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Romance epistolar, Quetzal, 1988, Prémio Dom Dinis da Casa de Mateus;
segunda edição Assírio e Alvim, 2002
Leitor! Este livro não fala do 25 de Abril. Não se refere ao 11 de Março e está-se nas tintas para o 25 de Novembro. Pior, não menciona em lugar nenhum a guerra em África. Não reflecte sobre a nossa identidade cultural como povo, o nosso futuro como nação, o nosso lugar na comunidade europeia.
Suportará o leitor um livro assim?
Duvido. Foi à sombra do benefício dessa dúvida que o escrevi e agora o dou a publicar.
Prefácio de Abel Barros Baptista à segunda edição revista, Assírio e Alvim LER
segunda edição Assírio e Alvim, 2002
Leitor! Este livro não fala do 25 de Abril. Não se refere ao 11 de Março e está-se nas tintas para o 25 de Novembro. Pior, não menciona em lugar nenhum a guerra em África. Não reflecte sobre a nossa identidade cultural como povo, o nosso futuro como nação, o nosso lugar na comunidade europeia.
Suportará o leitor um livro assim?
Duvido. Foi à sombra do benefício dessa dúvida que o escrevi e agora o dou a publicar.
Prefácio de Abel Barros Baptista à segunda edição revista, Assírio e Alvim LER
leia o Capítulo I
Setembro, 1986
Meu caro Leonardo:
Puseram-me aqui neste ermo de uma só rua, três cafés a eito e um excedente de comércios que te não citarei, excepto o do homem dos cestos que nasceu com o século e é uma espécie de emblema da cidade; e aqui me deixaram a remediar uns doentes que me tratam por menino senhor doutor e me pagam com galinhas os excessos de zelo, como nos romances realistas.
Resolvi escrever-te antes de me alapar absoluto na vida rotineira e perder até a ideia de movimento, puxando cá por umas résteas de vibração que me impelem ainda. Sinto-me ridículo neste lugar. Conspícuo. Depois te contarei. Agora só peço que me deixes subir à tua quinta, antes que esvaia de anemia espiritual e se me endureçam irreversivelmente as aortas da alma.
Falaremos talvez dos tempos velhos, já que depois deles não sucedeu quase nada. Salva-me destas tardes de domingo.
João Miguel
Meu caro João Miguel:
Decerto é a cidade de província um desterro imerecível. A Quimera que o herói Belerofonte crivou de chumbo era um monstro complicado, articulando engenhosamente a sua cabeça de leão, o corpo de cabra e a cauda de serpente. Era um híbrido, mas sapiente, cuja harmonia sugestionava em muito a imaginação — também a de Belerofonte, o da grave incumbência. Mas nem é por ser um desnaturado cruzamento de espécies que a cidade de província nos desgosta — a coisa está em que se trata de uma chã caricatura. Ela magnifica tudo o que é desprezível na metrópole e mistura-lhe o que há de lastimoso na aldeia. Tal esses frutos que passam do verde ao podre sem se darem o tempo do meio-termo, assim ela, que esmorece no torpor das delusions of grandeur e das expectativas infelizes — para derreter e murchar no próprio molho, como a Quimera, intoxicada pelas chamas que lançava das fauces. Por mim, se abandonei Lisboa sem olhar para trás, não foi para me encafuar numa sua imitação de pechisbeque. Lisboa não é uma cidade séria, tem demais gente barulhenta e miserável e corrompe por aí fora até as suas filhas menores. Aqui, tenho os meus cavalos e sou dono de um rio. Dou-me ao luxo de possuir a amizade de um cão independente, o Cupido, que me segue ou se despede conforme quer. Amo Camila. Passeio sentado nos meus devaneios e contemplo admirativo o desenho das nuvens, mas sem procurar compará-lo às coisas do mundo ou completar-lhe o sentido das formas. Vejo-as correr e nada tem que me querer dizer nada, porque a natureza se tornou o domínio de uma harmonia inefável que não pretendo desvendar. Tudo me faz feliz. Da turbamulta transparente que me rodeia, apenas Camila se materializa de contornos precisos, e o meu cão, o Cupido; falamos das coisas úteis e das coisas fúteis e a nossa vida é um remanso, cuja voluntária quietude encorajamos pelo isolamento e pela frugalidade dos usos. Há uns anos que não viajo, não convivo e não visito, actividades todas sem as quais passo muitíssimo bem, praticando com os meus livros, num ócio langoroso, que Camila pontua de graça e gentilezas.
Nisto sigo os meus antepassados, que apenas desciam à cidade para receber os reis e entronar os bispos, e mesmo assim só depois de muito incomodados pelos seus pares, quando acediam a aparelhar os animais e voar numa corridinha às cerimónias, retirando ostensivamente o relógio do colete e apressando como podiam os protocolos — e ala, almoçar em casa. Dedico-lhes a justiça de pensar que esta urgência não se fundava na necessidade, mas antes na força de uma pose ditada pelo princípio. Era gente de uma serenidade homérica, esses antepassados, que sem ler e sem jogar às cartas, alcançava tarefa permanente na comezaina, na sesta e na pouca oração. Talvez conheças, dos romances, esta casta, cuja probidade ressoa vibrante através dos séculos para se abater didacticamente sobre os netos, se eles contemplam, com certo spleen, o seu quotidiano. Quando a primeira das minhas tetravós se reclinou bocejando e teve a ousadia de se aborrecer «no campo», como dizia ela, os homens da família em conselho determinaram o óleo santo que lhe aliviasse tão despropositada sensibilidade — e fizeram-na trabalhar. Ainda hoje, oriunda dessa linha laboriosa, minha tia-avó invectiva de sarabandas os pedreiros que nos estão refazendo as janelas e coze simultâneas compotas e sarrazina simultâneas criadas. Vê tu ainda, para que te edifique, este vizinho meu que pôde salvar do século um título de barão que agora faz derivar, imagino-o, pelas soirées de Lisboa: herdou uma quinta e os caseiros anexos, um ror de hectares brutos que não se sabe se são bons ou maus, porque não houve ainda quem lhes deitasse a mão. Pois o miserável prefere viver subalugado e estéril uma vida medíocre na capital, uma dessas vidas esquálidas que se extenuam ao compasso dos horários, a vir assentar banca no que é seu e tocar para a frente a clarins o baronato. A casa desmorona-se, a terra barbariza-se, os caseiros envelhecem para além da redenção — e o bácoro em Lisboa, nos cinemas. Assim me estás tu parecendo o tal meu vizinho. Tens aí à mão um tesouro que desconheces, um eremitério suave que desprezas, como se fora uma dessas famosas margaritae que os porcos não souberam identificar. Muda-te da cidade, planta-te em cheio na Natureza, por que esperas? Reúne os teus livros e a tua música, diz aos teus doentes que adoptaste esta nova teoria que acha na infelicidade em que vive a gente a fonte dos males todos e despede-te desse mundo grotesco.
Aqui decidimos ampliar a casa de meus pais, que já se vai fazendo pequena para a próxima progenitura, e o pátio encheu-se de um fermento de gente de acção, pedreiros, cantoneiros, pintores e sei lá que mais. Discutimos longamente a forma das janelas, que por mim haviam de ser de volta perfeita, como essas das aconchegadas capelinhas românicas, mas Camila persuadiu-me do valor das ogivas e tem razão ela. Arcos inteiros são demasiado perfeitos e é talvez preciso encorajar esse grão humano de desfalecimento da vontade e da confiança em si que são os vértices apontados ao céu. Quanto à tua visita, como vês, agora é má altura. Toda a agitação nos traz aliciados para afazeres banais e inadiáveis.
Leonardo
Meu Caro:
Revejo-te passeando no Campo Grande ao tempo estudantil, declamando os Clássicos com a cabeça levantada incalculáveis metros acima da linha das nuvens. Nada se alterou dessa tua anatomia peculiar, continuas o mesmo lunático. Como poderia eu abandonar tudo? Não tenho fortuna, nem pendor de gentleman farmer, nem cão que me queira, nem Camila. Lembro-me do tempo em que ambos a cortejámos procurando bem mais, se me não engano, impressionarmo-nos um ao outro do que disputá-la. Mas ganhaste, honra te seja feita. Entre nós, a verdade é que não saberia o que fazer de Camila, tivesse ela mostrado alguma inclinação por mim. O medo atávico que me fazem as mulheres muito espertas e muito enigmáticas só tem igual na atracção que sinto por elas. Nessa altura admirava-a com uma espécie de inveja, pelo dom da graça que a Natureza lhe concedera, a Natureza sempre sábia e injusta, que a fizera esfíngica e bela, doce como uma princesa no exílio e com aquele ar de solidão auto-suficiente que é o maior dos desafios. Fui eu que a descobri, concede-mo, e apresentei-ta para formarmos um lindo triângulo fugitivo, que rondava com suspeição as Faculdades e considerava os bares com cepticismo; constituímos, por algum tempo, essa avant-garde que promulgava em que espelunca nova se havia de encarnar o espírito da época, ditámos as modas, e a minha nostalgia é apenas uma, que nós não tivéssemos a mais pequena ideia do que andávamos a fazer. Youth is wasted on the young, ouvi algures. Mas, para voltar a Camila: depois daquele caso indiscreto, perdemo-nos de vista, já vocês estavam juntos, e isso coincidiu com o encerramento de um ciclo da vida deste teu herói. Breve descia sobre mim a revelação do fundamento da maturidade, o Compromisso, e caía o pano sobre os excedentes de adrenalina que são origem do movimento juvenil. Sentei-me para estudar dia e noite como um forçado, e segundo creio, mas não o sabia na altura, sentei-me, por assim dizer, para sempre. Por isso, quando me falas em eremitérios, eu tremo. Eremitérios, meu caro, prefiro-os colectivos. Preciso de gente. E não me venhas cá falar mal de Lisboa, que se me desentalam umas saudades, uns suspiros, umas ânsias de regresso impossíveis de apaziguar com uma bisca no senhor Tomé e um tour pela cidade — que são doze minutos e trinta, a pé, devagar. Ah! como eu entendo esse teu vizinho que apodas cruelmente de «bácoro dos cinemas»! Como ele se deve sentir feliz num restaurante qualquer de bairro velho, acotovelando mulheres belíssimas dentro da moda estrita ou, melhor ainda, intemporais de negro e véu, fantasiadas, discutindo com vozes fatais, tão pernósticas, tão lambuzadas de cultura, que só o recordá-las me dá incuráveis tonturas e me faz crescer a água na boca. E esses latagões, todos meio cantores, que despacham litradas a explicar antropologia, música antiga, políticas e preparam artigos e espectáculos, e jornalistas, jornalistas, jornalistas. É admirável a quantidade de jornalistas que uma cidade tão iletrada pode comportar. Encanta-me, naturalmente, por outro lado, a beatitude inteligente em que repousas, tão afastada das orientações ansiosas de outros dias. Quereria imitar-te, mas o meu espírito não tem o dote das guelras para respirar nesses empíreos em que flutuas. Um longo comércio com o sofrimento, próprio e alheio, levou-me a olhar mais tecnicamente para o mundo tal como ele é. Aqui, talvez tivesse tempo para pensar, se eu quisesse pensar. Talvez pudesse compor uma casa isolada e laborar num compromisso entre «o campo», como dizia a tetravó, e a cidade desta província. Mas eu, infeliz, eu gosto é de gente, qualquer que seja, onde quer que esteja, no campo e na cidade, rural, urbana, subterrânea, e todas estas e nenhuma em especial. Faço amigos inevitavelmente, e se eles pretendem falar de leucemia, pois fale-se de leucemia, e se querem antes rejubilar na matança do porco, eu rejubilo com eles. Sou um filantropo estúpido e babado, que se enternece com as tropelias de todos os meninos. Que se há-de fazer? Cá vou andando, assim, nesta paz de cemitério, apenas entrecortada pelas horas de trabalho no hospital, onde a tensão alta dos velhos, uma febre ou outra, as faltas de ar ou um pé torcido — nos dias bons —, animam a sociedade e o doutor, que receita, do meio do seu halo de luz, os costumeiros placebos. Perdoa mais uma vez as minhas queixas e não me mandes para a Natureza, que eu tenho trato com ela todos os dias. Escreve-me a dar conta da evolução das obras e diz-me quando vos poderei ver.
João Miguel
P. S . — Que é isso de «próxima progenitura»?
Meu caro Leonardo:
Puseram-me aqui neste ermo de uma só rua, três cafés a eito e um excedente de comércios que te não citarei, excepto o do homem dos cestos que nasceu com o século e é uma espécie de emblema da cidade; e aqui me deixaram a remediar uns doentes que me tratam por menino senhor doutor e me pagam com galinhas os excessos de zelo, como nos romances realistas.
Resolvi escrever-te antes de me alapar absoluto na vida rotineira e perder até a ideia de movimento, puxando cá por umas résteas de vibração que me impelem ainda. Sinto-me ridículo neste lugar. Conspícuo. Depois te contarei. Agora só peço que me deixes subir à tua quinta, antes que esvaia de anemia espiritual e se me endureçam irreversivelmente as aortas da alma.
Falaremos talvez dos tempos velhos, já que depois deles não sucedeu quase nada. Salva-me destas tardes de domingo.
João Miguel
Meu caro João Miguel:
Decerto é a cidade de província um desterro imerecível. A Quimera que o herói Belerofonte crivou de chumbo era um monstro complicado, articulando engenhosamente a sua cabeça de leão, o corpo de cabra e a cauda de serpente. Era um híbrido, mas sapiente, cuja harmonia sugestionava em muito a imaginação — também a de Belerofonte, o da grave incumbência. Mas nem é por ser um desnaturado cruzamento de espécies que a cidade de província nos desgosta — a coisa está em que se trata de uma chã caricatura. Ela magnifica tudo o que é desprezível na metrópole e mistura-lhe o que há de lastimoso na aldeia. Tal esses frutos que passam do verde ao podre sem se darem o tempo do meio-termo, assim ela, que esmorece no torpor das delusions of grandeur e das expectativas infelizes — para derreter e murchar no próprio molho, como a Quimera, intoxicada pelas chamas que lançava das fauces. Por mim, se abandonei Lisboa sem olhar para trás, não foi para me encafuar numa sua imitação de pechisbeque. Lisboa não é uma cidade séria, tem demais gente barulhenta e miserável e corrompe por aí fora até as suas filhas menores. Aqui, tenho os meus cavalos e sou dono de um rio. Dou-me ao luxo de possuir a amizade de um cão independente, o Cupido, que me segue ou se despede conforme quer. Amo Camila. Passeio sentado nos meus devaneios e contemplo admirativo o desenho das nuvens, mas sem procurar compará-lo às coisas do mundo ou completar-lhe o sentido das formas. Vejo-as correr e nada tem que me querer dizer nada, porque a natureza se tornou o domínio de uma harmonia inefável que não pretendo desvendar. Tudo me faz feliz. Da turbamulta transparente que me rodeia, apenas Camila se materializa de contornos precisos, e o meu cão, o Cupido; falamos das coisas úteis e das coisas fúteis e a nossa vida é um remanso, cuja voluntária quietude encorajamos pelo isolamento e pela frugalidade dos usos. Há uns anos que não viajo, não convivo e não visito, actividades todas sem as quais passo muitíssimo bem, praticando com os meus livros, num ócio langoroso, que Camila pontua de graça e gentilezas.
Nisto sigo os meus antepassados, que apenas desciam à cidade para receber os reis e entronar os bispos, e mesmo assim só depois de muito incomodados pelos seus pares, quando acediam a aparelhar os animais e voar numa corridinha às cerimónias, retirando ostensivamente o relógio do colete e apressando como podiam os protocolos — e ala, almoçar em casa. Dedico-lhes a justiça de pensar que esta urgência não se fundava na necessidade, mas antes na força de uma pose ditada pelo princípio. Era gente de uma serenidade homérica, esses antepassados, que sem ler e sem jogar às cartas, alcançava tarefa permanente na comezaina, na sesta e na pouca oração. Talvez conheças, dos romances, esta casta, cuja probidade ressoa vibrante através dos séculos para se abater didacticamente sobre os netos, se eles contemplam, com certo spleen, o seu quotidiano. Quando a primeira das minhas tetravós se reclinou bocejando e teve a ousadia de se aborrecer «no campo», como dizia ela, os homens da família em conselho determinaram o óleo santo que lhe aliviasse tão despropositada sensibilidade — e fizeram-na trabalhar. Ainda hoje, oriunda dessa linha laboriosa, minha tia-avó invectiva de sarabandas os pedreiros que nos estão refazendo as janelas e coze simultâneas compotas e sarrazina simultâneas criadas. Vê tu ainda, para que te edifique, este vizinho meu que pôde salvar do século um título de barão que agora faz derivar, imagino-o, pelas soirées de Lisboa: herdou uma quinta e os caseiros anexos, um ror de hectares brutos que não se sabe se são bons ou maus, porque não houve ainda quem lhes deitasse a mão. Pois o miserável prefere viver subalugado e estéril uma vida medíocre na capital, uma dessas vidas esquálidas que se extenuam ao compasso dos horários, a vir assentar banca no que é seu e tocar para a frente a clarins o baronato. A casa desmorona-se, a terra barbariza-se, os caseiros envelhecem para além da redenção — e o bácoro em Lisboa, nos cinemas. Assim me estás tu parecendo o tal meu vizinho. Tens aí à mão um tesouro que desconheces, um eremitério suave que desprezas, como se fora uma dessas famosas margaritae que os porcos não souberam identificar. Muda-te da cidade, planta-te em cheio na Natureza, por que esperas? Reúne os teus livros e a tua música, diz aos teus doentes que adoptaste esta nova teoria que acha na infelicidade em que vive a gente a fonte dos males todos e despede-te desse mundo grotesco.
Aqui decidimos ampliar a casa de meus pais, que já se vai fazendo pequena para a próxima progenitura, e o pátio encheu-se de um fermento de gente de acção, pedreiros, cantoneiros, pintores e sei lá que mais. Discutimos longamente a forma das janelas, que por mim haviam de ser de volta perfeita, como essas das aconchegadas capelinhas românicas, mas Camila persuadiu-me do valor das ogivas e tem razão ela. Arcos inteiros são demasiado perfeitos e é talvez preciso encorajar esse grão humano de desfalecimento da vontade e da confiança em si que são os vértices apontados ao céu. Quanto à tua visita, como vês, agora é má altura. Toda a agitação nos traz aliciados para afazeres banais e inadiáveis.
Leonardo
Meu Caro:
Revejo-te passeando no Campo Grande ao tempo estudantil, declamando os Clássicos com a cabeça levantada incalculáveis metros acima da linha das nuvens. Nada se alterou dessa tua anatomia peculiar, continuas o mesmo lunático. Como poderia eu abandonar tudo? Não tenho fortuna, nem pendor de gentleman farmer, nem cão que me queira, nem Camila. Lembro-me do tempo em que ambos a cortejámos procurando bem mais, se me não engano, impressionarmo-nos um ao outro do que disputá-la. Mas ganhaste, honra te seja feita. Entre nós, a verdade é que não saberia o que fazer de Camila, tivesse ela mostrado alguma inclinação por mim. O medo atávico que me fazem as mulheres muito espertas e muito enigmáticas só tem igual na atracção que sinto por elas. Nessa altura admirava-a com uma espécie de inveja, pelo dom da graça que a Natureza lhe concedera, a Natureza sempre sábia e injusta, que a fizera esfíngica e bela, doce como uma princesa no exílio e com aquele ar de solidão auto-suficiente que é o maior dos desafios. Fui eu que a descobri, concede-mo, e apresentei-ta para formarmos um lindo triângulo fugitivo, que rondava com suspeição as Faculdades e considerava os bares com cepticismo; constituímos, por algum tempo, essa avant-garde que promulgava em que espelunca nova se havia de encarnar o espírito da época, ditámos as modas, e a minha nostalgia é apenas uma, que nós não tivéssemos a mais pequena ideia do que andávamos a fazer. Youth is wasted on the young, ouvi algures. Mas, para voltar a Camila: depois daquele caso indiscreto, perdemo-nos de vista, já vocês estavam juntos, e isso coincidiu com o encerramento de um ciclo da vida deste teu herói. Breve descia sobre mim a revelação do fundamento da maturidade, o Compromisso, e caía o pano sobre os excedentes de adrenalina que são origem do movimento juvenil. Sentei-me para estudar dia e noite como um forçado, e segundo creio, mas não o sabia na altura, sentei-me, por assim dizer, para sempre. Por isso, quando me falas em eremitérios, eu tremo. Eremitérios, meu caro, prefiro-os colectivos. Preciso de gente. E não me venhas cá falar mal de Lisboa, que se me desentalam umas saudades, uns suspiros, umas ânsias de regresso impossíveis de apaziguar com uma bisca no senhor Tomé e um tour pela cidade — que são doze minutos e trinta, a pé, devagar. Ah! como eu entendo esse teu vizinho que apodas cruelmente de «bácoro dos cinemas»! Como ele se deve sentir feliz num restaurante qualquer de bairro velho, acotovelando mulheres belíssimas dentro da moda estrita ou, melhor ainda, intemporais de negro e véu, fantasiadas, discutindo com vozes fatais, tão pernósticas, tão lambuzadas de cultura, que só o recordá-las me dá incuráveis tonturas e me faz crescer a água na boca. E esses latagões, todos meio cantores, que despacham litradas a explicar antropologia, música antiga, políticas e preparam artigos e espectáculos, e jornalistas, jornalistas, jornalistas. É admirável a quantidade de jornalistas que uma cidade tão iletrada pode comportar. Encanta-me, naturalmente, por outro lado, a beatitude inteligente em que repousas, tão afastada das orientações ansiosas de outros dias. Quereria imitar-te, mas o meu espírito não tem o dote das guelras para respirar nesses empíreos em que flutuas. Um longo comércio com o sofrimento, próprio e alheio, levou-me a olhar mais tecnicamente para o mundo tal como ele é. Aqui, talvez tivesse tempo para pensar, se eu quisesse pensar. Talvez pudesse compor uma casa isolada e laborar num compromisso entre «o campo», como dizia a tetravó, e a cidade desta província. Mas eu, infeliz, eu gosto é de gente, qualquer que seja, onde quer que esteja, no campo e na cidade, rural, urbana, subterrânea, e todas estas e nenhuma em especial. Faço amigos inevitavelmente, e se eles pretendem falar de leucemia, pois fale-se de leucemia, e se querem antes rejubilar na matança do porco, eu rejubilo com eles. Sou um filantropo estúpido e babado, que se enternece com as tropelias de todos os meninos. Que se há-de fazer? Cá vou andando, assim, nesta paz de cemitério, apenas entrecortada pelas horas de trabalho no hospital, onde a tensão alta dos velhos, uma febre ou outra, as faltas de ar ou um pé torcido — nos dias bons —, animam a sociedade e o doutor, que receita, do meio do seu halo de luz, os costumeiros placebos. Perdoa mais uma vez as minhas queixas e não me mandes para a Natureza, que eu tenho trato com ela todos os dias. Escreve-me a dar conta da evolução das obras e diz-me quando vos poderei ver.
João Miguel
P. S . — Que é isso de «próxima progenitura»?
na imprensa
Crónica de António Mega Ferreira
Às vezes chegam cartas...
As cartas que entre si trocam as personagens do romance de Luísa Costa Gomes sugerem-me uma questão que, não sendo um desabafo, é bem capaz de merecer a entusiástica concordância dos CTT
1. O volumoso original não tinha, em si mesmo, nada que o recomendasse. Exibia aquele apecto compacto, anónimo, assustador, que têm todos os originais apresentados a um concurso literário. Quem me chamara a atenção para ele fora o Fernando Assis Pacheco, que lhe vislumbrara, logo a uma primeira leitura, qualidades invulgares entre a safra dos que nos tinha calhado em sorte naquela aventura quase sem mistério que nos fizera, a ele e a mim, companheiros de leitura de um júri literário.
Acrescia à circunstância que nem sequer se lhe conhecia o autor. O pseudónimo, elaboradíssimo, parecia revelar o suficiente para inteiramente ocultar o nome do escritor concorrente. Apenas um envelope Conqueror parecia revelar o suficiente para inteiramente ocultar o nome do escritor concorrente. Apenas um envelope Conqueror azul (ou cinza, já não sei bem) nos permitiria descobrir, mais tarde, o segredo da identidade do feliz autor de O Pequeno Mundo.
Porque, aberto o volume correctamente dactilografado ao longo de mais de duzentas e cinquenta páginas, era finalmente uma circunstância rara, um encontro desejado entre a leitura e a escrita o que O Pequeno Mundo assinalava, na teia intrincadíssima das suas personagens de papel, ficções de uma mesma ficção, a de escrever para contar, a de inventar uma história, a de percorrer todos os registos do medo que a verdade inspira e o silêncio alimenta: "Quis enlouquecer. Inventei uma história. Tive medo", escreve Leonardo de Santa Ana, lá do seu falanstério inventado, num acesso de euforia falsamente sincera, num dia em que, como diria Camilo, seu tutelar arquétipo, fora capaz de falar "até sobre folhamentos e irrigações, sobre reguengos e fateusins!"
Porque O Pequeno Mundo é um livro singularíssimo, um romance sem dúvida, mas exclusivamente construído através de um carteio obsessivo, que leva o médico João Miguel Andrade Novo a inquirir um vago caso de corrupção, à medida que interroga a loucura do amigo Leonardo, "neo-hippie" enterrado nas Bétulas em demanda de um mirífico Acordo Universal de Todas as Razões que pusesse ordem nisto tudo. Porque há no romance de Luísa Costa Gomes um subtil elogio da desordem, que se cultiva, com distância, na ironia da falsidade e no bom gosto evidente deste pastiche do estilo camiliano, e que é, ao mesmo tempo sugestiva homenagem ao Mestre e demarcação final da vertigem modernista que tem marcado a ficção portuguesa durante décadas. A literatura é imitação, dizia a autora em entrevista recente. E diferença, convém talvez acrescentar, gerada na revisitação dos lugares literários de um mundo que é sempre demasiado pequeno para que deles consigamos fugir: O Pequeno Mundo é, na sua própria estrutura epistolar, metáfora do jogo literário ainda possivel, nos tempos em que a "ciência do texto" cedeu, ainda que a contragosto de alguns, o seu lugar à "arte de contar", ocultação e narratividade, mentira e retratação,memória de outra coisa e esquecimento de si.
Esta semana, O Pequeno Mundo foi lançado no mercado. E é conveniente que o leitor não se engane: o livro não fala do 25 de Abril, nem do 11 de Março, nem do 25 de Novembro, nem da nossa identidade cultural, nem... É um romance, pronto! E excelente.
2. As cartas que entre si trocam as personagens do romance de Luísa Costa Gomes sugerem-me uma questão que, não sendo um desabafo, é bem capaz de merecer a entusiástica concordância dos CTT: os portugueses escrevem poucas cartas. Não me refiro às de timbre e conteúdo oficial,. verdadeira pecha de qualquer repartição que se preze. "Encarrega-me o Excelentíssimo Senhor Chefe de Gabinete de Sua Excelência..." E juro que já recebi um oficio que começava assim. O estilo é redondo de formal (como muito bem exemplifica Luísa Costa Gomes nos ofícios da Dona Elisa, cuja voz apenas vibra em dois ou três destes pedaços de prosa burocrática enviados a João Novo). O ofício pressupõe sempre, na secura nem sequer cortês do seu formalismo, duas coisas; a existência de urna entidade transcendente (o ministro, o Estado, maxime, a lei) e a de um destinatário cuja personalidade se confunde com a da massa. O ofício é, grosso modo, uma carta-tipo que, na sua forma ideal, deveria ser utilizável para todas e cada uma das circunstâncias burocráticas.
O que os portugueses não escrevem é cartas, do género tocante "escrevo apenas para inqnirir da saúde dos teus" ou "não sei como exprimir-lhe a minha mais profunda afeição". Em múltiplas circunstâncias, a prática epistolar pouparia confrontações, acalmaria exasperações, poria água numa fervura que a palavra tempera e a distância até ao marco do correio às vezes esfria completamente.
Não falo já da vantagem adicional, excessiva, que seria vivermos numa cidade como o Cairo, onde, duas vezes por semana, se consomem em labaredas os milhões de cartas que ficam por entregar, pelas mais variadas razões, das quais a menor não é, certamente, a ineficiência comprovada dos correios egípcios (dos quais, curiosamente, Flaubert não se queixava). A carta é um apaziguador de tensões, uma transferência de enrgias, uma forma, porventura deslocada, de iludir a ausência, ou de a perpetuar na memória. Lembro-me de frases que me escreveram, mesmo quando já não me lembro do rosto de quem as escreveu.
Às vezes, uma carta é um mistério. Outras vezes, ela ecoa um mistério essencial, de que habitualmente nos esquecemos, por demasiado convivermos com ele. Tenho uma destas cartas em cima da mesa, enviada ao jornal por uma leitora que apreciou generosamente uma qualquer crónica em que eu confessava a minha rendida comoção perante um filme sublime. A Palavra, de Carl Dreyer. Com as suas breves e agradáveis palavras, envia-me a leitora uma fotografia extraída de um fotograma do filme. No verso, uma erudita citação (João, 7,34): "Haveis de procurar-Me e não Me encontrareis." Há nisto mistério bastante para desatar à procura: mas deus não se revela, estou em crer, aos que O procuram; apenas os que não O demandam serão chamados à Sua presença.
António Mega Ferreira, in O Independente, de 28 de Outubro de 1988
As cartas que entre si trocam as personagens do romance de Luísa Costa Gomes sugerem-me uma questão que, não sendo um desabafo, é bem capaz de merecer a entusiástica concordância dos CTT
1. O volumoso original não tinha, em si mesmo, nada que o recomendasse. Exibia aquele apecto compacto, anónimo, assustador, que têm todos os originais apresentados a um concurso literário. Quem me chamara a atenção para ele fora o Fernando Assis Pacheco, que lhe vislumbrara, logo a uma primeira leitura, qualidades invulgares entre a safra dos que nos tinha calhado em sorte naquela aventura quase sem mistério que nos fizera, a ele e a mim, companheiros de leitura de um júri literário.
Acrescia à circunstância que nem sequer se lhe conhecia o autor. O pseudónimo, elaboradíssimo, parecia revelar o suficiente para inteiramente ocultar o nome do escritor concorrente. Apenas um envelope Conqueror parecia revelar o suficiente para inteiramente ocultar o nome do escritor concorrente. Apenas um envelope Conqueror azul (ou cinza, já não sei bem) nos permitiria descobrir, mais tarde, o segredo da identidade do feliz autor de O Pequeno Mundo.
Porque, aberto o volume correctamente dactilografado ao longo de mais de duzentas e cinquenta páginas, era finalmente uma circunstância rara, um encontro desejado entre a leitura e a escrita o que O Pequeno Mundo assinalava, na teia intrincadíssima das suas personagens de papel, ficções de uma mesma ficção, a de escrever para contar, a de inventar uma história, a de percorrer todos os registos do medo que a verdade inspira e o silêncio alimenta: "Quis enlouquecer. Inventei uma história. Tive medo", escreve Leonardo de Santa Ana, lá do seu falanstério inventado, num acesso de euforia falsamente sincera, num dia em que, como diria Camilo, seu tutelar arquétipo, fora capaz de falar "até sobre folhamentos e irrigações, sobre reguengos e fateusins!"
Porque O Pequeno Mundo é um livro singularíssimo, um romance sem dúvida, mas exclusivamente construído através de um carteio obsessivo, que leva o médico João Miguel Andrade Novo a inquirir um vago caso de corrupção, à medida que interroga a loucura do amigo Leonardo, "neo-hippie" enterrado nas Bétulas em demanda de um mirífico Acordo Universal de Todas as Razões que pusesse ordem nisto tudo. Porque há no romance de Luísa Costa Gomes um subtil elogio da desordem, que se cultiva, com distância, na ironia da falsidade e no bom gosto evidente deste pastiche do estilo camiliano, e que é, ao mesmo tempo sugestiva homenagem ao Mestre e demarcação final da vertigem modernista que tem marcado a ficção portuguesa durante décadas. A literatura é imitação, dizia a autora em entrevista recente. E diferença, convém talvez acrescentar, gerada na revisitação dos lugares literários de um mundo que é sempre demasiado pequeno para que deles consigamos fugir: O Pequeno Mundo é, na sua própria estrutura epistolar, metáfora do jogo literário ainda possivel, nos tempos em que a "ciência do texto" cedeu, ainda que a contragosto de alguns, o seu lugar à "arte de contar", ocultação e narratividade, mentira e retratação,memória de outra coisa e esquecimento de si.
Esta semana, O Pequeno Mundo foi lançado no mercado. E é conveniente que o leitor não se engane: o livro não fala do 25 de Abril, nem do 11 de Março, nem do 25 de Novembro, nem da nossa identidade cultural, nem... É um romance, pronto! E excelente.
2. As cartas que entre si trocam as personagens do romance de Luísa Costa Gomes sugerem-me uma questão que, não sendo um desabafo, é bem capaz de merecer a entusiástica concordância dos CTT: os portugueses escrevem poucas cartas. Não me refiro às de timbre e conteúdo oficial,. verdadeira pecha de qualquer repartição que se preze. "Encarrega-me o Excelentíssimo Senhor Chefe de Gabinete de Sua Excelência..." E juro que já recebi um oficio que começava assim. O estilo é redondo de formal (como muito bem exemplifica Luísa Costa Gomes nos ofícios da Dona Elisa, cuja voz apenas vibra em dois ou três destes pedaços de prosa burocrática enviados a João Novo). O ofício pressupõe sempre, na secura nem sequer cortês do seu formalismo, duas coisas; a existência de urna entidade transcendente (o ministro, o Estado, maxime, a lei) e a de um destinatário cuja personalidade se confunde com a da massa. O ofício é, grosso modo, uma carta-tipo que, na sua forma ideal, deveria ser utilizável para todas e cada uma das circunstâncias burocráticas.
O que os portugueses não escrevem é cartas, do género tocante "escrevo apenas para inqnirir da saúde dos teus" ou "não sei como exprimir-lhe a minha mais profunda afeição". Em múltiplas circunstâncias, a prática epistolar pouparia confrontações, acalmaria exasperações, poria água numa fervura que a palavra tempera e a distância até ao marco do correio às vezes esfria completamente.
Não falo já da vantagem adicional, excessiva, que seria vivermos numa cidade como o Cairo, onde, duas vezes por semana, se consomem em labaredas os milhões de cartas que ficam por entregar, pelas mais variadas razões, das quais a menor não é, certamente, a ineficiência comprovada dos correios egípcios (dos quais, curiosamente, Flaubert não se queixava). A carta é um apaziguador de tensões, uma transferência de enrgias, uma forma, porventura deslocada, de iludir a ausência, ou de a perpetuar na memória. Lembro-me de frases que me escreveram, mesmo quando já não me lembro do rosto de quem as escreveu.
Às vezes, uma carta é um mistério. Outras vezes, ela ecoa um mistério essencial, de que habitualmente nos esquecemos, por demasiado convivermos com ele. Tenho uma destas cartas em cima da mesa, enviada ao jornal por uma leitora que apreciou generosamente uma qualquer crónica em que eu confessava a minha rendida comoção perante um filme sublime. A Palavra, de Carl Dreyer. Com as suas breves e agradáveis palavras, envia-me a leitora uma fotografia extraída de um fotograma do filme. No verso, uma erudita citação (João, 7,34): "Haveis de procurar-Me e não Me encontrareis." Há nisto mistério bastante para desatar à procura: mas deus não se revela, estou em crer, aos que O procuram; apenas os que não O demandam serão chamados à Sua presença.
António Mega Ferreira, in O Independente, de 28 de Outubro de 1988