mundial assaz perversa, uma multinacional que opera no ramo do “espaço próximo e familiar”. O derramar da hotelaria por todo o parque habitacional dos residentes é algo de novo na história do mundo. Funciona porque o tempo histórico se foi constituindo para o receber em glória. Muitos factores se puseram de acordo para que o airbnb se pudesse estabelecer como o paradigma da hotelaria contemporânea. Em qualquer local, por mais recôndito, do globo, se pernoita com o indígena, na cama em que ele dorme, se come na mesa dele, se usa a sua roupa de banho. Isto que seria visto como invasão da privacidade, é hoje a regra de um mundo em que a privacidade não existe e não se recomenda. Quem teve de pesquisar sítios para ficar no airbnb sentiu com certeza essa vertigem de encontrar na Sicília, no Vietname ou no Hawaii, uma e a mesma casa, o catálogo Ikea, o catálogo Leroy-Merlin, as mesmas camas, as mesmas mesinhas de cabeceira, o mesmo espelho e uma ideia sui generis da decoração de interiores. Uma ideia de flores de plástico, pedras em jarras e tigelas, almofadas coloridas, eminentemente laváveis. O mais adorável, na minha perspectiva, são os toques pessoais que o proprietário é humanamente incapaz de não aplicar, toques pessoais mas não muito pessoais. Mas nada disto tem valor, nem lhe podemos ter amor, porque se destina a ser usado por bárbaros, destina-se a ser sujo ou destruído. É que o turista quer o típico, mas não excessivamente típico. Quer sentir-se sempre em casa, encontrar os mesmos sofás, os mesmos talheres. O mesmo, mas diferente. Diferente, mas igual. Há qualquer coisa de errado nestes alugueres, que diz venham cá, sou um super-hospedeiro, simpático como poucos, venham cá seus selvagens dormir na minha cama, grandes gordos alemães, grandes gordos americanos, seus porcos! Alugar a casa de onde a nossa própria ganância nos desalojou acaba por resultar nalgum rancor contra o turista. O modelo da casa de hóspedes, da pensão em que Dona Etelvina recebe e se senta à mesa com os convivas, esse, é velho como o mundo. Os naperons dela fazem parte do pacote e não são para desalojar. Nas classes altas e desfavorecidas, nos anos oitenta, a necessidade de restauração dos solares tomou a forma do turismo de habitação. O airbnb é o turismo de habitação das massas trabalhadoras. E sair da casa própria, transportar os tarecos para outro lado, olhar para o sítio em que vivíamos na perspectiva de quem vem apenas de passagem a fingir que é nosso parente, isso é novo. E as consequências ainda estão por avaliar.