
Ilusão (Ou o que Quiserem), romance, Dom Quixote, 2009
Prémio Fernando Namora (Estoril Sol)/ Prémio de Ficção do Pen Club Ex-Aequo
Jorge é uma espécie de actor que vive de expedientes (anúncios, dobragens, figuração), à espera da sua oportunidade; o grupo de teatro a que pertence não se entende sobre o próximo projecto. Quando a mulher, uma professora de Português profundamente deprimida, entra em furor pedagógico, abre espaço e põe em marcha uma série de acontecimentos que terão para Jorge a importância de uma única, ténue revelação. Esta é a história de uma separação, mas também de uma paixão obsessiva, de uma viagem patética, de um projecto que corre bem demais, e de outras peripécias. Ilusão (ou o que quiserem) é um romance satírico sobre um homem à procura da realidade, no meio de tantos, tantos fantasmas, vozes sem corpo, corpos sem voz, e da multidão de desconhecidos que faz parte da nossa vida de todos os dias.
Prémio Fernando Namora (Estoril Sol)/ Prémio de Ficção do Pen Club Ex-Aequo
Jorge é uma espécie de actor que vive de expedientes (anúncios, dobragens, figuração), à espera da sua oportunidade; o grupo de teatro a que pertence não se entende sobre o próximo projecto. Quando a mulher, uma professora de Português profundamente deprimida, entra em furor pedagógico, abre espaço e põe em marcha uma série de acontecimentos que terão para Jorge a importância de uma única, ténue revelação. Esta é a história de uma separação, mas também de uma paixão obsessiva, de uma viagem patética, de um projecto que corre bem demais, e de outras peripécias. Ilusão (ou o que quiserem) é um romance satírico sobre um homem à procura da realidade, no meio de tantos, tantos fantasmas, vozes sem corpo, corpos sem voz, e da multidão de desconhecidos que faz parte da nossa vida de todos os dias.
leia um capítulo |
Read a chapter in finnish
|
III
Aprendo a escrever
Quando ia a carregar no enter para finalmente enviar a mensagem – o mais lacónica que imaginar se possa – o computador deu uma espécie de vagido, vi um clarão, houve um sobressalto electroestático , e apagou-se. No silêncio da casa, a Joana batia as portas que a separavam da Fabiana. Experimentei o interruptor da luz, para verificar se houvera quebra de tensão, ou excesso de carga, porque a electricidade em minha casa é muito atreita a desmaios. É incompetência do contador, anos-luz atrasado em relação ao parque de electrodomésticos entretanto acumulado. Havia luz. Liguei o computador. Ouviu-se o sibilar do disco preso dentro da caixa a querer ganhar velocidade, mas não foi longe. O monitor estava negro. O povo tinha, nem sei se terá ainda, uma expressão muito apropriada para descrever o que senti nesse momento : eu vi a minha vida literalmente a andar para trás. Se o computador estivesse morto, seriam dias de conversa sobre macs e pc, rames e megabaites, wireless e bluetooth, dual core e dual core 2, opiniões diversas, controvérsias, a desencorajante peregrinação pelas lojas dos hipermercados e por fim, inelutavelmente, num impulso, a realização de uma asneira crassa, a compra do menos indicado de todos os computadores, e isto tudo é tão certo como estar aqui sentado e chamar-me Edmundo Jorge Valente Cochonilha.
A minha disposição era já sombria quando recebi um SMS da Teresinha: “Fico a viver em casa da Justa, é mais perto da Jessica. Bj”. Não sei quem é a Justa, nem quero saber. Carreguei a torre depois de almoço para a loja mais próxima. “Vírus” disse o rapaz. Passou-me pela cabeça a assertiva ameaça do Louie. Teria a família virtual conspirado contra mim? Ou isto era ideia exclusiva da máquina? O segundo técnico tinha uma opinião mais cautelosa. “Pode ser que não seja nada”. “Diz que ele se apagou de repente? Apareceu alguma mensagem antes de ele se desligar?”, perguntou o primeiro, que usava sempre o pronome para referir a coisa mesma. “Diz que ele deu um estalido?”. “Houve de facto uma pequena e curta tempestade eléctrica”, queixei-me. “Não sei descrever exactamente o som que fez, estou mais habituado aos sons humanos, ou aos sons naturais, os sons das máquinas deixam-me sem palavras.” “ Ele foi de repente?”, perguntou o primeiro técnico. “E ele não avisou que ia desligar?”. Não percebi a pergunta. “Há um vírus que faz isso, desliga o computador, é um worm.” O segundo técnico não se comprometia de modo nenhum, nem com perguntas. Só comentou : “É mesmo estranho, isso”. Era um tipo muito magro, numa bata branca; espreitava-lhe do bolso do peito um renque de esferográficas que faziam o melhor que podiam para lhe darem um ar competente. Os técnicos quiseram que deixasse o computador e telefonasse depois, no prazo de uma semana sem falta teria orçamento. Senti-me profundamente traído. “Preciso do computador para hoje” disse e saí, sobraçando a coisa sem a qual eu nada era. Mais do que animal doméstico, aquele disco mudo era a aparente razão do meu viver. Não se diz que muito amamos o que pouco compreendemos?
Decidi-me, devido a uma espécie de estupidez informática atávica, pelo representante da máquina. Ainda não eram três horas, pelo que telefonei ao Cavaleiro de Oliveira para me lamentar e pedir-lhe algum conselho. Que veio rápido e se abateu sobre mim como o trovão : “Não vás ao representante, pá! Nem penses em fazer uma imbecilidade dessas! Demoram semanas, levam-te couro e cabelo e isso se calhar não é nada. Vai mas é a este gajo que é meu amigo e é um craque dessas merdas. Agora tenho de ir, estou aqui em rodagem”. Logo a seguir chega por SMS o contacto do craque, que vive muito excêntrico, em Odivelas. Eu tenho um carro, não sou menos que os outros, mas é o mesmo que não tê-lo. Eram velas, eram cabos, foi o sistema eléctrico, depois a bateria. Num dia de chuva deixou-me parado nuns brejos para os lados do Montijo, caminhei mais de meia hora encharcado até à paragem de uma camioneta que acabou por não parar. Quando cheguei a casa informei a Teresinha da minha resolução de empurrar o dito automóvel por um barranco abaixo e continuar com a minha vida. Mas a Teresinha tinha essa clemência pelas coisas a que se afeiçoava e uma relação de longa data com o automóvel. Novamente internado na oficina do bairro, aí foi feito refém por um mecânico já antes do Natal, e impossibilitado de sair sem o pagamento do resgate. De vez em quando via-o passar, conduzido por um ou outro dos miúdos que ajudavam o mecânico, e que aceleravam quase em cavalinho quando me viam, para me demonstrarem talvez a excelente condição física do animal. Foi o subsídio de Natal da Teresinha que permitiu ao veículo sair em liberdade condicional (e com intercessão do pai da Isabelita, que é pau para toda a obra) e voltou ao encarceramento no princípio de Janeiro, à espera de que, por milagre de S. Judas Tadeu, de que constava imagem na oficina, feliz no meio de muitas mulheres nuas, aparecesse o restante para pagar a conta. Quando havia uma emergência eu ia buscar o carro, depois de argumentação vária e subtil conseguia subtraí-lo à oficina um par de horas. Mas ainda há pouco usara de um estratagema para ir ao casting e não sentia a energia que era precisa para discutir com o mecânico. Odivelas ficava, portanto, fora de concurso.
Voltei com o computador para casa, encontrando Fabiana e Joana sentadas na sala, uma ao lado da outra no sofá de justamente dois lugares, partilhando a novela do almoço. Simétricos, sobre a mesinha, dois panos de pó. “O senhor doutor quer almoçar?”, perguntou a funcionária que tinha preferência, por antiguidade. “Como qualquer coisa rápida, deixe que eu arranjo”. E desviei para a cozinha, aqueci no microondas um daqueles guisados sérios da Fabiana, mas não consegui engolir nada por causa do stress.
Os técnicos seguintes, que eram mesmo ao pé da porta, faziam outra dupla curiosa. Eram ambos muito pálidos, dadas as condições insalubres do centro comercial. A falta de ar, de sol e de luz davam-lhes à pele uma transparência específica, uma quase inexistência, como se os órgãos todos do corpo clamassem em uníssono : “ Pele, nós evoluímos! Aqui não há nada que nos agrida, já não precisamos de ti para nos protegeres!”. Bastava-lhes uma camada de derme por cima dos ossos, à volta dos músculos, e estavam preparados para a vida. O primeiro técnico parecia ter um respeito devoto pelo computador. Passava-lhe a mão pelos lombos, vivia num certo temor. Carregava no botão e dizia, timorato : “Vamos lá ver o que é que ele faz.” “Ele não faz nada”, disse eu, ressentido. “Pode ser que dê”, disse ele. E, quando piscava uma luzinha, sorria, deslumbrado: “Olha, e não é que o sacaninha aceitou?”. E, realmente, a coisa mexia-se, parecia voltar à vida. Não quis estragar o momento com uma esperança indevida. “Ora vamos lá ver então”, disse ele. E esperava, o técnico, paciente. O técnico que inevitavelmente surgia dos fundos para contrariar o parecer do outro, era pura e simplesmente brutal. “Está lento, está velho”. “Eu sei”disse “precisa de ram”. “Precisa é de ser abatido ao activo”. O outro, corado, olhava-o de soslaio, mitigava: “Deixa ver, pode ser que dê”. A máquina acendeu, o monitor iluminou-se e não tinham passado nem dez segundos deu um suspiro e apagou-se outra vez. O bruto entrou a matar. “Ai é? Eu já te digo. Hás-de trabalhar nem que eu te encha o coiro de porrada!”. Eu perguntei se me davam o orçamento no próprio dia. O brando técnico acenou que sim com a cabeça e desapareceu na loja. Vi-lhe esvoaçar as abas da bata na zona dos DVD virgens. Fugia, decerto, do colega e da sua vítima.
Saí para o ar relativamente puro do exterior do centro comercial e comecei a andar sem rumo definido. Nada nestas novas envolventes está feito para o simples peão. É tudo longe, a estrada nunca mais acaba, atravessam-se passadeiras e rotundas e passagens aéreas antes de se chegar a qualquer lado propriamente dito, um lado que não seja mera transição. Em cima da passagem aérea, no entanto, estavam dois gandulos que me avaliaram, e felizmente concluíram que eu não tinha viabilidade económica. Assim que entrei em contacto com o ar, a minha ideia para a peça começou logo a fermentar como farelo, não sei se o farelo fermentará, provavelmente fermenta, há na realidade muito pouca coisa na vida que não fermente. O meu problema é que ficava tão agitado com a experiência da minha própria ideia, que não conseguia ter a calma suficiente para pensar. Precisava de falar à Teresinha, porque ela ouvia-me sempre com um ar muito sério e dizia-me em geral qualquer coisa que, embora não viesse a propósito, nem me ajudasse em nada, era o reconhecimento de que eu existia realmente. Não era um desses rolos vegetais que deambulam pelo deserto ao sabor do vento, a fazer tabelinha nos cactos. Era alguém que dizia alguma coisa a alguém e a quem alguém respondia. Não se podia esperar muito mais da vida real.
Liguei-lhe e, estranhamente, ela atendeu. Comecei por lhe perguntar pela Jessica, é melhor “lançar o diálogo”pelas coisas que lhe interessam directamente a ela. A Teresinha ao telemóvel distingue-se muito bem da Teresinha ao telefone fixo. No telefone fixo ela é o mais distendida que pode chegar a sê-lo, deixa-se levar por circunlóquios e, numa voz mais grave do que o habitual, arredonda, explicita, exemplifica, concretiza, organiza, desenreda, e até repete! Em contrapartida, a Teresinha ao telemóvel é sempre a despachar. Come as palavras. Economiza. Fala, mas contrariada. As frases são curtas, pejadas de interjeições, de imperativos. A linguagem é coloquial, às vezes usa mesmo algum calão. “Diz lá!” : é assim que ela me atende. E despede-se: “´Tá ”. Estou farto de lhe repetir que o pacote dela inclui quinhentos minutos de chamadas e também para telefones fixos, mas é uma coisa que lhe ficou de trás, de facturas traumáticas. E há também, claro, aquele assunto do cancro da orelha. Contei-lhe muito brevemente, já ansioso, do colapso do computador e da aparente reconciliação das nossas empregadas, perguntei-lhe quando voltava para casa e quem era esta Justa com quem agora, e por pouco tempo, esperava eu, ela residia. “Acabo de itemizar as necessidades educativas da Jessica”, disse ela. “Os problemas estão bem identificados, o diagnóstico está feito. Agora é uma questão de gerir a operacionalização das técnicas, de agilizar processos e de quantificar os resultados”. “E isso tudo” perguntei “ vai demorar quanto tempo?”. Contou-me então com algum pormenor o que se passara na educação de Jessica durante a última semana. Teresinha conseguira, com a ajuda da mãe Fabiana e de um meio-irmão que acabara de cumprir a sua primeira pena de prisão, levar a Jessica à psicóloga da escola. A sessão não “se saldou pelo sucesso pleno”, houve injúrias e ofensas corporais, mas a psicóloga, experiente nos problemas que afectam os adolescentes com problemas, usando o pouco que lhe foi dado observar, e em cooperação estreita com os outros professores da turma, fez um diagnóstico certeiro. A psicóloga Marieta albardou a Jessica com a Síndrome de Procrastinação Agravada, uma condição não incomum em adolescentes e adultos, que afecta o foro motivacional e organizacional. Explicava a doutora Marieta perante o conselho de turma que as pessoas atingidas por esta síndrome têm imensa dificuldade em priorizar as suas tarefas em função dos objectivos que se propuseram atingir. “Em vez de estudar Matemática,”disse-me a Teresinha, parafraseando a especialista “actividade fundamental para a prossecução das suas metas de vida, Jessica não fica sem fazer nada, porque a síndrome não implica que a pessoa se dedique ao ócio. O que acontece, pelo contrário, é que o doente se propõe várias tarefas e vai escolhendo as que lhe são motivacionalmente mais gratificantes de modo a relegar as outras, mais necessárias, para mais tarde ou, no pior dos casos, para nunca. Ora Jessica prefere passar o seu tempo no café a conviver ou efectuar pequenos furtos na escola, do que dedicar-se às actividades que lhe exige o seu projecto de vida. Isto tem consequências intra-psíquicas graves (para não mencionar as consequências especificamente judiciais, dado que a Jessica já fez os dezassete anos e é imputável) e daí, dessa inibição organizacional da priorização, surgem a ansiedade, a culpabilidade e a baixa auto-estima, que depois se traduzem em excessiva agressividade e comportamentos em sala de aula que dificilmente favorecem o processo de ensino-aprendizagem”. Quando eu quis brincar com a Síndrome de Procrastinação, mencionando a sinopse que eu devia estar a escrever em vez de beber drambuie com gelo a ver programas inanes na televisão pela noite dentro, já a Teresinha começara uma outra conversa com a Justa. Penso que tentavam hierarquizar objectivos, ouvi-as discutirem se “reflectir” seria objectivo adequado àquele nível etário. “Ouvir, falar, escrever”. “Falar, ouvir, reflectir, escrever”. Mas a Justa não parecia inclinada a considerar o “reflectir” como uma actividade que pudesse estar implicada nem no falar, nem no ouvir, nem no escrever. Fui eu que tive de acabar a chamada, a Teresinha fica logo sem cabeça para nada quando lhe começam a mexer nos objectivos.
O computador afinal estava bom, não tinha sido nada, um tremor, um falso alarme, ou pelo menos, nada que os técnicos pudessem reconhecer como um problema. O bruto ainda fez mais uma tentativa de me vender um portátil que estava em promoção e que ia deixar em breve de ser comercializado, mas eu safei-me a tempo e ainda nessa noite enviei o malfadado mail para o Ser e Não Ser . Inesperadamente, no dia seguinte, tinha na caixa de correio electrónico o consenso desejado. Agendou-se um encontro para o outro dia às cinco da tarde. Entrei de imediato num pavoroso frenesi criativo. Queria levar já para a reunião pelo menos a sinopse da peça e, mais importante do que tudo, a estratégia para neutralizar a Isabelita, persuadir o Juvenal e a Constância e argumentar contra o que quer que fosse proposto pela Sandra Amanda. Esperava não ter de puxar pelos galões. Afinal eu era co-fundador e co-criador da companhia, tinha direito ao meu espaço e ao respeito dos outros pelo meu trabalho. Quando ia a meio da sinopse, o computador apagou-se de novo sem um ai. O meu entusiasmo, no entanto, não se deixava abater. E lá fomos, toda a tarde ligando e desligando.
A Constância insistira em reunir numa esplanada com vista, e assim foi. Cheguei como sempre cinco minutos antes da hora, procurei o melhor lugar para nós, um canto que dava para um abismo sobre a cidade velha, e lancei uma última olhadela ao fruto de um dia de trabalho e de uma noite de insónia: meia folha em corpo 16, a sinopse da peça que eu me propunha escrever para o grupo. Sempre achei curiosa esta ideia generalizada que considera o atraso uma coisa socialmente aceitável. Tudo é melhor do que ficar na situação inferior de ter de esperar pelos outros. Parece que não se é ninguém, não se tem mais nada que fazer. Deve ter a ver com uma tradição de gente à espera na praia pelas naus que nunca mais chegavam. Esperar é para fracos, mulheres e crianças. Os homens partem nas caravelas e voltam, se voltarem, um dia mais tarde. A Constância apareceu com a Isabelita, as duas muito tranquilas, de braço dado, pelas cinco e meia. O Juvenal chegou esbaforido às seis menos um quarto. Vi que ficou nitidamente satisfeito por aguentar mais tempo de atraso do que nós. “Já cá estão há muito tempo?”, perguntou, ainda de pé. “Chegámos mesmo agora”, respondeu a Constância. A Magda apareceu às seis, já eu ia na terceira imperial. A Sandra Amanda telefonou às seis e cinco a avisar que ia chegar bastante atrasada e que levava o Tó Quinito. Mas que fossemos começando.
Eu estava incrivelmente nervoso. Era a minha primeira sinopse. Ainda tentei desviar a atenção dos outros mais uma vez para um grupo-estereótipo de turistas japoneses que passava ao fundo, mas a Constância chegou-se à frente, bateu com a mão no tempo da mesa e impôs: “Conta lá, não sejas chato!”. A Magda mantinha-se misteriosa, tinha desenvolvido uma maneira muito grácil de fingir que estava na esplanada, embora estivesse de facto, de corpo e alma, e espírito, na telenovela, as vinte e quatro horas do dia. “Bem” disse eu “então é assim. O que eu quero fazer é um texto forte. Poderoso. Que faça reflectir.” “Porreiríssimo”, disse o Juvenal, “idiotice já há que nos chegue”. Tive um momento de pânico verdadeiro. A minha ideia era completamente imbecil! Completamente destituída de interesse! “É a história de um sem abrigo...”, comecei, e assim que o Juvenal acenou com a cabeça que não lhe parecia mal de todo, avancei : “...um homossexual e uma prostituta... negra, duplamente explorada; o sem abrigo a certa altura fica cego...”. “De um olho só, ou dos dois?”, perguntou Constância, não se sabe porquê. “Fica cego”, repeti. “E emudece também e então aparece-lhe em visão interior um anjo homossexual, que tem um caso de amor desesperado com uma prostituta negra, heroinómana, cujo chulo é um ex-combatente do Ultramar, que vive num sétimo andar com uma avó entrevada”. Calei-me. “Onde?”, perguntou Constância. “Onde o quê?”, perguntei. “Onde é que ele vive com a avó?”. “Na Graça”, disse eu. Constância: “Mas estás a rir de quê, Jorge?”. “É uma paródia!” exclamei. “Pensei que se percebesse só pela sinopse…um sem abrigo, um homossexual, são estereótipos do neo-naturalismo dominante…”E, já mais baixo, quase vencido: “É uma paródia, é comédia…”. Houve uma pausa. “Isso é sempre arriscado”disse Juvenal com inteligência. “Nunca se consegue garantir a cem por cento se as pessoas vão perceber uma paródia…”. Havia casos históricos documentados de equívocos. As interpretações relativas às Artes, e à Vida, pois que elas superabundam e o nosso tempo na terra é escasso, são cada vez mais convencionais. “Para ser comédia tem que ter puns, se não ninguém percebe…as pessoas riem-se quando a coisa é patentemente para rir“ disse o Juvenal. E Constância: “Não brinques. Há alta comédia e baixa comédia. Não me vais dizer que Molière…”.”Uma paródia ”pontificou a Magda “é, na verdade, uma complicação desnecessária. Se não tens nada de realmente novo e desafiante para dizer, amigos como dantes, a gente não te leva a mal e gosta de ti na mesma”. A Isabelita, picada, saltou em minha defesa : “Não percebo porque lhe chamas paródia…Eu acho magnífico. A peça tem tudo! Problemas reais…Tem multiculturalismo…Falta talvez um cigano…Tem um sem abrigo, homossexuais, anjos, prostituta negra...”. E o Juvenal : “É forte, e fala das coisas que existem, da nossa realidade social. Mas com imaginação, é ficção, não é nenhum tratado social! E até lhe detecto algum humor…”.“Falta uma criança abusada!”disse Constância, e estava a falar a sério. Eu via a minha sinopse, tosca como um mamute e destinada à mesma obsolescência, a escorregar para o abismo do que se imagina deva ser uma peça de teatro contemporânea. “Não me parece…”comecei. “As margens da vida”, disse a Isabelita. “O título podia ser Nas Margens da Vida”. E a Magda: “Para os casos da vida temos as notícias da televisão e da rádio, não é no palco que isso se costuma fazer”. “Mas tudo são casos da vida!”, argumentei . “Tens razão”, disse Juvenal, respondendo à Magda. “Teatro é outra coisa”. “É uma história de amor” disse eu, a ver se pegava. “O sem abrigo, estás a ver, a última coisa que ele vê antes de cegar é esta bela mulher negra de formas perfeitas…” A Magda interrompeu: “Mas porque não fazemos um clássico? Há coisas tão boas, tão esquecidas, podíamos refrescar algum repertório…” E Constância: “Eu não faço mais Frei Luís de Sousa, aviso já!”. “Vivemos na época dos sketches”, disse o Juvenal.
Chegavam enfim Sandra Amanda e seu Tó Quinito, que impressionou logo favoravelmente o público feminino. A Sandra marcou o território: “Pede-me aí um café, e diz ao homem que traga adoçante.” E o Quinito, que acabara a ronda de cumprimentos e se preparava para assentar, levantou-se e foi fazer a encomenda. Mas as mulheres seguiram-no sub-reptícias com os olhos, enquanto o Juvenal e eu fingíamos entreter-nos com as nossas bebidas, para as deixarmos apreciá-lo à vontade. Esta admiração delas acabou por se virar contra mim, e daquela maneira imprevisível e assustadora que tomam todos os processos que incluem mulheres. Quando a Isabelita, que tinha sido, digo-o entre parênteses, das mais acintosas no olhar que deitou ao namorado da Sandra, se pôs a descrever muito exaltada e com aqueles requebros patéticos dos flirts da meia-idade, a sinopse da minha peça, a Sandra teve um ataque de riso que fez voltarem-se para nós duas mulheres que se riam conluiadas noutra mesa. “Um anjo homossexual?” guinchou. Percebera intuitivamente o potencial cómico da coisa. Mas o Quinito, como especialista, deixou-se ficar neutro, num meio sorriso, à espera de uma oportunidade para intervir, alisando com elegância o amarrotado peito do casaco de linho. O Juvenal agora também já parecia achar certa graça à ideia: “E um GNR corrupto!”, disse o Juvenal, obtendo novo ataque de riso da miúda. “Não queiram meter o Rossio na Betesga!” gritei, exasperado. E esta expressão popular pareceu ainda mais hilariante à Sandra, que é filha da televisão privada e só conhece o povo a fazer de criada ou de motorista na telenovela. Lá se acalmaram. A Sandra disse : “Que ideia tão estranha, ó Jorge. Pensei que tínhamos concordado em fazer comédia que tivesse a ver com os problemas reais das pessoas, que retratasse um bocado...” E logo a seguir, brutal: “O Tó tem uma ideia muito fixe sobre dois amantes com SIDA...” O Tó teve um pequeno sobressalto, a ideia fora lançada assim sem briefing, sem contextualização, atirada para o tampo da mesa à bruta sem qualquer resguardo. “Sandra!”, censurou ele. “O que é? Ias falar nisso, não ias?”. “Sim, mas...não assim, sem qualquer controlo”. “Isso é que é um problema real!”, disse a Sandra. “E portanto os sem abrigo não são reais?”, perguntou Isabelita. “São mais reais do que amantes com SIDA”, afirmou Juvenal. “E até é uma realidade que o Jorge conhece bem, porque trabalhou ali no Banco Alimentar.” “Não trabalhei, não”, disse eu, para evitar o estabelecimento de qualquer equívoco. “Fui lá uma vez saber se precisavam de alguma coisa”.“ Mas os amantes com SIDA são menos reais por acaso do que as prostitutas negras ou os sem abrigo?”, disse a Sandra. “São” respondeu Juvenal “a SIDA é um problema de ricos e famosos e é da moda e por isso é que tem publicidade”. “Não é a SIDA em África”, disse a Constância. “Essa não aparece na televisão porque não fica bem na fotografia” rematou o Juvenal. “Mas tu sabes quantos milhões de pessoas há com SIDA no mundo? Não é um problema real das pessoas?”, gritou a Sandra. “Os sem abrigo e as prostitutas também são aos milhões no mundo, se a realidade para ti se mede aos milhões, é uma coisa estatística, temos milhões de tudo”, disse o Juvenal. “E as crianças?”, perguntou Isabelita. Mas a coisa já lá não ia com crianças. “E o anjo?”. A Sandra virava-se a mim, sabia que eu não tinha por onde fugir. “É o elemento mais convencional da fantasia, é uma espécie de principezinho, que representa a pureza do espírito...” murmurei. E a Magda, que se mantivera discreta e observadora e se reservava para as estocadas: “Mas se o que vocês querem é realidade, estendemos um microfone aos queixos do povo e pomo-lo a falar para dentro de um gravador.” Então o Quinito, que fizera cursos de guionismo e sabia “gerenciar as situações”como ele próprio garantiu, avançou uma proposta: “Penso que talvez devêssemos pensar primeiro no formato e depois nos conteúdos. E penso que com as ferramentas adequadas teremos um formato funcional e operatório. Penso que há diversas instâncias de configuração, visualização, diagnóstico e resolução de problemas, de ajuda e suporte, e com o menu apropriado de opções flexionadas, o output criativo é mais viabilizante do espectáculo”. O Quinito falava menu, falava Windows. “Portanto”, começou o Juvenal, “primeiro o formato e depois a substância”. “Parece evidente”, rematou ele, brando. “Primeiro define-se a dimensão do projecto, depois as propriedades do esquema de sponsorização em diálogo estreito com a determinação do público-alvo e das opções comunicacionais”. Perante o silêncio respeitoso dos circunstantes, que tentavam perceber a que realidade ou realidades se referiam aquelas frases do interessante namorado da Sandra, a própria disse: “Este projecto do Tó é muito fixe e consegue com certeza investidores e apoios”. “Ah, já cá faltava o apoio!”, resmungou o Juvenal. “Se conseguires montar o espectáculo sem apoio e sem sponsors, vai em frente!”, gritou a Sandra. O Quinito adiantava-se pelas coisas práticas : “Oitenta minutos. Eles não aguentam mais que isso.” “É um grande mistério, não acham”, começava a rábula do Juvenal “que o mesmo povo que mama televisão doze horas por dia se preciso for, ao almoço, ao jantar e à ceia, não aguente mais do que oitenta minutos de teatro, bom, mau ou assim-assim…eu não consigo explicar isso, talvez algum de vós tenha uma ideia que me ajude…”. “Depende quase exclusivamente do bom formato. Em televisão, por exemplo, está demonstrado que funcionam as séries de treze episódios de cinquenta minutos. É uma questão de configuração. Temos que dar às pessoas coisas que elas reconheçam, porque o efeito de estranheza pode ser entendido como hostilidade e até arrogância”.
A tal história dos amantes com SIDA era portanto uma história de amor, mas a história dele – ao contrário da minha - já trazia incluída a mensagem de esperança. Era uma história de coragem em que os personagens “entabulavam” uma viagem pessoal de auto-descoberta, de modo a aprenderem qualquer coisa sobre si próprios e a transmitirem ao espectador uma lição de optimismo sobre o mundo e a vida, depois de indescritíveis cenas de tortura emocional e física infligida a todos sem excepção; e embora morressem os dois amantes cobertos de gráficas chagas, abraçados à boca de cena, e o público, esperava-se, saísse da sala lavado em lágrimas, eram lágrimas boas, de esperança num “mundo melhor”. “O que será”, pensou alto Juvenal, “para as novas gerações, um mundo melhor? Para nós era paz, pão, liberdade, habitação e hoje temos isso tudo, embora a crédito, com o juro sempre a subir.”O Quinito, que já não era menino nenhum, estava mais para os trinta e cinco do que para os vinte e cinco, reflectiu. “Penso que a minha geração não viveu muito esse problema. Um mundo melhor é só uma forma de dizer. Neste caso particular, um mundo em que os amantes não morram de SIDA.” “Percebo”, assentiu o Juvenal. “Parece-me justo”. As mulheres olhavam para mim com aquela compaixão hipócrita que elas dedicam aos medíocres se não precisam mais deles. “Acho interessante”, admiti, derrotado. “ É um tema muito actual. E eles são, claro, homossexuais?”, perguntou a Constância. “Acho que é melhor serem bissexuais, para não se alienar o público feminino”, disse o Quinito. “E também são toxicodependentes?”, perguntei. Eu tenho um certo carinho pelo tema da toxicodependência, talvez por não conhecer ninguém que esteja a ser realmente afectado por ele. “São, pois” disse a Sandra. “E um deles, a mãe até é alcoólica.” Eu rendi-me. “Depois falamos, para acertar datas e outros pormenores”. O Quinito, de camisola preta de decote em bico e fato de linho cor de grão, ergueu o copo de Pernod e quis fazer uma saúde. E pôs-se a falar destas personagens, que eram um emaranhado de conflitos psicológicos e de impossibilidades práticas e tocavam quase todas as questões da actualidade, fazendo o pleno dos públicos-alvo : o amante com SIDA era fadista, do Belenenses, para não alienar o público dos três clubes maiores, cinquenta anos, cabelos grisalhos, ar distinto, bom nome de família, simpático, galante, bom cavaleiro e bissexual, casado com uma senhora muito fina (extraterrestre) e pai de dois filhos naturalmente gémeos (o Martim, toxicodependente e o Bernardo, assassino em série). Tem um passado escuso de bares de alterne e noites de rambóia e é arruinado por um tipo miserável que o chantageia e o obriga a meter-se no tráfico de armas e de mulheres (que ele viola com elegância e bom gosto, depois de excruciantes cenas de tortura, ao som de Bach e Alfredo Marceneiro) ; e a amante, rapariga de vinte e dois anos, meia asiática, muito bonita, corpo escultural, cabelos castanhos dourados e olhos amendoados, top model, lésbica, doutorada em Física das Partículas, etc. Em causa está uma fábrica de moléculas, pela qual todos se esgadanham, embora se perceba apenas que o bem imóvel já vai na segunda hipoteca.
Em casa tinha um e-mail da Teresinha que me enviava em attachment a primeira composição da Jessica digna desse nome. No corpo do mail, orgulhosa e provocante, Teresinha escrevia : “Quem realmente quer alcançar os seus objectivos e, no médio e longo prazo, as suas metas, trabalha e labora e, no final, é recompensado com resultados palpáveis. É um labor de amor, uma conquista dia a dia conquistada. Mas os resultados aí estão.” O épico não era muito o estilo da Teresinha. Eis a redacção da Jessica, já passada no crivo do corrector ortográfico: “a história é o sapo cocas uma tartaruga que estava num campo e havia um anão que também estava no campo a trabalhar e também havia um gafanhoto e uma rapariga mais velha a tartaruga foi e pediu ao anão para ir salvar os filhos dela que estavam numa ilha cercados e o anão foi a casa buscar as ferramentas porque não acreditava nas novas tecnologias”. Era tema livre. Era no que dava ter canais a mais.
Decidi naquele mesmo instante tirar um curso destes de escrita criativa, para aprender a escrever diálogo e a conseguir apanhar melhor as personagens porque quando eu escrevo ou faço as adaptações para as peças, aquilo soa tudo ao mesmo, desde a mulher da limpeza ao Barão de Chaves. E também queria aprender a não me dispersar na história que quero contar. Escrevi tudo isto à Teresinha que instantaneamente me respondeu: “toda a acção de formação é boa para a tua realização como pessoa e como indivíduo. Isto é válido para ti e para todos”. Desconfiei que, sob a auspiciosa influência da Justa, a Teresinha poderia sair da depressão, entrando não sabia ainda muito bem em quê; só o tempo o diria.
Por sorte, tinha na inbox um mail que me chegara há umas semanas sobre uma espécie de escola em que se realizam uns workshops sobre coisas avulsas, tapdancing, shiatsu, escrita criativa, mesoterapia, estomatologia, pintura a óleo, termodinâmica, e tudo o que nos passar pela cabeça aprender ou ensinar. Seriam três meses, quatro horas por semana, duzentos e cinquenta euros. Corri a inscrever-me online. Entrei de novo em frenesi criativo, queria levar já qualquer coisa alinhavada para a nossa primeira sessão. Mas sentia amargamente a falta de Teresinha. Só me apetecia escrever-lhe, falar com ela de coisas que nos transportassem aos tempos pré-pedagógicos. Mas sabia que o diálogo havia de encravar logo no princípio, eu havia de dizer qualquer coisa que ela acharia injusta e desagradável. A essa coisa ela responderia outra, magoada, com irritação. E daí àqueles resmungos que caracterizavam as nossas últimas discussões não faltaria muito. Pensando melhor, de momento eu não tinha coisas agradáveis para lhe dizer. Estava furioso com o abandono em que o delírio dela me deixava. Por isso me agarrava à escrita, à fantasia de um texto perfeito, debatido com interesse e boa colaboração inter pares, tormentoso, com certeza, mas amorosamente amparado. E os duzentos e cinquenta euros não eram solicitados à cabeça, tornando o curso ainda mais atraente. Podia ser até que me safasse sem o pagar.
Esta tal professora de escrita era completamente intratável. Nunca consegui perceber o que é que ela queria. Tinha uns repentes, uns entusiasmos, umas embirrações. E dizia umas frases em Inglês, ou em Francês, mas muito baixinho, de passagem, e ao mesmo tempo fazia uns olhares entendidos, como se fosse óbvio para toda a gente que “diálogo é diálogo e conversa é conversa” e que “no teatro tudo deve ser acção indirecta”. Por vezes, entusiasmava-se, repetia: “Subtexto! Subtexto!”, mas negava que houvesse regras, que houvesse receitas! Zangava-se e ameaçava sair da sala e não voltar mais, se alguém lhe falava em “escrever um texto com mensagem”. Às vezes dizia, acintosa: “Escrevam pouco, por amor de Deus!”. E quando nos via pôr a caneta no papel para começar algum exercício arrevesado que ela acabara de inventar, gritava : “Não, não escrevam! Nunca escrevam a primeira coisa que vos vem à cabeça! Sejam espontâneos um pouco mais tarde!” Ficávamos dezassete papalvos de caneta no ar a olhar uns para os outros e passados uns trinta segundos, dizia: “Agora! Podem começar! A quinta ideia é que é boa!”. Julgaria ela que eu tinha tido quatro ideias em trinta segundos? Devia ser rábula, só pelo irrisório da coisa. Fui afinal percebendo pelo andamento que havia ali muitas regras, muitas instruções e obrigações – ao contrário do que esperara e ela própria afirmara. Só que as regras eram o que lhe dava a ela na bolha. E quando aparentemente seguíamos aquilo que ela queria, e nos esforçávamos por adivinhar o que seria para ela “diálogo e não conversa”, criticava na mesma, era ainda mais feroz! Logo na primeira sessão, informal, a professora de escrita destruiu em botão a maior parte das sinopses. A um advogado que se propunha escrever uma pequena peça que metia um anjo e um vagabundo, disse que “estão proibidos de incluir nas vossas peças vagabundos, mendigos, meninas pequenas, crianças aos pares, anjos, cegos e avós paralisadas, enfermas ou cegas e paralisadas, e que tenham visões e falem em deuses, com deuses, sobre deuses, por enigmas ou profetizem. E livrem-se de pôr na didascália que os personagens sorriem, ou que fazem um meio sorriso! ”. Eu dobrei a minha folhinha discretamente e pensei no que dizer quando chegasse a minha vez. Mas ela tão depressa emitia regras arbitrárias como se tomava de amores por alguma ideia que me parecia, a mim, tão interessante ou desinteressante como as outras. “Eu quero escrever”, disse um dos sinopsistas “sobre duas irmãs muito velhas que vivem isoladas numa aldeia e que são visitadas pela filha de uma delas, também já velha”. Ela achou muito bem. Outro queria tratar uma crise conjugal. Uma senhora de meia-idade, que já tinha os filhos criados e tempo livre, achou que lhe calhava melhor um conflito terrível entre um pai e um filho; seria uma tragédia “à maneira grega”; outra queria qualquer coisa passada dentro de um elevador. Outro queria nas escadas. Outro era numa barraca à beira-mar. Ela achou tudo muito bem! Mas se lhe apresentavam “dois irmãos com tuberculose multi-resistente”, ou “um emigrante que volta de França com Sida”, “uma jovem grávida, toxicodependente”, “um empresário de sucesso”, “uma família de grandes vitivinicultores do Norte dizimada pela Revolução de Abril”, tomava-se de raiva e troçava dos desgraçados com uma arrogância que raiava a agressão verbal. Sentíamo-nos todos inúteis, estúpidos! Mas eu acho que era puro preconceito dela, ficava presa na maneira de dizer, não percebia que aquilo era só um esboço. Uma das participantes no workshop queria fazer um texto só visual. Seria apenas a descrição das acções dos actores. Ela achou bem! “A minha peça não tem palavras”, disse finalmente o da ponta da mesa. E quando estávamos todos à espera de uma tacada humorística, ela fez uma pausa e disse : “Ok”. Eu tinha mudado de sinopse enquanto o diabo esfrega um olho e quando chegou a minha vez surpreendi-me a dizer que me interessava a realidade virtual, que era um homem da contemporaneidade, que para mim o que contava eram o presente e o futuro, e depois atrapalhei-me e emendei para “só o presente”, e cada vez mais embrulhado acabei por defender que “o presente é a única coisa que me interessa embora obviamente não exista, porque se torna logo passado e é uma tensão entre passado e futuro”. Mas como ela não reagia, e olhava neutra para mim, fui avançando. Afirmei, com ousadia, que talvez me decidisse por uma peça toda passada na internet por e-mail, em que um homem é perseguido na vida real por uma família que ele constituiu há uns anos numa cidade virtual chamada Second Life. Era uma espécie de SIMS , mas com cerca de meio milhão de habitantes e toda a vida real de uma cidade, embora não existisse materialmente em lado nenhum. Ela disse: “A ideia parece-me de tal maneira...abstrusa...imbecil…grotesca...que exige ser feita. Fico curiosa de saber como é que isso depois se põe em cena”. Mais uma vez, não percebi se estava a brincar ou se estava a falar a sério, mas resolvi tentar. E tudo se pode pôr em cena, o remoque dela só demonstrou que de facto não percebe nada de teatro.
Mas é claro que não fui longe. Nessa noite a Teresinha enviou-me uma estranha declaração de amor em que – e vou resumir – me dizia que a sua missão pedagógica não lhe permitia distracções, nem sequer a distracção de ter um marido a tempo inteiro e que, por isso, não voltaria tão cedo para casa. Acrescentava que se sentia agora muito mais próxima de mim, que se sentia capaz de me dizer um certo número de coisas que lhe andavam atravessadas há anos, entre elas que me levara a mal eu passar tanto tempo com a minha família da internet e que essa fora uma das principais causas do seu esgotamento. Fiquei estarrecido. A Teresinha sabia da minha segunda vida, sempre soubera, ao que parece, e tomava-a muito mais a sério do que eu. Para mim a Deirdre e os miúdos eram como ter um papel na telenovela, uma forma de treinar as minhas capacidades enquanto actor e homem que usa a realidade tal como ela se vai apresentando, para treinar os aspectos artísticos. Mas passado o primeiro choque, sentei-me para ler com atenção o que ela tinha para me dizer.
Aprendo a escrever
Quando ia a carregar no enter para finalmente enviar a mensagem – o mais lacónica que imaginar se possa – o computador deu uma espécie de vagido, vi um clarão, houve um sobressalto electroestático , e apagou-se. No silêncio da casa, a Joana batia as portas que a separavam da Fabiana. Experimentei o interruptor da luz, para verificar se houvera quebra de tensão, ou excesso de carga, porque a electricidade em minha casa é muito atreita a desmaios. É incompetência do contador, anos-luz atrasado em relação ao parque de electrodomésticos entretanto acumulado. Havia luz. Liguei o computador. Ouviu-se o sibilar do disco preso dentro da caixa a querer ganhar velocidade, mas não foi longe. O monitor estava negro. O povo tinha, nem sei se terá ainda, uma expressão muito apropriada para descrever o que senti nesse momento : eu vi a minha vida literalmente a andar para trás. Se o computador estivesse morto, seriam dias de conversa sobre macs e pc, rames e megabaites, wireless e bluetooth, dual core e dual core 2, opiniões diversas, controvérsias, a desencorajante peregrinação pelas lojas dos hipermercados e por fim, inelutavelmente, num impulso, a realização de uma asneira crassa, a compra do menos indicado de todos os computadores, e isto tudo é tão certo como estar aqui sentado e chamar-me Edmundo Jorge Valente Cochonilha.
A minha disposição era já sombria quando recebi um SMS da Teresinha: “Fico a viver em casa da Justa, é mais perto da Jessica. Bj”. Não sei quem é a Justa, nem quero saber. Carreguei a torre depois de almoço para a loja mais próxima. “Vírus” disse o rapaz. Passou-me pela cabeça a assertiva ameaça do Louie. Teria a família virtual conspirado contra mim? Ou isto era ideia exclusiva da máquina? O segundo técnico tinha uma opinião mais cautelosa. “Pode ser que não seja nada”. “Diz que ele se apagou de repente? Apareceu alguma mensagem antes de ele se desligar?”, perguntou o primeiro, que usava sempre o pronome para referir a coisa mesma. “Diz que ele deu um estalido?”. “Houve de facto uma pequena e curta tempestade eléctrica”, queixei-me. “Não sei descrever exactamente o som que fez, estou mais habituado aos sons humanos, ou aos sons naturais, os sons das máquinas deixam-me sem palavras.” “ Ele foi de repente?”, perguntou o primeiro técnico. “E ele não avisou que ia desligar?”. Não percebi a pergunta. “Há um vírus que faz isso, desliga o computador, é um worm.” O segundo técnico não se comprometia de modo nenhum, nem com perguntas. Só comentou : “É mesmo estranho, isso”. Era um tipo muito magro, numa bata branca; espreitava-lhe do bolso do peito um renque de esferográficas que faziam o melhor que podiam para lhe darem um ar competente. Os técnicos quiseram que deixasse o computador e telefonasse depois, no prazo de uma semana sem falta teria orçamento. Senti-me profundamente traído. “Preciso do computador para hoje” disse e saí, sobraçando a coisa sem a qual eu nada era. Mais do que animal doméstico, aquele disco mudo era a aparente razão do meu viver. Não se diz que muito amamos o que pouco compreendemos?
Decidi-me, devido a uma espécie de estupidez informática atávica, pelo representante da máquina. Ainda não eram três horas, pelo que telefonei ao Cavaleiro de Oliveira para me lamentar e pedir-lhe algum conselho. Que veio rápido e se abateu sobre mim como o trovão : “Não vás ao representante, pá! Nem penses em fazer uma imbecilidade dessas! Demoram semanas, levam-te couro e cabelo e isso se calhar não é nada. Vai mas é a este gajo que é meu amigo e é um craque dessas merdas. Agora tenho de ir, estou aqui em rodagem”. Logo a seguir chega por SMS o contacto do craque, que vive muito excêntrico, em Odivelas. Eu tenho um carro, não sou menos que os outros, mas é o mesmo que não tê-lo. Eram velas, eram cabos, foi o sistema eléctrico, depois a bateria. Num dia de chuva deixou-me parado nuns brejos para os lados do Montijo, caminhei mais de meia hora encharcado até à paragem de uma camioneta que acabou por não parar. Quando cheguei a casa informei a Teresinha da minha resolução de empurrar o dito automóvel por um barranco abaixo e continuar com a minha vida. Mas a Teresinha tinha essa clemência pelas coisas a que se afeiçoava e uma relação de longa data com o automóvel. Novamente internado na oficina do bairro, aí foi feito refém por um mecânico já antes do Natal, e impossibilitado de sair sem o pagamento do resgate. De vez em quando via-o passar, conduzido por um ou outro dos miúdos que ajudavam o mecânico, e que aceleravam quase em cavalinho quando me viam, para me demonstrarem talvez a excelente condição física do animal. Foi o subsídio de Natal da Teresinha que permitiu ao veículo sair em liberdade condicional (e com intercessão do pai da Isabelita, que é pau para toda a obra) e voltou ao encarceramento no princípio de Janeiro, à espera de que, por milagre de S. Judas Tadeu, de que constava imagem na oficina, feliz no meio de muitas mulheres nuas, aparecesse o restante para pagar a conta. Quando havia uma emergência eu ia buscar o carro, depois de argumentação vária e subtil conseguia subtraí-lo à oficina um par de horas. Mas ainda há pouco usara de um estratagema para ir ao casting e não sentia a energia que era precisa para discutir com o mecânico. Odivelas ficava, portanto, fora de concurso.
Voltei com o computador para casa, encontrando Fabiana e Joana sentadas na sala, uma ao lado da outra no sofá de justamente dois lugares, partilhando a novela do almoço. Simétricos, sobre a mesinha, dois panos de pó. “O senhor doutor quer almoçar?”, perguntou a funcionária que tinha preferência, por antiguidade. “Como qualquer coisa rápida, deixe que eu arranjo”. E desviei para a cozinha, aqueci no microondas um daqueles guisados sérios da Fabiana, mas não consegui engolir nada por causa do stress.
Os técnicos seguintes, que eram mesmo ao pé da porta, faziam outra dupla curiosa. Eram ambos muito pálidos, dadas as condições insalubres do centro comercial. A falta de ar, de sol e de luz davam-lhes à pele uma transparência específica, uma quase inexistência, como se os órgãos todos do corpo clamassem em uníssono : “ Pele, nós evoluímos! Aqui não há nada que nos agrida, já não precisamos de ti para nos protegeres!”. Bastava-lhes uma camada de derme por cima dos ossos, à volta dos músculos, e estavam preparados para a vida. O primeiro técnico parecia ter um respeito devoto pelo computador. Passava-lhe a mão pelos lombos, vivia num certo temor. Carregava no botão e dizia, timorato : “Vamos lá ver o que é que ele faz.” “Ele não faz nada”, disse eu, ressentido. “Pode ser que dê”, disse ele. E, quando piscava uma luzinha, sorria, deslumbrado: “Olha, e não é que o sacaninha aceitou?”. E, realmente, a coisa mexia-se, parecia voltar à vida. Não quis estragar o momento com uma esperança indevida. “Ora vamos lá ver então”, disse ele. E esperava, o técnico, paciente. O técnico que inevitavelmente surgia dos fundos para contrariar o parecer do outro, era pura e simplesmente brutal. “Está lento, está velho”. “Eu sei”disse “precisa de ram”. “Precisa é de ser abatido ao activo”. O outro, corado, olhava-o de soslaio, mitigava: “Deixa ver, pode ser que dê”. A máquina acendeu, o monitor iluminou-se e não tinham passado nem dez segundos deu um suspiro e apagou-se outra vez. O bruto entrou a matar. “Ai é? Eu já te digo. Hás-de trabalhar nem que eu te encha o coiro de porrada!”. Eu perguntei se me davam o orçamento no próprio dia. O brando técnico acenou que sim com a cabeça e desapareceu na loja. Vi-lhe esvoaçar as abas da bata na zona dos DVD virgens. Fugia, decerto, do colega e da sua vítima.
Saí para o ar relativamente puro do exterior do centro comercial e comecei a andar sem rumo definido. Nada nestas novas envolventes está feito para o simples peão. É tudo longe, a estrada nunca mais acaba, atravessam-se passadeiras e rotundas e passagens aéreas antes de se chegar a qualquer lado propriamente dito, um lado que não seja mera transição. Em cima da passagem aérea, no entanto, estavam dois gandulos que me avaliaram, e felizmente concluíram que eu não tinha viabilidade económica. Assim que entrei em contacto com o ar, a minha ideia para a peça começou logo a fermentar como farelo, não sei se o farelo fermentará, provavelmente fermenta, há na realidade muito pouca coisa na vida que não fermente. O meu problema é que ficava tão agitado com a experiência da minha própria ideia, que não conseguia ter a calma suficiente para pensar. Precisava de falar à Teresinha, porque ela ouvia-me sempre com um ar muito sério e dizia-me em geral qualquer coisa que, embora não viesse a propósito, nem me ajudasse em nada, era o reconhecimento de que eu existia realmente. Não era um desses rolos vegetais que deambulam pelo deserto ao sabor do vento, a fazer tabelinha nos cactos. Era alguém que dizia alguma coisa a alguém e a quem alguém respondia. Não se podia esperar muito mais da vida real.
Liguei-lhe e, estranhamente, ela atendeu. Comecei por lhe perguntar pela Jessica, é melhor “lançar o diálogo”pelas coisas que lhe interessam directamente a ela. A Teresinha ao telemóvel distingue-se muito bem da Teresinha ao telefone fixo. No telefone fixo ela é o mais distendida que pode chegar a sê-lo, deixa-se levar por circunlóquios e, numa voz mais grave do que o habitual, arredonda, explicita, exemplifica, concretiza, organiza, desenreda, e até repete! Em contrapartida, a Teresinha ao telemóvel é sempre a despachar. Come as palavras. Economiza. Fala, mas contrariada. As frases são curtas, pejadas de interjeições, de imperativos. A linguagem é coloquial, às vezes usa mesmo algum calão. “Diz lá!” : é assim que ela me atende. E despede-se: “´Tá ”. Estou farto de lhe repetir que o pacote dela inclui quinhentos minutos de chamadas e também para telefones fixos, mas é uma coisa que lhe ficou de trás, de facturas traumáticas. E há também, claro, aquele assunto do cancro da orelha. Contei-lhe muito brevemente, já ansioso, do colapso do computador e da aparente reconciliação das nossas empregadas, perguntei-lhe quando voltava para casa e quem era esta Justa com quem agora, e por pouco tempo, esperava eu, ela residia. “Acabo de itemizar as necessidades educativas da Jessica”, disse ela. “Os problemas estão bem identificados, o diagnóstico está feito. Agora é uma questão de gerir a operacionalização das técnicas, de agilizar processos e de quantificar os resultados”. “E isso tudo” perguntei “ vai demorar quanto tempo?”. Contou-me então com algum pormenor o que se passara na educação de Jessica durante a última semana. Teresinha conseguira, com a ajuda da mãe Fabiana e de um meio-irmão que acabara de cumprir a sua primeira pena de prisão, levar a Jessica à psicóloga da escola. A sessão não “se saldou pelo sucesso pleno”, houve injúrias e ofensas corporais, mas a psicóloga, experiente nos problemas que afectam os adolescentes com problemas, usando o pouco que lhe foi dado observar, e em cooperação estreita com os outros professores da turma, fez um diagnóstico certeiro. A psicóloga Marieta albardou a Jessica com a Síndrome de Procrastinação Agravada, uma condição não incomum em adolescentes e adultos, que afecta o foro motivacional e organizacional. Explicava a doutora Marieta perante o conselho de turma que as pessoas atingidas por esta síndrome têm imensa dificuldade em priorizar as suas tarefas em função dos objectivos que se propuseram atingir. “Em vez de estudar Matemática,”disse-me a Teresinha, parafraseando a especialista “actividade fundamental para a prossecução das suas metas de vida, Jessica não fica sem fazer nada, porque a síndrome não implica que a pessoa se dedique ao ócio. O que acontece, pelo contrário, é que o doente se propõe várias tarefas e vai escolhendo as que lhe são motivacionalmente mais gratificantes de modo a relegar as outras, mais necessárias, para mais tarde ou, no pior dos casos, para nunca. Ora Jessica prefere passar o seu tempo no café a conviver ou efectuar pequenos furtos na escola, do que dedicar-se às actividades que lhe exige o seu projecto de vida. Isto tem consequências intra-psíquicas graves (para não mencionar as consequências especificamente judiciais, dado que a Jessica já fez os dezassete anos e é imputável) e daí, dessa inibição organizacional da priorização, surgem a ansiedade, a culpabilidade e a baixa auto-estima, que depois se traduzem em excessiva agressividade e comportamentos em sala de aula que dificilmente favorecem o processo de ensino-aprendizagem”. Quando eu quis brincar com a Síndrome de Procrastinação, mencionando a sinopse que eu devia estar a escrever em vez de beber drambuie com gelo a ver programas inanes na televisão pela noite dentro, já a Teresinha começara uma outra conversa com a Justa. Penso que tentavam hierarquizar objectivos, ouvi-as discutirem se “reflectir” seria objectivo adequado àquele nível etário. “Ouvir, falar, escrever”. “Falar, ouvir, reflectir, escrever”. Mas a Justa não parecia inclinada a considerar o “reflectir” como uma actividade que pudesse estar implicada nem no falar, nem no ouvir, nem no escrever. Fui eu que tive de acabar a chamada, a Teresinha fica logo sem cabeça para nada quando lhe começam a mexer nos objectivos.
O computador afinal estava bom, não tinha sido nada, um tremor, um falso alarme, ou pelo menos, nada que os técnicos pudessem reconhecer como um problema. O bruto ainda fez mais uma tentativa de me vender um portátil que estava em promoção e que ia deixar em breve de ser comercializado, mas eu safei-me a tempo e ainda nessa noite enviei o malfadado mail para o Ser e Não Ser . Inesperadamente, no dia seguinte, tinha na caixa de correio electrónico o consenso desejado. Agendou-se um encontro para o outro dia às cinco da tarde. Entrei de imediato num pavoroso frenesi criativo. Queria levar já para a reunião pelo menos a sinopse da peça e, mais importante do que tudo, a estratégia para neutralizar a Isabelita, persuadir o Juvenal e a Constância e argumentar contra o que quer que fosse proposto pela Sandra Amanda. Esperava não ter de puxar pelos galões. Afinal eu era co-fundador e co-criador da companhia, tinha direito ao meu espaço e ao respeito dos outros pelo meu trabalho. Quando ia a meio da sinopse, o computador apagou-se de novo sem um ai. O meu entusiasmo, no entanto, não se deixava abater. E lá fomos, toda a tarde ligando e desligando.
A Constância insistira em reunir numa esplanada com vista, e assim foi. Cheguei como sempre cinco minutos antes da hora, procurei o melhor lugar para nós, um canto que dava para um abismo sobre a cidade velha, e lancei uma última olhadela ao fruto de um dia de trabalho e de uma noite de insónia: meia folha em corpo 16, a sinopse da peça que eu me propunha escrever para o grupo. Sempre achei curiosa esta ideia generalizada que considera o atraso uma coisa socialmente aceitável. Tudo é melhor do que ficar na situação inferior de ter de esperar pelos outros. Parece que não se é ninguém, não se tem mais nada que fazer. Deve ter a ver com uma tradição de gente à espera na praia pelas naus que nunca mais chegavam. Esperar é para fracos, mulheres e crianças. Os homens partem nas caravelas e voltam, se voltarem, um dia mais tarde. A Constância apareceu com a Isabelita, as duas muito tranquilas, de braço dado, pelas cinco e meia. O Juvenal chegou esbaforido às seis menos um quarto. Vi que ficou nitidamente satisfeito por aguentar mais tempo de atraso do que nós. “Já cá estão há muito tempo?”, perguntou, ainda de pé. “Chegámos mesmo agora”, respondeu a Constância. A Magda apareceu às seis, já eu ia na terceira imperial. A Sandra Amanda telefonou às seis e cinco a avisar que ia chegar bastante atrasada e que levava o Tó Quinito. Mas que fossemos começando.
Eu estava incrivelmente nervoso. Era a minha primeira sinopse. Ainda tentei desviar a atenção dos outros mais uma vez para um grupo-estereótipo de turistas japoneses que passava ao fundo, mas a Constância chegou-se à frente, bateu com a mão no tempo da mesa e impôs: “Conta lá, não sejas chato!”. A Magda mantinha-se misteriosa, tinha desenvolvido uma maneira muito grácil de fingir que estava na esplanada, embora estivesse de facto, de corpo e alma, e espírito, na telenovela, as vinte e quatro horas do dia. “Bem” disse eu “então é assim. O que eu quero fazer é um texto forte. Poderoso. Que faça reflectir.” “Porreiríssimo”, disse o Juvenal, “idiotice já há que nos chegue”. Tive um momento de pânico verdadeiro. A minha ideia era completamente imbecil! Completamente destituída de interesse! “É a história de um sem abrigo...”, comecei, e assim que o Juvenal acenou com a cabeça que não lhe parecia mal de todo, avancei : “...um homossexual e uma prostituta... negra, duplamente explorada; o sem abrigo a certa altura fica cego...”. “De um olho só, ou dos dois?”, perguntou Constância, não se sabe porquê. “Fica cego”, repeti. “E emudece também e então aparece-lhe em visão interior um anjo homossexual, que tem um caso de amor desesperado com uma prostituta negra, heroinómana, cujo chulo é um ex-combatente do Ultramar, que vive num sétimo andar com uma avó entrevada”. Calei-me. “Onde?”, perguntou Constância. “Onde o quê?”, perguntei. “Onde é que ele vive com a avó?”. “Na Graça”, disse eu. Constância: “Mas estás a rir de quê, Jorge?”. “É uma paródia!” exclamei. “Pensei que se percebesse só pela sinopse…um sem abrigo, um homossexual, são estereótipos do neo-naturalismo dominante…”E, já mais baixo, quase vencido: “É uma paródia, é comédia…”. Houve uma pausa. “Isso é sempre arriscado”disse Juvenal com inteligência. “Nunca se consegue garantir a cem por cento se as pessoas vão perceber uma paródia…”. Havia casos históricos documentados de equívocos. As interpretações relativas às Artes, e à Vida, pois que elas superabundam e o nosso tempo na terra é escasso, são cada vez mais convencionais. “Para ser comédia tem que ter puns, se não ninguém percebe…as pessoas riem-se quando a coisa é patentemente para rir“ disse o Juvenal. E Constância: “Não brinques. Há alta comédia e baixa comédia. Não me vais dizer que Molière…”.”Uma paródia ”pontificou a Magda “é, na verdade, uma complicação desnecessária. Se não tens nada de realmente novo e desafiante para dizer, amigos como dantes, a gente não te leva a mal e gosta de ti na mesma”. A Isabelita, picada, saltou em minha defesa : “Não percebo porque lhe chamas paródia…Eu acho magnífico. A peça tem tudo! Problemas reais…Tem multiculturalismo…Falta talvez um cigano…Tem um sem abrigo, homossexuais, anjos, prostituta negra...”. E o Juvenal : “É forte, e fala das coisas que existem, da nossa realidade social. Mas com imaginação, é ficção, não é nenhum tratado social! E até lhe detecto algum humor…”.“Falta uma criança abusada!”disse Constância, e estava a falar a sério. Eu via a minha sinopse, tosca como um mamute e destinada à mesma obsolescência, a escorregar para o abismo do que se imagina deva ser uma peça de teatro contemporânea. “Não me parece…”comecei. “As margens da vida”, disse a Isabelita. “O título podia ser Nas Margens da Vida”. E a Magda: “Para os casos da vida temos as notícias da televisão e da rádio, não é no palco que isso se costuma fazer”. “Mas tudo são casos da vida!”, argumentei . “Tens razão”, disse Juvenal, respondendo à Magda. “Teatro é outra coisa”. “É uma história de amor” disse eu, a ver se pegava. “O sem abrigo, estás a ver, a última coisa que ele vê antes de cegar é esta bela mulher negra de formas perfeitas…” A Magda interrompeu: “Mas porque não fazemos um clássico? Há coisas tão boas, tão esquecidas, podíamos refrescar algum repertório…” E Constância: “Eu não faço mais Frei Luís de Sousa, aviso já!”. “Vivemos na época dos sketches”, disse o Juvenal.
Chegavam enfim Sandra Amanda e seu Tó Quinito, que impressionou logo favoravelmente o público feminino. A Sandra marcou o território: “Pede-me aí um café, e diz ao homem que traga adoçante.” E o Quinito, que acabara a ronda de cumprimentos e se preparava para assentar, levantou-se e foi fazer a encomenda. Mas as mulheres seguiram-no sub-reptícias com os olhos, enquanto o Juvenal e eu fingíamos entreter-nos com as nossas bebidas, para as deixarmos apreciá-lo à vontade. Esta admiração delas acabou por se virar contra mim, e daquela maneira imprevisível e assustadora que tomam todos os processos que incluem mulheres. Quando a Isabelita, que tinha sido, digo-o entre parênteses, das mais acintosas no olhar que deitou ao namorado da Sandra, se pôs a descrever muito exaltada e com aqueles requebros patéticos dos flirts da meia-idade, a sinopse da minha peça, a Sandra teve um ataque de riso que fez voltarem-se para nós duas mulheres que se riam conluiadas noutra mesa. “Um anjo homossexual?” guinchou. Percebera intuitivamente o potencial cómico da coisa. Mas o Quinito, como especialista, deixou-se ficar neutro, num meio sorriso, à espera de uma oportunidade para intervir, alisando com elegância o amarrotado peito do casaco de linho. O Juvenal agora também já parecia achar certa graça à ideia: “E um GNR corrupto!”, disse o Juvenal, obtendo novo ataque de riso da miúda. “Não queiram meter o Rossio na Betesga!” gritei, exasperado. E esta expressão popular pareceu ainda mais hilariante à Sandra, que é filha da televisão privada e só conhece o povo a fazer de criada ou de motorista na telenovela. Lá se acalmaram. A Sandra disse : “Que ideia tão estranha, ó Jorge. Pensei que tínhamos concordado em fazer comédia que tivesse a ver com os problemas reais das pessoas, que retratasse um bocado...” E logo a seguir, brutal: “O Tó tem uma ideia muito fixe sobre dois amantes com SIDA...” O Tó teve um pequeno sobressalto, a ideia fora lançada assim sem briefing, sem contextualização, atirada para o tampo da mesa à bruta sem qualquer resguardo. “Sandra!”, censurou ele. “O que é? Ias falar nisso, não ias?”. “Sim, mas...não assim, sem qualquer controlo”. “Isso é que é um problema real!”, disse a Sandra. “E portanto os sem abrigo não são reais?”, perguntou Isabelita. “São mais reais do que amantes com SIDA”, afirmou Juvenal. “E até é uma realidade que o Jorge conhece bem, porque trabalhou ali no Banco Alimentar.” “Não trabalhei, não”, disse eu, para evitar o estabelecimento de qualquer equívoco. “Fui lá uma vez saber se precisavam de alguma coisa”.“ Mas os amantes com SIDA são menos reais por acaso do que as prostitutas negras ou os sem abrigo?”, disse a Sandra. “São” respondeu Juvenal “a SIDA é um problema de ricos e famosos e é da moda e por isso é que tem publicidade”. “Não é a SIDA em África”, disse a Constância. “Essa não aparece na televisão porque não fica bem na fotografia” rematou o Juvenal. “Mas tu sabes quantos milhões de pessoas há com SIDA no mundo? Não é um problema real das pessoas?”, gritou a Sandra. “Os sem abrigo e as prostitutas também são aos milhões no mundo, se a realidade para ti se mede aos milhões, é uma coisa estatística, temos milhões de tudo”, disse o Juvenal. “E as crianças?”, perguntou Isabelita. Mas a coisa já lá não ia com crianças. “E o anjo?”. A Sandra virava-se a mim, sabia que eu não tinha por onde fugir. “É o elemento mais convencional da fantasia, é uma espécie de principezinho, que representa a pureza do espírito...” murmurei. E a Magda, que se mantivera discreta e observadora e se reservava para as estocadas: “Mas se o que vocês querem é realidade, estendemos um microfone aos queixos do povo e pomo-lo a falar para dentro de um gravador.” Então o Quinito, que fizera cursos de guionismo e sabia “gerenciar as situações”como ele próprio garantiu, avançou uma proposta: “Penso que talvez devêssemos pensar primeiro no formato e depois nos conteúdos. E penso que com as ferramentas adequadas teremos um formato funcional e operatório. Penso que há diversas instâncias de configuração, visualização, diagnóstico e resolução de problemas, de ajuda e suporte, e com o menu apropriado de opções flexionadas, o output criativo é mais viabilizante do espectáculo”. O Quinito falava menu, falava Windows. “Portanto”, começou o Juvenal, “primeiro o formato e depois a substância”. “Parece evidente”, rematou ele, brando. “Primeiro define-se a dimensão do projecto, depois as propriedades do esquema de sponsorização em diálogo estreito com a determinação do público-alvo e das opções comunicacionais”. Perante o silêncio respeitoso dos circunstantes, que tentavam perceber a que realidade ou realidades se referiam aquelas frases do interessante namorado da Sandra, a própria disse: “Este projecto do Tó é muito fixe e consegue com certeza investidores e apoios”. “Ah, já cá faltava o apoio!”, resmungou o Juvenal. “Se conseguires montar o espectáculo sem apoio e sem sponsors, vai em frente!”, gritou a Sandra. O Quinito adiantava-se pelas coisas práticas : “Oitenta minutos. Eles não aguentam mais que isso.” “É um grande mistério, não acham”, começava a rábula do Juvenal “que o mesmo povo que mama televisão doze horas por dia se preciso for, ao almoço, ao jantar e à ceia, não aguente mais do que oitenta minutos de teatro, bom, mau ou assim-assim…eu não consigo explicar isso, talvez algum de vós tenha uma ideia que me ajude…”. “Depende quase exclusivamente do bom formato. Em televisão, por exemplo, está demonstrado que funcionam as séries de treze episódios de cinquenta minutos. É uma questão de configuração. Temos que dar às pessoas coisas que elas reconheçam, porque o efeito de estranheza pode ser entendido como hostilidade e até arrogância”.
A tal história dos amantes com SIDA era portanto uma história de amor, mas a história dele – ao contrário da minha - já trazia incluída a mensagem de esperança. Era uma história de coragem em que os personagens “entabulavam” uma viagem pessoal de auto-descoberta, de modo a aprenderem qualquer coisa sobre si próprios e a transmitirem ao espectador uma lição de optimismo sobre o mundo e a vida, depois de indescritíveis cenas de tortura emocional e física infligida a todos sem excepção; e embora morressem os dois amantes cobertos de gráficas chagas, abraçados à boca de cena, e o público, esperava-se, saísse da sala lavado em lágrimas, eram lágrimas boas, de esperança num “mundo melhor”. “O que será”, pensou alto Juvenal, “para as novas gerações, um mundo melhor? Para nós era paz, pão, liberdade, habitação e hoje temos isso tudo, embora a crédito, com o juro sempre a subir.”O Quinito, que já não era menino nenhum, estava mais para os trinta e cinco do que para os vinte e cinco, reflectiu. “Penso que a minha geração não viveu muito esse problema. Um mundo melhor é só uma forma de dizer. Neste caso particular, um mundo em que os amantes não morram de SIDA.” “Percebo”, assentiu o Juvenal. “Parece-me justo”. As mulheres olhavam para mim com aquela compaixão hipócrita que elas dedicam aos medíocres se não precisam mais deles. “Acho interessante”, admiti, derrotado. “ É um tema muito actual. E eles são, claro, homossexuais?”, perguntou a Constância. “Acho que é melhor serem bissexuais, para não se alienar o público feminino”, disse o Quinito. “E também são toxicodependentes?”, perguntei. Eu tenho um certo carinho pelo tema da toxicodependência, talvez por não conhecer ninguém que esteja a ser realmente afectado por ele. “São, pois” disse a Sandra. “E um deles, a mãe até é alcoólica.” Eu rendi-me. “Depois falamos, para acertar datas e outros pormenores”. O Quinito, de camisola preta de decote em bico e fato de linho cor de grão, ergueu o copo de Pernod e quis fazer uma saúde. E pôs-se a falar destas personagens, que eram um emaranhado de conflitos psicológicos e de impossibilidades práticas e tocavam quase todas as questões da actualidade, fazendo o pleno dos públicos-alvo : o amante com SIDA era fadista, do Belenenses, para não alienar o público dos três clubes maiores, cinquenta anos, cabelos grisalhos, ar distinto, bom nome de família, simpático, galante, bom cavaleiro e bissexual, casado com uma senhora muito fina (extraterrestre) e pai de dois filhos naturalmente gémeos (o Martim, toxicodependente e o Bernardo, assassino em série). Tem um passado escuso de bares de alterne e noites de rambóia e é arruinado por um tipo miserável que o chantageia e o obriga a meter-se no tráfico de armas e de mulheres (que ele viola com elegância e bom gosto, depois de excruciantes cenas de tortura, ao som de Bach e Alfredo Marceneiro) ; e a amante, rapariga de vinte e dois anos, meia asiática, muito bonita, corpo escultural, cabelos castanhos dourados e olhos amendoados, top model, lésbica, doutorada em Física das Partículas, etc. Em causa está uma fábrica de moléculas, pela qual todos se esgadanham, embora se perceba apenas que o bem imóvel já vai na segunda hipoteca.
Em casa tinha um e-mail da Teresinha que me enviava em attachment a primeira composição da Jessica digna desse nome. No corpo do mail, orgulhosa e provocante, Teresinha escrevia : “Quem realmente quer alcançar os seus objectivos e, no médio e longo prazo, as suas metas, trabalha e labora e, no final, é recompensado com resultados palpáveis. É um labor de amor, uma conquista dia a dia conquistada. Mas os resultados aí estão.” O épico não era muito o estilo da Teresinha. Eis a redacção da Jessica, já passada no crivo do corrector ortográfico: “a história é o sapo cocas uma tartaruga que estava num campo e havia um anão que também estava no campo a trabalhar e também havia um gafanhoto e uma rapariga mais velha a tartaruga foi e pediu ao anão para ir salvar os filhos dela que estavam numa ilha cercados e o anão foi a casa buscar as ferramentas porque não acreditava nas novas tecnologias”. Era tema livre. Era no que dava ter canais a mais.
Decidi naquele mesmo instante tirar um curso destes de escrita criativa, para aprender a escrever diálogo e a conseguir apanhar melhor as personagens porque quando eu escrevo ou faço as adaptações para as peças, aquilo soa tudo ao mesmo, desde a mulher da limpeza ao Barão de Chaves. E também queria aprender a não me dispersar na história que quero contar. Escrevi tudo isto à Teresinha que instantaneamente me respondeu: “toda a acção de formação é boa para a tua realização como pessoa e como indivíduo. Isto é válido para ti e para todos”. Desconfiei que, sob a auspiciosa influência da Justa, a Teresinha poderia sair da depressão, entrando não sabia ainda muito bem em quê; só o tempo o diria.
Por sorte, tinha na inbox um mail que me chegara há umas semanas sobre uma espécie de escola em que se realizam uns workshops sobre coisas avulsas, tapdancing, shiatsu, escrita criativa, mesoterapia, estomatologia, pintura a óleo, termodinâmica, e tudo o que nos passar pela cabeça aprender ou ensinar. Seriam três meses, quatro horas por semana, duzentos e cinquenta euros. Corri a inscrever-me online. Entrei de novo em frenesi criativo, queria levar já qualquer coisa alinhavada para a nossa primeira sessão. Mas sentia amargamente a falta de Teresinha. Só me apetecia escrever-lhe, falar com ela de coisas que nos transportassem aos tempos pré-pedagógicos. Mas sabia que o diálogo havia de encravar logo no princípio, eu havia de dizer qualquer coisa que ela acharia injusta e desagradável. A essa coisa ela responderia outra, magoada, com irritação. E daí àqueles resmungos que caracterizavam as nossas últimas discussões não faltaria muito. Pensando melhor, de momento eu não tinha coisas agradáveis para lhe dizer. Estava furioso com o abandono em que o delírio dela me deixava. Por isso me agarrava à escrita, à fantasia de um texto perfeito, debatido com interesse e boa colaboração inter pares, tormentoso, com certeza, mas amorosamente amparado. E os duzentos e cinquenta euros não eram solicitados à cabeça, tornando o curso ainda mais atraente. Podia ser até que me safasse sem o pagar.
Esta tal professora de escrita era completamente intratável. Nunca consegui perceber o que é que ela queria. Tinha uns repentes, uns entusiasmos, umas embirrações. E dizia umas frases em Inglês, ou em Francês, mas muito baixinho, de passagem, e ao mesmo tempo fazia uns olhares entendidos, como se fosse óbvio para toda a gente que “diálogo é diálogo e conversa é conversa” e que “no teatro tudo deve ser acção indirecta”. Por vezes, entusiasmava-se, repetia: “Subtexto! Subtexto!”, mas negava que houvesse regras, que houvesse receitas! Zangava-se e ameaçava sair da sala e não voltar mais, se alguém lhe falava em “escrever um texto com mensagem”. Às vezes dizia, acintosa: “Escrevam pouco, por amor de Deus!”. E quando nos via pôr a caneta no papel para começar algum exercício arrevesado que ela acabara de inventar, gritava : “Não, não escrevam! Nunca escrevam a primeira coisa que vos vem à cabeça! Sejam espontâneos um pouco mais tarde!” Ficávamos dezassete papalvos de caneta no ar a olhar uns para os outros e passados uns trinta segundos, dizia: “Agora! Podem começar! A quinta ideia é que é boa!”. Julgaria ela que eu tinha tido quatro ideias em trinta segundos? Devia ser rábula, só pelo irrisório da coisa. Fui afinal percebendo pelo andamento que havia ali muitas regras, muitas instruções e obrigações – ao contrário do que esperara e ela própria afirmara. Só que as regras eram o que lhe dava a ela na bolha. E quando aparentemente seguíamos aquilo que ela queria, e nos esforçávamos por adivinhar o que seria para ela “diálogo e não conversa”, criticava na mesma, era ainda mais feroz! Logo na primeira sessão, informal, a professora de escrita destruiu em botão a maior parte das sinopses. A um advogado que se propunha escrever uma pequena peça que metia um anjo e um vagabundo, disse que “estão proibidos de incluir nas vossas peças vagabundos, mendigos, meninas pequenas, crianças aos pares, anjos, cegos e avós paralisadas, enfermas ou cegas e paralisadas, e que tenham visões e falem em deuses, com deuses, sobre deuses, por enigmas ou profetizem. E livrem-se de pôr na didascália que os personagens sorriem, ou que fazem um meio sorriso! ”. Eu dobrei a minha folhinha discretamente e pensei no que dizer quando chegasse a minha vez. Mas ela tão depressa emitia regras arbitrárias como se tomava de amores por alguma ideia que me parecia, a mim, tão interessante ou desinteressante como as outras. “Eu quero escrever”, disse um dos sinopsistas “sobre duas irmãs muito velhas que vivem isoladas numa aldeia e que são visitadas pela filha de uma delas, também já velha”. Ela achou muito bem. Outro queria tratar uma crise conjugal. Uma senhora de meia-idade, que já tinha os filhos criados e tempo livre, achou que lhe calhava melhor um conflito terrível entre um pai e um filho; seria uma tragédia “à maneira grega”; outra queria qualquer coisa passada dentro de um elevador. Outro queria nas escadas. Outro era numa barraca à beira-mar. Ela achou tudo muito bem! Mas se lhe apresentavam “dois irmãos com tuberculose multi-resistente”, ou “um emigrante que volta de França com Sida”, “uma jovem grávida, toxicodependente”, “um empresário de sucesso”, “uma família de grandes vitivinicultores do Norte dizimada pela Revolução de Abril”, tomava-se de raiva e troçava dos desgraçados com uma arrogância que raiava a agressão verbal. Sentíamo-nos todos inúteis, estúpidos! Mas eu acho que era puro preconceito dela, ficava presa na maneira de dizer, não percebia que aquilo era só um esboço. Uma das participantes no workshop queria fazer um texto só visual. Seria apenas a descrição das acções dos actores. Ela achou bem! “A minha peça não tem palavras”, disse finalmente o da ponta da mesa. E quando estávamos todos à espera de uma tacada humorística, ela fez uma pausa e disse : “Ok”. Eu tinha mudado de sinopse enquanto o diabo esfrega um olho e quando chegou a minha vez surpreendi-me a dizer que me interessava a realidade virtual, que era um homem da contemporaneidade, que para mim o que contava eram o presente e o futuro, e depois atrapalhei-me e emendei para “só o presente”, e cada vez mais embrulhado acabei por defender que “o presente é a única coisa que me interessa embora obviamente não exista, porque se torna logo passado e é uma tensão entre passado e futuro”. Mas como ela não reagia, e olhava neutra para mim, fui avançando. Afirmei, com ousadia, que talvez me decidisse por uma peça toda passada na internet por e-mail, em que um homem é perseguido na vida real por uma família que ele constituiu há uns anos numa cidade virtual chamada Second Life. Era uma espécie de SIMS , mas com cerca de meio milhão de habitantes e toda a vida real de uma cidade, embora não existisse materialmente em lado nenhum. Ela disse: “A ideia parece-me de tal maneira...abstrusa...imbecil…grotesca...que exige ser feita. Fico curiosa de saber como é que isso depois se põe em cena”. Mais uma vez, não percebi se estava a brincar ou se estava a falar a sério, mas resolvi tentar. E tudo se pode pôr em cena, o remoque dela só demonstrou que de facto não percebe nada de teatro.
Mas é claro que não fui longe. Nessa noite a Teresinha enviou-me uma estranha declaração de amor em que – e vou resumir – me dizia que a sua missão pedagógica não lhe permitia distracções, nem sequer a distracção de ter um marido a tempo inteiro e que, por isso, não voltaria tão cedo para casa. Acrescentava que se sentia agora muito mais próxima de mim, que se sentia capaz de me dizer um certo número de coisas que lhe andavam atravessadas há anos, entre elas que me levara a mal eu passar tanto tempo com a minha família da internet e que essa fora uma das principais causas do seu esgotamento. Fiquei estarrecido. A Teresinha sabia da minha segunda vida, sempre soubera, ao que parece, e tomava-a muito mais a sério do que eu. Para mim a Deirdre e os miúdos eram como ter um papel na telenovela, uma forma de treinar as minhas capacidades enquanto actor e homem que usa a realidade tal como ela se vai apresentando, para treinar os aspectos artísticos. Mas passado o primeiro choque, sentei-me para ler com atenção o que ela tinha para me dizer.
na imprensa
Paradoxo do Comediante, de Pedro Mexia, in Público
"A literatura não pode ser um catering, com indulgências ao gosto dos leitores", de Teresa Carvalho, in Jornal Ionline
"Ilusão (Ou o Que Quiserem)" de Luísa Costa Gomes vence o Prémio Namora, in Público
O Regresso de Luísa Costa Gomes, in Destak
"Rir (ou o que Quiserem): o Humor em Ilusão", tese de Rui Marques Abreu para a Universidade de Aveiro
"A literatura não pode ser um catering, com indulgências ao gosto dos leitores", de Teresa Carvalho, in Jornal Ionline
"Ilusão (Ou o Que Quiserem)" de Luísa Costa Gomes vence o Prémio Namora, in Público
O Regresso de Luísa Costa Gomes, in Destak
"Rir (ou o que Quiserem): o Humor em Ilusão", tese de Rui Marques Abreu para a Universidade de Aveiro