Uma estátua
Cada cidadão português maior e vacinado devia ser obrigado por lei a passar uma semana como professor numa escola secundária. Chamem-lhe serviço patriótico, embora a expressão pareça antiquada. E não era passar uma semana de férias, a ver afundar navios. Era uma semana com iniciativas, empenhada, entusiasmada, com projectos inovadores e experiências pedagógicas cheias de futuro. Ao fim de uma semana e depois de bater com a cabeça em todas as paredes da escola sem excepção, e isto assumindo que se tratava de uma escola com paredes , o que não é evidente, o cidadão era cuspido pelo portão e levado em braços ao asilo.
Entrara na escola, suponho, ainda vítima de conceitos antigos e de mistificações. Levava no coração a imagem da escolinha muito branca e compostinha, do convívio jovial entre corpos docente e discente, todos animados do desejo de saber e de viver. Levava no espírito aquela imagem fascista do aluno curioso, atento, impaciente por aprender, corado, de olhos brilhantes (o tal das unhas cortadas rentes e muito limpas do nosso livro da segunda classe). Levava a ideia absurda do companheirismo e entreajuda entre oficiais do mesmo ofício, grandes mestres cuja vocação exemplar e autoridade natural guiavam pela vida fora hordas e hordas de discípulos.
No final dessa semana de provações, o cidadão aguentara as intrigas dentro da escola, a rivalidade entre professores e a imobilidade pessimista das "estruturas", para não falar da indolência, indiferença, agressividade e má criação generalizadas; percebeu que por cada aluno do 10º ano que era capaz de escrever uma frase completa (sujeito e predicado, o complemento directo é opcional) havia uns dez que não só não sabiam como tinham raiva a quem sabia. Esta raiva a quem sabe deixa extremamente perplexo o cidadão, que se põe, pelo segundo dia de aulas, a inventar teorias gerais que a expliquem. Ao terceiro dia, no entanto, já quer é fugir da escola, ao quarto dia convence-se de que não pode desistir, ao quinto dia luta e resiste e esbraceja e impõe-se . Vermelho de cólera e ressentimento, ouvimo-lo guinchar ameaças e profecias muito negativas quanto ao futuro dos alunos: "Se a escola não vos ensina, se os pais não vos educam, meus caros, a vida se encarregará de vos formar!". E fica suspensa na sala a imagem do arrumador de automóveis, personagem aliás respeitável e já tradicional do nosso folclore urbano. Arrumador de automóveis é profissão, homessa! O nosso professor leva consigo para casa esta reflexão, ao sexto dia deprime e lê o jornal desportivo em plena aula enquanto voam pela sala instrumentos cortantes e discordantes - e ao sétimo dia descansa, para sempre. É um descanso cheio de indiferença e de azedume, suspiros e encolher de ombros. Mas é um descanso, apesar de tudo. Esteve na escola, tentou, falhou. Fugiu da escola. Fez o que todos querem fazer - professores, alunos, auxiliares- fugir da escola. (O Ministério aliás, adiantou-se a passo largo - é famoso o passo largo do Ministério da Educação - e começou a fechar escolas. As razões são as melhores, as mais adequadas à época, ou seja, razões pedagógicas: estas escolas não rendem, são "inviáveis". Não fazem desdobramento, não têm trinta e tal alunos por turma, como é que podem ser viáveis?).
É por isso que este texto vai em forma de estátua. Primeiro, estátua a todos os professores que, por esse país fora, ainda lutam e esbracejam e resistem. E aos outros, que já estão em casa com depressões, esgotamentos nervosos, ou simplesmente, a curar bofetadas e facadas. Mas faz sentido uma estátua ao professor sem a figura do aluno? Não me parece. Não sei muito bem como será a estátua, se o aluno às cavalitas do professor ou o professor às cavalitas do aluno, porque a esta fábula só falta o burro para ser "o velho, o rapaz e o burro". E quem é que faz de burro? O Ministério? Uma outra qualquer entidade abstracta? A "sociedade"? Os "tempos que correm"? Vá-se lá saber.
Entrara na escola, suponho, ainda vítima de conceitos antigos e de mistificações. Levava no coração a imagem da escolinha muito branca e compostinha, do convívio jovial entre corpos docente e discente, todos animados do desejo de saber e de viver. Levava no espírito aquela imagem fascista do aluno curioso, atento, impaciente por aprender, corado, de olhos brilhantes (o tal das unhas cortadas rentes e muito limpas do nosso livro da segunda classe). Levava a ideia absurda do companheirismo e entreajuda entre oficiais do mesmo ofício, grandes mestres cuja vocação exemplar e autoridade natural guiavam pela vida fora hordas e hordas de discípulos.
No final dessa semana de provações, o cidadão aguentara as intrigas dentro da escola, a rivalidade entre professores e a imobilidade pessimista das "estruturas", para não falar da indolência, indiferença, agressividade e má criação generalizadas; percebeu que por cada aluno do 10º ano que era capaz de escrever uma frase completa (sujeito e predicado, o complemento directo é opcional) havia uns dez que não só não sabiam como tinham raiva a quem sabia. Esta raiva a quem sabe deixa extremamente perplexo o cidadão, que se põe, pelo segundo dia de aulas, a inventar teorias gerais que a expliquem. Ao terceiro dia, no entanto, já quer é fugir da escola, ao quarto dia convence-se de que não pode desistir, ao quinto dia luta e resiste e esbraceja e impõe-se . Vermelho de cólera e ressentimento, ouvimo-lo guinchar ameaças e profecias muito negativas quanto ao futuro dos alunos: "Se a escola não vos ensina, se os pais não vos educam, meus caros, a vida se encarregará de vos formar!". E fica suspensa na sala a imagem do arrumador de automóveis, personagem aliás respeitável e já tradicional do nosso folclore urbano. Arrumador de automóveis é profissão, homessa! O nosso professor leva consigo para casa esta reflexão, ao sexto dia deprime e lê o jornal desportivo em plena aula enquanto voam pela sala instrumentos cortantes e discordantes - e ao sétimo dia descansa, para sempre. É um descanso cheio de indiferença e de azedume, suspiros e encolher de ombros. Mas é um descanso, apesar de tudo. Esteve na escola, tentou, falhou. Fugiu da escola. Fez o que todos querem fazer - professores, alunos, auxiliares- fugir da escola. (O Ministério aliás, adiantou-se a passo largo - é famoso o passo largo do Ministério da Educação - e começou a fechar escolas. As razões são as melhores, as mais adequadas à época, ou seja, razões pedagógicas: estas escolas não rendem, são "inviáveis". Não fazem desdobramento, não têm trinta e tal alunos por turma, como é que podem ser viáveis?).
É por isso que este texto vai em forma de estátua. Primeiro, estátua a todos os professores que, por esse país fora, ainda lutam e esbracejam e resistem. E aos outros, que já estão em casa com depressões, esgotamentos nervosos, ou simplesmente, a curar bofetadas e facadas. Mas faz sentido uma estátua ao professor sem a figura do aluno? Não me parece. Não sei muito bem como será a estátua, se o aluno às cavalitas do professor ou o professor às cavalitas do aluno, porque a esta fábula só falta o burro para ser "o velho, o rapaz e o burro". E quem é que faz de burro? O Ministério? Uma outra qualquer entidade abstracta? A "sociedade"? Os "tempos que correm"? Vá-se lá saber.