Nunca Nada de Ninguém, teatro, cotovia, 1991
Desde a sua estreia em 7 de Novembro de 1991 que NuncaNada de Ninguém tem tido, no conjunto das peças que escrevi, um destino singularmente feliz. Primeiro encenado por Ana Tamen no ACARTE da Fundação Gulbenkian, o texto foi apresentado depois por diversos grupos em Portugal, e foi traduzido, que eu saiba, em italiano para uma leitura encenada nas Intercity Plays de Florença, e em inglês para a encenação de Eduardo Barreto em Londres; mais recentemente, um excerto seu foi trabalhado por Nuno Carinhas para uma leitura encenada no Teatro Nacional de S. João.
Fico grata, como dizem os slogans, pela preferência. Parece que o texto, apesar de algo datado em algumas passagens que hoje têm um valor quase “histórico”, continua a atrair e a motivar quem continua a gostar de ler e de fazer teatro. Por isso mesmo se decidiu reimprimi-lo, sem alteração do texto original.
Luísa Costa Gomes
Desde a sua estreia em 7 de Novembro de 1991 que NuncaNada de Ninguém tem tido, no conjunto das peças que escrevi, um destino singularmente feliz. Primeiro encenado por Ana Tamen no ACARTE da Fundação Gulbenkian, o texto foi apresentado depois por diversos grupos em Portugal, e foi traduzido, que eu saiba, em italiano para uma leitura encenada nas Intercity Plays de Florença, e em inglês para a encenação de Eduardo Barreto em Londres; mais recentemente, um excerto seu foi trabalhado por Nuno Carinhas para uma leitura encenada no Teatro Nacional de S. João.
Fico grata, como dizem os slogans, pela preferência. Parece que o texto, apesar de algo datado em algumas passagens que hoje têm um valor quase “histórico”, continua a atrair e a motivar quem continua a gostar de ler e de fazer teatro. Por isso mesmo se decidiu reimprimi-lo, sem alteração do texto original.
Luísa Costa Gomes
do espectáculo
NUNCA NADA DE NINGUÉM, texto de Luísa Costa Gomes,
encenação de Ana Tamen, Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, 1991;
leitura encenada no Intercity Lisboa, VIII Festival Internazionale di Cittá in Cittá, Florença, 1995 encenação de Luís Filipe Ramos e do Teatro Capicua, do ISEG, no Teatro Taborda em Novembro de 1997
Cockpit Theatre de Londres em 1999, com encenação de Eduardo Barreto
Teatro Nacional de S. João, LGC Suite, fotos de João Tuna
Nunca Nada de Ninguém - Primeiro Interlúdio |
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(Em palco estão quatro mulheres, sentadas em cadeiras dispostas assimetricamente; a primeira mulher está na esquerda baixa, a segunda mais ou menos ao centro, a terceira na direita baixa; a quarta mulher é a que está mais recuada, ao centro.
O primeiro interlúdio é constituído pelos discursos destas mulheres, discursos curtos, entrecortados de pausas, interrompidos por outros, retomados, abandonados; o que será necessário manter é o fluir das palavras e das histórias. Não há diálogo: as mulheres expõem os seus casos, estão perante o médico, ou amigos, ou autoridades, a quem se confessam e explicam).
Primeira mulher - Nem sei o que vim cá fazer. Não conseguia dormir, vou quase a adormecer e lembro-me e acordo. Lembro-me de tudo, fora o que invento e tudo junto é demais. Tranquei-me no quarto, não me serviu de nada, ele meteu o pé à porta, foi porrada de meia-noite, fartei-me de gritar que não tinha culpa, que não tinha culpa, mas ele é polícia, para ele toda a gente tem culpa. Deu-me aqui na cabeça, ia-me matando. Tinha eu o quê? cinco anos, para aí uns cinco anos. (Pausa) A minha mãe diz que tenho tendência, que é azar, são coisas que me acontecem, parece que eu as chamo. Se calhar é verdade. O mal vem ter comigo, não vê os outros, escolhe-me, vem direitinho a mim. E era isto que me tirava o sono, antes de... (Pausa. Sorri.) Até tem graça porque ontem jantei bem, estava calminha, pensei hoje é que é, durmo aí umas quatro horas, quatro horas para mim já é uma festa, uma pastilha das fortes é para o que me dá, mas estava a sentir-me porreirinha, vi a telenovela, a irmã do recreio até falou comigo, foi simpática para mim como já não era há muito tempo, se calhar vinha da confissão, que hoje é dia de padre. Pronto, estava tudo bem. Começo-me a despir para me deitar, aí vem o medo, um medo horrível; ai a porcaria!, pensei eu, mas já não havia nada a fazer. Foi por aí acima.
Segunda mulher - Como as coisas são. Começam por ser pequeninas, depois crescem, estragam-se... Eu... comigo é a mania que ele tem de limpar os pés no tapete quando entra em casa ... não é nada de especial... é uma coisa que a mãe dele lhe ensinou quando era pequeno, sei lá, ficou-lhe aquela de limpar os pés no capacho antes de entrar em casa. Isto não interessa, não vale nada, não tem importância nenhuma. Mas... eu estou em casa... são sete, sete e um quarto, sete e meia... oiço-o abrir a porta... ponho-me toda a tremer, fico com pele-de-galinha ... "vai limpar os pés no tapete... vai limpar os pés no tapete...", até me encolho toda para não ouvir, mas lá está... raspa, raspa. São dias e dias disto, semanas, meses. Chego a casa cada vez mais tarde. Cada vez me apetece menos ir para casa. Isto é ridículo, mas as coisas são mesmo assim. De resto estamos bem, conversamos e tudo, fazemos a nossa vida sexual normal, gostamos de estar um com o outro. Mas aquilo dos pés... depois, não temos filhos, de maneira que eu tenho mais liberdade para chegar tarde... (Olha para o relógio). Sete e um quarto...
Terceira mulher - Eu gostava que me ajudassem. Não sei a quem me hei-de dirigir. É que é o meu marido.
Primeira mulher - Esqueci-me de dizer uma coisa ao senhor doutor. Não sei se é importante. É o meu pai. (Pausa). Mas é incrível. Como da outra vez, no meio da rua, metem-se comigo, chamaram-me tudo, ainda levei e depois, "desculpe lá, foi confusão, pensei que fosse outra pessoa". A minha mãe diz que eu tenho
de ter cuidado, mas como é que eu posso ter cuidado?
Terceira mulher - Casei-me há cinco anos, tenho dois filhos pequenos, moro fora de Lisboa, trabalho o dia todo. Levo duas horas para chegar ao emprego. Sou secretária numa grande empresa de construção civil. Sinto-me realizada na minha profissão, tenho boas perspectivas de aumento. Estamos a pagar a nossa casa, todo o dinheiro é pouco. Sou uma pessoa que tem facilidade em fazer amigos, porque sou alegre e boa companhia. Os patrões também acham. Estão sempre a fazer elogios, dizem que não sabem passar sem mim. (Pausa) Sou nova, tenho a vida toda pela frente. Depois chego a casa, vou buscar os miúdos à vizinha que mos vai buscar à creche, faço o jantar, uma coisa rápida, eles até gostam mais.
Quinta mulher (levantando-se, exaltada) - Eu sempre tive a certeza de que a minha mãe gostava de mim. Desde o dia em que nasci que tive a certeza, cá dentro, de que a minha mãe gostava de mim. E depois dos horrores todos que eu passei, aquele amor que ela me deu em pequenina, enquanto foi viva, salvou-me, até hoje. Se eu não estou doida ainda, se eu estou viva ainda, é porque ela gostou de mim, e eu tive a certeza disso desde o instante em que nasci. (Senta-se). Deixou-me uma carta, quando morreu. Está num cofrezinho de madeira, em cima da minha cómoda. Disse que era para eu ler no dia em que me nascesse um filho.
Segunda mulher - No princípio era tudo bestial, eu gostava muito dele e ele de mim. Talvez ele um bocadinho mais de mim que eu dele, mas isso é normal. E até pensava muitas vezes que tinha uma sorte dos diabos, que tinha um marido que não tinha manias, quando ouvia as desgraçadas das minhas irmãs e das minhas amigas queixarem-se dos maridos delas. Ai, o Manel não gosta de cinema, só de vídeo, de maneira que tenho de ir sozinha, o Fernando detesta dançar e eu adoro, o outro não quer ir de férias porque fica ansioso quando não trabalha, o outro não sei que mais, que inferno! O André, ao menos, come de tudo, não chateia nada, é fácil de se viver com ele. Tudo o que eu lhe ponha à frente está bom, marcha logo, vai a tudo, gosta de pessoas, gosta de sair, é simpático, pronto, não tem as manias que a maior parte dos homens têm. O André não. É só aquilo do capacho e não se pode dizer que seja uma mania. Até é uma coisa bem feita, se eu a conseguisse aturar.
Quinta mulher - Há coisas de que eu não falo, desculpe. Tenho vergonha. Hoje toda a gente fala de tudo, das coisas mais íntimas, dos amores, até de coisas do corpo, do nosso corpo, mas eu tenho vergonha, desculpe. Não é por ter tido educação religiosa, nem por excesso de pudor, - ou até pode ser por isso - mas é que há coisas que por mais que se fale delas, nunca ficam esclarecidas. Nem se chega lá perto. Mas não se consegue compreendê-las.
Segunda mulher (olha para o relógio) - Já deve ter chegado. Meteu a chave à porta, deu um passo dentro de casa, limpou os pézinhos. (Suspira). Uma coisa pequenina mas que sorve as outras todas. O que mais me chateia é que ninguém me avisou que isto podia acontecer. Disseram-me, olha que ele começa a ter amantes, olha que ele começa a beber, a jogar, a dar menos dinheiro para a casa... Tanta coisa que podia acontecer e foi acontecer o que não estava previsto. (Pausa. Falsamente sentenciosa) Já dizia a minha avó: "É
muito fácil conquistar um homem, o difícil é mantê-lo!".
Quinta mulher - Eu posso contar uma história que tem a ver com isto. Não é a minha história, mas é como se fosse. Não interessa estar aqui com lamúrias, a falar de desejos, do que eu gostava de ter sido e do que gostava de ter feito e do que gostava que me tivesse acontecido, porque não fui, não fiz, não aconteceu e essa é que é essa. (Pausa) Mas agora imagine uma Igreja pequena de aldeia e uma menina a rezar de véu e de mãos postas. As tias envergonham-se dela, por causa do "mistério do seu nascimento", como elas dizem, e levam-na só à missa, porque tem de ser e a mais lado nenhum. A menina deixa-se ficar encolhida e de joelhos o tempo todo, os olhos pregados no crucifixo toda gelada, e espera que a levem de volta a casa. Mas um dia a menina fez um milagre, elevou-se nos ares, no meio da congregação que cantava o Salve Regina, ressuscitou e desapareceu. (Olha para cima) Ficou tudo especado, a olhar.
Segunda mulher - Bom. Mudemos de assunto.
Quinta mulher (levanta-se e apoia-se no espaldar da cadeira) - A minha família tem quatrocentos anos. A minha casa tem trezentos anos. A minha fortuna tem duzentos anos. O meu marido tem cem anos. Eu casei aos dezasseis, vivi com ele até aos quarenta, foram vinte e quatro anos. Até que ele morreu. Fez-me a vida negra. Escondia-me coisas, roubava-me coisas, dava-me as coisas que ele sabia que eu não queria ter. Ele mudava o lugar das coisas constantemente para me enlouquecer. E eu passei vinte e quatro anos à procura. Um dia chamei-o, subi as escadas e fui dar com ele morto na banheira. Tinha cortado os pulsos na minha casa-de-banho. (Pausa. Suspiro de alívio). Agora um senhor que era por acaso muito amigo dele começou a encher-me de atenções. Telefona uma vez por semana, já me levou a sair. Parece uma pessoa muito séria. É casado, tem os dois filhos já criados e a mulher é doente, sofre do coração. (Senta-se) Depois é uma pessoa muito interessante, muito culta. `As vezes penso que é uma vingança do meu marido. E se ele, antes de se matar, disse a este para se meter comigo, só para fazer pouco de mim? Hã? E se ele combinou com este, por vingança, fazer de mim parva?
Segunda mulher - Pois, eu sei que o importante é falar a dois, conversar sobre tudo. Mas posso chegar-me ao pé dele e dizer-lhe na cara que me irrita que ele limpe os pés no capacho quando entra em casa? Que me faz nervos a maneira como ele mexe o café, com a colherzinha a andar à volta, a andar à volta? Que me chateia que ele dispa o casaco e a gravata e ponha aquele casaco horroroso que ele chama de andar-por-casa? O que é que ele me vai dizer a seguir? Mas isto assim não pode continuar. Não pode continuar.
Terceira mulher - O meu marido desapareceu há duas semanas. Eu digo aos miúdos que o pai foi de viagem, mas eles já andam desconfiados. E não sei se os senhores me poderão ajudar, já fui à Polícia, mas eles dizem que é mesmo assim, que tenho de ter paciência. Que todos os dias aparecem mulheres com o mesmo problema, eles não podem tratar de tudo, são poucos e o trabalho nunca mais acaba.
Quinta mulher (ameaçadora) - Mas ele que nem pense que me pode gozar.
Não me conhece. Não sabe do que sou capaz.
Segunda mulher - Se houvesse uma maneira de lhe dizer tudo e depois... como quando as pessoas são hipnotizadas, acordam e não se lembram de nada... eu dizia-lhe tudo.
Primeira mulher - A irmã é que me disse uma vez: só Deus pode. Mais ninguém. Só Deus. (Ri-se, troça). Tomar a vida nas minhas mãos.
Quinta mulher (progressivamente mais furiosa) - Quem é que voou na Igreja, quem é que ressuscitou? Quem é que te viu na banheira, branco e vermelho? Quem é que se sujeitou durante vinte e quatro anos aos teus tormentos? (Pausa. Grita) Mas não te dei filhos, não tos dei, era o que mais faltava!
Terceira mulher - Não tenho dinheiro, estamos a pagar a nossa casa. E mais a prestação do carro. (Pausa. Pensativa). E do vídeo.
Quinta mulher - (Excedida) Mas isto não fica assim! Ele que nem pense!
Segunda mulher - Ainda se ao menos ele ressonasse! Era uma coisa razoável, eu dizia-lhe, pá, ou dormes tu, ou durmo eu, não pode ser, temos de nos separar. (Pausa longa, olha para o relógio). Bom, são horas, tenho de ir.
Primeira mulher - Há uma coisa que me esqueci de dizer ao senhor doutor... (Ficam sentadas. Pano.)
O primeiro interlúdio é constituído pelos discursos destas mulheres, discursos curtos, entrecortados de pausas, interrompidos por outros, retomados, abandonados; o que será necessário manter é o fluir das palavras e das histórias. Não há diálogo: as mulheres expõem os seus casos, estão perante o médico, ou amigos, ou autoridades, a quem se confessam e explicam).
Primeira mulher - Nem sei o que vim cá fazer. Não conseguia dormir, vou quase a adormecer e lembro-me e acordo. Lembro-me de tudo, fora o que invento e tudo junto é demais. Tranquei-me no quarto, não me serviu de nada, ele meteu o pé à porta, foi porrada de meia-noite, fartei-me de gritar que não tinha culpa, que não tinha culpa, mas ele é polícia, para ele toda a gente tem culpa. Deu-me aqui na cabeça, ia-me matando. Tinha eu o quê? cinco anos, para aí uns cinco anos. (Pausa) A minha mãe diz que tenho tendência, que é azar, são coisas que me acontecem, parece que eu as chamo. Se calhar é verdade. O mal vem ter comigo, não vê os outros, escolhe-me, vem direitinho a mim. E era isto que me tirava o sono, antes de... (Pausa. Sorri.) Até tem graça porque ontem jantei bem, estava calminha, pensei hoje é que é, durmo aí umas quatro horas, quatro horas para mim já é uma festa, uma pastilha das fortes é para o que me dá, mas estava a sentir-me porreirinha, vi a telenovela, a irmã do recreio até falou comigo, foi simpática para mim como já não era há muito tempo, se calhar vinha da confissão, que hoje é dia de padre. Pronto, estava tudo bem. Começo-me a despir para me deitar, aí vem o medo, um medo horrível; ai a porcaria!, pensei eu, mas já não havia nada a fazer. Foi por aí acima.
Segunda mulher - Como as coisas são. Começam por ser pequeninas, depois crescem, estragam-se... Eu... comigo é a mania que ele tem de limpar os pés no tapete quando entra em casa ... não é nada de especial... é uma coisa que a mãe dele lhe ensinou quando era pequeno, sei lá, ficou-lhe aquela de limpar os pés no capacho antes de entrar em casa. Isto não interessa, não vale nada, não tem importância nenhuma. Mas... eu estou em casa... são sete, sete e um quarto, sete e meia... oiço-o abrir a porta... ponho-me toda a tremer, fico com pele-de-galinha ... "vai limpar os pés no tapete... vai limpar os pés no tapete...", até me encolho toda para não ouvir, mas lá está... raspa, raspa. São dias e dias disto, semanas, meses. Chego a casa cada vez mais tarde. Cada vez me apetece menos ir para casa. Isto é ridículo, mas as coisas são mesmo assim. De resto estamos bem, conversamos e tudo, fazemos a nossa vida sexual normal, gostamos de estar um com o outro. Mas aquilo dos pés... depois, não temos filhos, de maneira que eu tenho mais liberdade para chegar tarde... (Olha para o relógio). Sete e um quarto...
Terceira mulher - Eu gostava que me ajudassem. Não sei a quem me hei-de dirigir. É que é o meu marido.
Primeira mulher - Esqueci-me de dizer uma coisa ao senhor doutor. Não sei se é importante. É o meu pai. (Pausa). Mas é incrível. Como da outra vez, no meio da rua, metem-se comigo, chamaram-me tudo, ainda levei e depois, "desculpe lá, foi confusão, pensei que fosse outra pessoa". A minha mãe diz que eu tenho
de ter cuidado, mas como é que eu posso ter cuidado?
Terceira mulher - Casei-me há cinco anos, tenho dois filhos pequenos, moro fora de Lisboa, trabalho o dia todo. Levo duas horas para chegar ao emprego. Sou secretária numa grande empresa de construção civil. Sinto-me realizada na minha profissão, tenho boas perspectivas de aumento. Estamos a pagar a nossa casa, todo o dinheiro é pouco. Sou uma pessoa que tem facilidade em fazer amigos, porque sou alegre e boa companhia. Os patrões também acham. Estão sempre a fazer elogios, dizem que não sabem passar sem mim. (Pausa) Sou nova, tenho a vida toda pela frente. Depois chego a casa, vou buscar os miúdos à vizinha que mos vai buscar à creche, faço o jantar, uma coisa rápida, eles até gostam mais.
Quinta mulher (levantando-se, exaltada) - Eu sempre tive a certeza de que a minha mãe gostava de mim. Desde o dia em que nasci que tive a certeza, cá dentro, de que a minha mãe gostava de mim. E depois dos horrores todos que eu passei, aquele amor que ela me deu em pequenina, enquanto foi viva, salvou-me, até hoje. Se eu não estou doida ainda, se eu estou viva ainda, é porque ela gostou de mim, e eu tive a certeza disso desde o instante em que nasci. (Senta-se). Deixou-me uma carta, quando morreu. Está num cofrezinho de madeira, em cima da minha cómoda. Disse que era para eu ler no dia em que me nascesse um filho.
Segunda mulher - No princípio era tudo bestial, eu gostava muito dele e ele de mim. Talvez ele um bocadinho mais de mim que eu dele, mas isso é normal. E até pensava muitas vezes que tinha uma sorte dos diabos, que tinha um marido que não tinha manias, quando ouvia as desgraçadas das minhas irmãs e das minhas amigas queixarem-se dos maridos delas. Ai, o Manel não gosta de cinema, só de vídeo, de maneira que tenho de ir sozinha, o Fernando detesta dançar e eu adoro, o outro não quer ir de férias porque fica ansioso quando não trabalha, o outro não sei que mais, que inferno! O André, ao menos, come de tudo, não chateia nada, é fácil de se viver com ele. Tudo o que eu lhe ponha à frente está bom, marcha logo, vai a tudo, gosta de pessoas, gosta de sair, é simpático, pronto, não tem as manias que a maior parte dos homens têm. O André não. É só aquilo do capacho e não se pode dizer que seja uma mania. Até é uma coisa bem feita, se eu a conseguisse aturar.
Quinta mulher - Há coisas de que eu não falo, desculpe. Tenho vergonha. Hoje toda a gente fala de tudo, das coisas mais íntimas, dos amores, até de coisas do corpo, do nosso corpo, mas eu tenho vergonha, desculpe. Não é por ter tido educação religiosa, nem por excesso de pudor, - ou até pode ser por isso - mas é que há coisas que por mais que se fale delas, nunca ficam esclarecidas. Nem se chega lá perto. Mas não se consegue compreendê-las.
Segunda mulher (olha para o relógio) - Já deve ter chegado. Meteu a chave à porta, deu um passo dentro de casa, limpou os pézinhos. (Suspira). Uma coisa pequenina mas que sorve as outras todas. O que mais me chateia é que ninguém me avisou que isto podia acontecer. Disseram-me, olha que ele começa a ter amantes, olha que ele começa a beber, a jogar, a dar menos dinheiro para a casa... Tanta coisa que podia acontecer e foi acontecer o que não estava previsto. (Pausa. Falsamente sentenciosa) Já dizia a minha avó: "É
muito fácil conquistar um homem, o difícil é mantê-lo!".
Quinta mulher - Eu posso contar uma história que tem a ver com isto. Não é a minha história, mas é como se fosse. Não interessa estar aqui com lamúrias, a falar de desejos, do que eu gostava de ter sido e do que gostava de ter feito e do que gostava que me tivesse acontecido, porque não fui, não fiz, não aconteceu e essa é que é essa. (Pausa) Mas agora imagine uma Igreja pequena de aldeia e uma menina a rezar de véu e de mãos postas. As tias envergonham-se dela, por causa do "mistério do seu nascimento", como elas dizem, e levam-na só à missa, porque tem de ser e a mais lado nenhum. A menina deixa-se ficar encolhida e de joelhos o tempo todo, os olhos pregados no crucifixo toda gelada, e espera que a levem de volta a casa. Mas um dia a menina fez um milagre, elevou-se nos ares, no meio da congregação que cantava o Salve Regina, ressuscitou e desapareceu. (Olha para cima) Ficou tudo especado, a olhar.
Segunda mulher - Bom. Mudemos de assunto.
Quinta mulher (levanta-se e apoia-se no espaldar da cadeira) - A minha família tem quatrocentos anos. A minha casa tem trezentos anos. A minha fortuna tem duzentos anos. O meu marido tem cem anos. Eu casei aos dezasseis, vivi com ele até aos quarenta, foram vinte e quatro anos. Até que ele morreu. Fez-me a vida negra. Escondia-me coisas, roubava-me coisas, dava-me as coisas que ele sabia que eu não queria ter. Ele mudava o lugar das coisas constantemente para me enlouquecer. E eu passei vinte e quatro anos à procura. Um dia chamei-o, subi as escadas e fui dar com ele morto na banheira. Tinha cortado os pulsos na minha casa-de-banho. (Pausa. Suspiro de alívio). Agora um senhor que era por acaso muito amigo dele começou a encher-me de atenções. Telefona uma vez por semana, já me levou a sair. Parece uma pessoa muito séria. É casado, tem os dois filhos já criados e a mulher é doente, sofre do coração. (Senta-se) Depois é uma pessoa muito interessante, muito culta. `As vezes penso que é uma vingança do meu marido. E se ele, antes de se matar, disse a este para se meter comigo, só para fazer pouco de mim? Hã? E se ele combinou com este, por vingança, fazer de mim parva?
Segunda mulher - Pois, eu sei que o importante é falar a dois, conversar sobre tudo. Mas posso chegar-me ao pé dele e dizer-lhe na cara que me irrita que ele limpe os pés no capacho quando entra em casa? Que me faz nervos a maneira como ele mexe o café, com a colherzinha a andar à volta, a andar à volta? Que me chateia que ele dispa o casaco e a gravata e ponha aquele casaco horroroso que ele chama de andar-por-casa? O que é que ele me vai dizer a seguir? Mas isto assim não pode continuar. Não pode continuar.
Terceira mulher - O meu marido desapareceu há duas semanas. Eu digo aos miúdos que o pai foi de viagem, mas eles já andam desconfiados. E não sei se os senhores me poderão ajudar, já fui à Polícia, mas eles dizem que é mesmo assim, que tenho de ter paciência. Que todos os dias aparecem mulheres com o mesmo problema, eles não podem tratar de tudo, são poucos e o trabalho nunca mais acaba.
Quinta mulher (ameaçadora) - Mas ele que nem pense que me pode gozar.
Não me conhece. Não sabe do que sou capaz.
Segunda mulher - Se houvesse uma maneira de lhe dizer tudo e depois... como quando as pessoas são hipnotizadas, acordam e não se lembram de nada... eu dizia-lhe tudo.
Primeira mulher - A irmã é que me disse uma vez: só Deus pode. Mais ninguém. Só Deus. (Ri-se, troça). Tomar a vida nas minhas mãos.
Quinta mulher (progressivamente mais furiosa) - Quem é que voou na Igreja, quem é que ressuscitou? Quem é que te viu na banheira, branco e vermelho? Quem é que se sujeitou durante vinte e quatro anos aos teus tormentos? (Pausa. Grita) Mas não te dei filhos, não tos dei, era o que mais faltava!
Terceira mulher - Não tenho dinheiro, estamos a pagar a nossa casa. E mais a prestação do carro. (Pausa. Pensativa). E do vídeo.
Quinta mulher - (Excedida) Mas isto não fica assim! Ele que nem pense!
Segunda mulher - Ainda se ao menos ele ressonasse! Era uma coisa razoável, eu dizia-lhe, pá, ou dormes tu, ou durmo eu, não pode ser, temos de nos separar. (Pausa longa, olha para o relógio). Bom, são horas, tenho de ir.
Primeira mulher - Há uma coisa que me esqueci de dizer ao senhor doutor... (Ficam sentadas. Pano.)