Cláudio e Constantino, romance, Dom Quixote, 2014
Prémio .dst Literatura
Cláudio e Constantino é uma novela rústica em paradoxos – tem família em Voltaire e na Condessa de Ségur, mas também em Sterne, em Proust, na tradição romântica, nas Mil e Uma Noites…
É um texto que usa um dispositivo ficcional paródico e humorístico para apresentar e brincar com alguns dos paradoxos clássicos da História da Filosofia. Dito assim, parece um romance filosófico, mas não… É sobretudo uma ficção que propõe um universo utópico, afectuoso e leve onde dois irmãos se deparam a cada momento com as grandes e pequenas questões que o conhecimento do mundo permanentemente lhes coloca.
Ouça o primeiro capítulo.
Prémio .dst Literatura
Cláudio e Constantino é uma novela rústica em paradoxos – tem família em Voltaire e na Condessa de Ségur, mas também em Sterne, em Proust, na tradição romântica, nas Mil e Uma Noites…
É um texto que usa um dispositivo ficcional paródico e humorístico para apresentar e brincar com alguns dos paradoxos clássicos da História da Filosofia. Dito assim, parece um romance filosófico, mas não… É sobretudo uma ficção que propõe um universo utópico, afectuoso e leve onde dois irmãos se deparam a cada momento com as grandes e pequenas questões que o conhecimento do mundo permanentemente lhes coloca.
Ouça o primeiro capítulo.
Capítulo XXXIV |
A ilha que não existe
O Constantino ia tirar do bolso a lista das questões que tinha anotado ao longo do tempo, mas o Pai abraçou-o e disse, apressado:
- Não posso, eu agora não posso. Venho só tomar um duche e fazer a barba e sigo viagem. Anda cá, Cláudio.
O Cláudio abraçou o Pai. Ouviu a voz da Mãe, divertida, sem ponta de censura.
- E não ficas sequer para jantar? – disse, a olhar para o Pai como se o visse pela primeira vez.
- Tenho de ir já, apostei nisto a minha reputação.
Ia de novo procurar a Ilha que Não Existe. E como não a encontrava, sentia-se na obrigação de continuar à procura, até confirmar que, de facto, não existia. Mas só conseguiria provar que ela não existia no momento em que definitivamente a não encontrasse. E como ainda não a encontrara, seguia a demanda.
- Bebe qualquer coisa ao menos. Um vermute – disse a Mãe, sedutora, rindo. - Não nos deixes tão depressa.
- Um homem tem de fazer o que um homem tem de fazer…- disse ele e pegando no Bebé, atirou-o ao ar e ele fartou-se de rir – “já dobra o riso!”, disse a Mãe, e retirou-o aos excessos do Pai, entregou-o à Ama, e entraram ambos de mãos dadas na Biblioteca. O Pai olhou para os rapazes, sorriu de triunfo e fechou delicadamente a porta.
Constantino puxou o Cláudio pela manga e ficaram à escuta. Ouviam tilintar copos, a voz da Mãe harmoniosamente enlaçada na do Pai, como num dueto. Depois só ele:
- Veio ontem pelo telégrafo a notícia de que o Professor fez uma nova comunicação à Sociedade de Geografia. Deu outras coordenadas para a ilha. Diz que o espírito de Deus ama a geometria e a perfeição e que dedutivamente é imperativo que a ilha exista em “certo ponto”, exactamente a meio caminho entre dois continentes de proporções semelhantes. Deus ama a simetria, é o que ele diz. E eu é que fico com este frete de provar que ele está errado!
- Mas quantas vezes o provaste já, tesouro?
- De cada vez que ele especula e imagina as verdadeiras coordenadas da ilha, e eu provo que ela não existe, o Professor aceita que realmente ela poderá não existir naquele ponto, mas que existe pela certa noutro lugar. E não põe em causa o amor de Deus à perfeição e à simetria, apenas admite que a sua interpretação humana estava errada e…
- …que errar é humano. Já ouvi isso tantas vezes. Se, de facto, ele afirma que a ilha existe, então ele que a procure!
-Ah, as mulheres – disse o Pai, sentando-se ao lado da mulher e puxando-a toda para ele – se não existissem, teriam de ser inventadas!
- Como vais tu finalmente provar que a ilha não existe, meu amor?
- Só não encontrando! A existência da ilha é um postulado, é uma ideia filosófica, teológica, geológica, geométrica! Quando chego ao ponto onde ela devia estar, mostro e provo que ela não está. Mas é o próprio facto de não estar que me faz continuar à procura!
Com grande sentido prático, a Mãe disse:
- Se existe noutro sítio, não é a mesma ilha.
- É uma ilha cuja não existência só consigo provar quando a encontrar.
- Mas nunca a encontrarás!
- Pois se te digo que não existe, como hei-de encontrá-la?
E ainda a Escolástica não tinha chamado para jantar, já ele saía porta fora, açodado, atarefado, na confusão dos malões e do equipamento guerreiro. O Professor convencera-se de que na Ilha que Não Existe vive um povo perigosíssimo, aparentado aos Pigmeus da Terra Inabitada. E o Pai provê-se de lanças e espadas e pistolas e alabardas, sem esquecer a catapulta, o canhão de dois bicos, os mísseis terra a terra e a anti-aérea … e sobe de um salto atlético para a carruagem depois de tropeçar nas armas e nas bagagens, onde se incluem os cofres de jóias falsas, arcas de missangas cintilantes e dobrões amarelos, para o caso de os nativos poderem ser seduzidos pelos brilhos; despede-se com um beijo de raspão, faz uma saudação heróica na direcção dos filhos e lá vai ele a caminho de lado nenhum.
Quando o vê desaparecer pelo portão de ferro, o Constantino volta-lhe as costas e tem um ataque de riso. Não consegue parar. As lágrimas correm em fila pela cara e ensopam o colarinho da camisa. A família, de roda dele, olha-o num sorriso triste, e como ele não pára, vai abandonando o terreno, conformada, já que a única pessoa que poderia acalmá-lo está no outro extremo da casa com o Bebé. O Cláudio ali fica, calado, a passar-lhe a mão nas costas. E ele acaba por abrandar, mas só pára de espanto ao ouvir uma voz estranha dizer:
- Espero não ter chegado tarde demais. – Era Orlando Matamori, o novo preceptor, exactamente igual ao retrato. Atrás dele o criado, na penumbra, pousava duas grandes malas de couro.
O Constantino ia tirar do bolso a lista das questões que tinha anotado ao longo do tempo, mas o Pai abraçou-o e disse, apressado:
- Não posso, eu agora não posso. Venho só tomar um duche e fazer a barba e sigo viagem. Anda cá, Cláudio.
O Cláudio abraçou o Pai. Ouviu a voz da Mãe, divertida, sem ponta de censura.
- E não ficas sequer para jantar? – disse, a olhar para o Pai como se o visse pela primeira vez.
- Tenho de ir já, apostei nisto a minha reputação.
Ia de novo procurar a Ilha que Não Existe. E como não a encontrava, sentia-se na obrigação de continuar à procura, até confirmar que, de facto, não existia. Mas só conseguiria provar que ela não existia no momento em que definitivamente a não encontrasse. E como ainda não a encontrara, seguia a demanda.
- Bebe qualquer coisa ao menos. Um vermute – disse a Mãe, sedutora, rindo. - Não nos deixes tão depressa.
- Um homem tem de fazer o que um homem tem de fazer…- disse ele e pegando no Bebé, atirou-o ao ar e ele fartou-se de rir – “já dobra o riso!”, disse a Mãe, e retirou-o aos excessos do Pai, entregou-o à Ama, e entraram ambos de mãos dadas na Biblioteca. O Pai olhou para os rapazes, sorriu de triunfo e fechou delicadamente a porta.
Constantino puxou o Cláudio pela manga e ficaram à escuta. Ouviam tilintar copos, a voz da Mãe harmoniosamente enlaçada na do Pai, como num dueto. Depois só ele:
- Veio ontem pelo telégrafo a notícia de que o Professor fez uma nova comunicação à Sociedade de Geografia. Deu outras coordenadas para a ilha. Diz que o espírito de Deus ama a geometria e a perfeição e que dedutivamente é imperativo que a ilha exista em “certo ponto”, exactamente a meio caminho entre dois continentes de proporções semelhantes. Deus ama a simetria, é o que ele diz. E eu é que fico com este frete de provar que ele está errado!
- Mas quantas vezes o provaste já, tesouro?
- De cada vez que ele especula e imagina as verdadeiras coordenadas da ilha, e eu provo que ela não existe, o Professor aceita que realmente ela poderá não existir naquele ponto, mas que existe pela certa noutro lugar. E não põe em causa o amor de Deus à perfeição e à simetria, apenas admite que a sua interpretação humana estava errada e…
- …que errar é humano. Já ouvi isso tantas vezes. Se, de facto, ele afirma que a ilha existe, então ele que a procure!
-Ah, as mulheres – disse o Pai, sentando-se ao lado da mulher e puxando-a toda para ele – se não existissem, teriam de ser inventadas!
- Como vais tu finalmente provar que a ilha não existe, meu amor?
- Só não encontrando! A existência da ilha é um postulado, é uma ideia filosófica, teológica, geológica, geométrica! Quando chego ao ponto onde ela devia estar, mostro e provo que ela não está. Mas é o próprio facto de não estar que me faz continuar à procura!
Com grande sentido prático, a Mãe disse:
- Se existe noutro sítio, não é a mesma ilha.
- É uma ilha cuja não existência só consigo provar quando a encontrar.
- Mas nunca a encontrarás!
- Pois se te digo que não existe, como hei-de encontrá-la?
E ainda a Escolástica não tinha chamado para jantar, já ele saía porta fora, açodado, atarefado, na confusão dos malões e do equipamento guerreiro. O Professor convencera-se de que na Ilha que Não Existe vive um povo perigosíssimo, aparentado aos Pigmeus da Terra Inabitada. E o Pai provê-se de lanças e espadas e pistolas e alabardas, sem esquecer a catapulta, o canhão de dois bicos, os mísseis terra a terra e a anti-aérea … e sobe de um salto atlético para a carruagem depois de tropeçar nas armas e nas bagagens, onde se incluem os cofres de jóias falsas, arcas de missangas cintilantes e dobrões amarelos, para o caso de os nativos poderem ser seduzidos pelos brilhos; despede-se com um beijo de raspão, faz uma saudação heróica na direcção dos filhos e lá vai ele a caminho de lado nenhum.
Quando o vê desaparecer pelo portão de ferro, o Constantino volta-lhe as costas e tem um ataque de riso. Não consegue parar. As lágrimas correm em fila pela cara e ensopam o colarinho da camisa. A família, de roda dele, olha-o num sorriso triste, e como ele não pára, vai abandonando o terreno, conformada, já que a única pessoa que poderia acalmá-lo está no outro extremo da casa com o Bebé. O Cláudio ali fica, calado, a passar-lhe a mão nas costas. E ele acaba por abrandar, mas só pára de espanto ao ouvir uma voz estranha dizer:
- Espero não ter chegado tarde demais. – Era Orlando Matamori, o novo preceptor, exactamente igual ao retrato. Atrás dele o criado, na penumbra, pousava duas grandes malas de couro.
na imprensa
Luísa Costa Gomes: os mil e um paradoxos, in Jornal de Letras
Regresso Infinito, de Helena Vasconcelos, in Ípsilon, Público
Recensão de Alexandre Andrade, in Forma de Vida
Abrir o Livro, de Miguel Miranda, in RTP
Regresso Infinito, de Helena Vasconcelos, in Ípsilon, Público
Recensão de Alexandre Andrade, in Forma de Vida
Abrir o Livro, de Miguel Miranda, in RTP