REI JOÃO, de William Shakespeare
MUSEU ARQUEOLÓGICO DO CARMO
Tradução e versão para palco: LUÍSA COSTA GOMES
Encenação: ANTÓNIO PIRES
Com: Alexandra Sargento, Carolina Campanela, Dinarte Branco, Duarte Guimarães, Francisco Tavares, Gonçalo Norton, João Barbosa, Luís Lima Barreto, Maria João Freitas, Mário Sousa, Rafael Fonseca, Sofia Marques Cenografia: Alberto Souza Oliveira; Figurinos: Luís Mesquita; Desenho de luz RUI SEABRA, Desenho de som PAULO ABELHO; Movimento Paula Careto; Caracterização Ivan Coletti; Construção cenário Fábio Paulo; Costureira Rosário Balbi ; Assistente de encenação e legendagem Miguel Bartolomeu; assistente de figurinos Roberta Azevedo Gomes; Assistente de Iluminação Zeca Camacho, Assistente de som: Diogo Neto; Ilustração Joana Villaverde; Fotografias de Cena Miguel Bartolomeu; Spots de Video António Pinhão Botelho Coordenação de produção Ivan Colleti; Administração de produção Ana Bordalo; Comunicação Maria João Moura ; Produtor Alexandre Oliveira; Produção Ar de Filmes / Teatro do Bairro . M/12 . 120min (aproximadamente)
Saber mais em https://www.ardefilmes.org/reijoao.html
MUSEU ARQUEOLÓGICO DO CARMO
Tradução e versão para palco: LUÍSA COSTA GOMES
Encenação: ANTÓNIO PIRES
Com: Alexandra Sargento, Carolina Campanela, Dinarte Branco, Duarte Guimarães, Francisco Tavares, Gonçalo Norton, João Barbosa, Luís Lima Barreto, Maria João Freitas, Mário Sousa, Rafael Fonseca, Sofia Marques Cenografia: Alberto Souza Oliveira; Figurinos: Luís Mesquita; Desenho de luz RUI SEABRA, Desenho de som PAULO ABELHO; Movimento Paula Careto; Caracterização Ivan Coletti; Construção cenário Fábio Paulo; Costureira Rosário Balbi ; Assistente de encenação e legendagem Miguel Bartolomeu; assistente de figurinos Roberta Azevedo Gomes; Assistente de Iluminação Zeca Camacho, Assistente de som: Diogo Neto; Ilustração Joana Villaverde; Fotografias de Cena Miguel Bartolomeu; Spots de Video António Pinhão Botelho Coordenação de produção Ivan Colleti; Administração de produção Ana Bordalo; Comunicação Maria João Moura ; Produtor Alexandre Oliveira; Produção Ar de Filmes / Teatro do Bairro . M/12 . 120min (aproximadamente)
Saber mais em https://www.ardefilmes.org/reijoao.html
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William Shakespeare
VIDA E MORTE DO REI JOÃO
Sinopse
O Rei Ricardo Coração de Leão morreu e o infante João, seu irmão mais novo, tornou-se Rei de Inglaterra. Chatillon, embaixador do Rei de França, Filipe II, vem à Corte exigir a abdicação do “Usurpador” João em favor do sobrinho, Artur da Bretanha, filho de Godofredo da Bretanha, irmão mais velho de João. O Rei de Inglaterra despacha o enviado com uma declaração de guerra e segue para julgar uma estranha querela entre os irmãos Faulconbridge. Leonor de Aquitânia, mãe de João, reconhece em Filipe Faulconbridge as feições e o porte do filho, Ricardo Coração de Leão, João diverte-se com o seu espírito e desassombro e acolhe-o na família como Bastardo do irmão.
Encontram-se os exércitos de França e de Inglaterra diante da cidade de Angers. Pelo direito de Artur reúnem-se Filipe II de França, seu filho o Delfim Luís, e o Duque de Áustria, renomado assassino de Coração de Leão. Os cidadãos de Angers dizem aceitar ser vassalos do Rei de Inglaterra. Quem é o Rei de Inglaterra é coisa que não lhes cabe decidir. Instados a escolher entre João ou Artur, garantem que tanto se lhes dá, os senhores que decidam. Os exércitos dispõem-se no campo e lutam por Angers. No fim, dizem os cidadãos de Angers, os senhores equivalem-se, não se consegue escolher. O Bastardo tem, então, um dos seus “momentos” e sugere que Ingleses e Franceses se aliem e destruam a cidade de Angers em comunhão. Perante o argumento, os cidadãos vêm a Razão e propõem uma aliança matrimonial entre o Delfim de França e a Infanta Branca de Espanha, sobrinha de João. Faz-se o casamento a toda a pressa antes que todos mudem de ideias, sendo João entretanto excomungado pelo enviado do Papa, Pandolfo, por não concretizar a investidura do Arcebispo de Cantuária nomeado por Roma. A paz é o mais transitória possível, sendo conseguida à custa de Artur e de Constança, a viúva que depende do poder de França para fazer valer o direito do seu filho. Excomungado, o aliado João passa a ser um risco para a França. Os recém-casados vêem-se divididos, o enviado do Papa incita os Franceses à guerra santa contra o Excomungado, João volta para casa, Artur é levado para Inglaterra e João sugere encapotadamente a Huberto que execute o rapaz. Confusos? É a vida. Artur é aterrorizado por Huberto em cenas de selvajaria que seria gratuita não fosse o seu imenso poder simbólico, revelador de toda a imaginativa discricionariedade dos pequenos poderes. Traumatizado, o angélico Artur acabará por se matar na fuga. Anterior a todo o Interesse Próprio, Artur é a criança, o seu reino é Amor, o seu destino é ser sacrificado. Os barões ingleses, escandalizados com tal barbaridade, suspeitando de mão assassina, desertam e juntam-se aos franceses. João, desamparado dos seus vassalos, acaba por aceitar o poder papal para mediar a paz com os franceses, que estão a ganhar a guerra. Quando se sabe que afinal os reforços franceses naufragaram, já o rei João fugiu da guerra e está perdido, doente, envenenado por um monge numa das abadias que ele mandou o Bastardo saquear. Cá se fazem, cá se pagam. Muito a propósito aparece do nada um príncipe Henrique, filho de João, que receberá o reino limpo de dúvidas e conflitos. Cabe ao Bastardo salvar a honra do convento e dizer umas coisas patrióticas sobre a independência da Inglaterra que, à luz de tudo o que vimos esta noite, soam a intervalo, pausa para o café, antes das cenas dos próximos episódios.
O REINO DOS OPORTUNISTAS
Para o oportunista, a Oportunidade é veneno doce. Dando o que não se espera, parece graça divina, parece eleição do fado. Abre-se um mar que não havia. Mas ao elevar, planta a dúvida: terei direito? terei mérito? serei capaz? A sorte, diz-se, protege os audazes. Mas, não tendo razão de ser, é uma força que enfraquece os fracos. Há quem não tenha unhas para a Fortuna. Ela dá e desampara. É mãe potente e volúvel, que pode abandonar a qualquer momento e retirar o privilégio: ajuda quem se ajuda a si próprio. Filho mais novo de um par poderoso, Leonor de Aquitânia e Henrique II de Inglaterra, benjamim e favorito de uma ninhada de oito príncipes e princesas, João vai ter de discutir, vai ter de negociar, aliar-se, trair e voltar a trair. É assim que o drama começa: vem o embaixador do rei francês exigir a abdicação do “usurpador” João Sem Terra. Há um herdeiro, Artur da Bretanha, filho primeiro de um irmão mais velho, Jofre. João reage com característica bravata: aceita o desafio e ameaça chegar a Calais com os exércitos ainda antes do emissário! Leonor põe os pesos na balança: “fio-me na força da posse, bem mais que no direito”. E com tal brutalidade revela as fundações da legitimidade de todos os poderes. Como as outras peças históricas baseadas na crónica, Vida e Morte do Rei João tematiza a “sequência justa e sucessão”. O que este texto propõe de único em Shakespeare é uma atmosfera sem qualquer grandeza. Um ambiente de bastidores fedorentos das fachadas da História. Não há heróis, não há grandes tiradas sobre a vida (“a vida é um tédio”, diz o Delfim), nem grandes tiradas sobre o Ser. Não há um personagem que se aproveite, uma figura forte e sadia, tudo é governado pelo comezinho Interesse Próprio. É um tema de comédia que rebaixa quem o toca. O tempo é dos negociadores, dos troca-tintas, dos sofistas, dos políticos. Fica-se dependente do interesse próprio e do interesse próprio dos outros. Vida e Morte do Rei João, a grande peça histórica malvista de Shakespeare, não desliga a vida do monarca da sua morte: pulula de oportunistas, alianças de engolir-sapos, traições, sinistros núncios papais, vira-casacas e de toda a panóplia de caracteres sem carácter e de situações reversíveis. É uma espécie de fast forward de um reinado em que cada traição, cada aleivosia, cada monstruosidade se anula pela monstruosidade seguinte. Onde não há rectidão, todos discutem, ninguém tem razão. E as alianças, desalianças, amiganços e desamiganços, dizeres e desdizeres, juras e perjúrio, a partir de certa altura, mostram a sua verdadeira natureza. É a mesmidade cansativa do interesse próprio, da Commodity, do bom proveito, a mecânica desprezível da politiquice. O cómico no texto de Shakespeare é dado por essa sequência rápida de mudança de perspectiva em que um personagem sai pela direita em grandiloquências de lealdade a um partido e entra pela esquerda com protestos de terno afecto ao partido oposto. Ninguém leva a mal, é o jogo a ser jogado. Onde o direito não impera, nem a força única e consensual domina, lê-se a instável cartilha do sobrevivente. A vida é vista na perspectiva da subida agreste, feita sobre o princípio do jogo de cintura e da facada-nas-costas. Isto provoca agilidade, ziguezagueando na tentativa fútil de escapar à faca que outrem empunha. Tanta fuga dá fraqueza. Dá doenças psicossomáticas (e envenenamentos reais). Quem acudirá ao pobre João, que já foi amigo destes, dos outros, ameaçou, traiu, conspirou, destruiu, raptou, torturou, matou, e tudo isto sem culpa, sem sentido da responsabilidade, nem consciência, nem coerência, nem exigência moral – sem espinha dorsal. E vive deste recurso: a melhor maneira de fugir à faca é não ter costas, não haver onde espetá-la, como descobre Huberto, o factótum de João, quando se descobre mal pago pelos seus serviços. O Oportunista não age, reage. É um jogador sem a grandeza do vício, aproveita a mão que recebe. Percebe o curto-prazo, não tem fôlego. Não vai à procura de batalhas perdidas e não tem princípios severos. Nisto, há nele uma empatia com o espírito da época. No grego antigo havia duas maneiras de falar do Tempo, Chronos e Kairós: este último era o Momento Certo, o tempo da intuição do cruzamento propício das circunstâncias. O Oportunista vive da circunstância e não na História: é o homem que está no lugar certo, no momento certo. Saber reconhecê-lo não é para todos. Infelizmente, o Momento Certo de uns é também o Momento Amargo de outros. E eminentemente volátil. Daí esta jigajoga, a Dança de Cadeiras que constitui tão bom entretenimento para os espectadores e é a matéria dramatúrgica desta obra.
O Aprendiz de Oportunista é Filipe Faulconbridge, aliás Ricardo Plantageneta, aliás o Bastardo. A troca de nomes é essencial e ascensional: ele sabe “transformar-se”, como hoje diríamos em gestão de imagem pessoal. Começa por vir à Corte em conflito com o irmão que o acusa de bastardia, e acaba o dia com uma família muito melhor. O Rei trata-o por “primo”, parente, e chama-lhe Ricardo como o pai, Coração-de-Leão. O Bastardo, apanhando-se sozinho, compõe um ditirambo ao Interesse Próprio que governa o mundo e promete aprender pelo menos a não ser enganado. Ele está com o pé no primeiro degrau da escada que o levará ao topo: agarrou a oportunidade, agora é uma questão de posicionamento, só ele tratará do seu “percurso”. Toda a discussão na peça é sobre esta legitimidade do poder que é dado por vias menos próprias: um filho mais novo que ascende no vazio, um bastardo que sobe na Corte como o mais ferrenho dos convertidos aos “valores da família”. A matriz da peça é a figura da escada: que se sobe e que se desce. Quem está no topo, João, só pode descer no processo de legitimação. O seu percurso é uma queda em que vai batendo os costados em cada novo degrau, declinando a cada novo desafio, incapaz de se legitimar, querendo as regalias do poder sem ter de lhes pagar o preço ou sofrer as consequências. No Rei João vemos o percurso de um homem minado pelo poder. Não é um alucinado à Macbeth, não sofre a grandeza da Solidão do Escuro, em João o medo é miúfa, todo ele é esganiçado e nevrótico. É um que não cresce com a desgraça. Aquele que tinha a posse, tinha a Mãe, mas não é a mãe-protectora a que mais desconfia do verdadeiro mérito do filho? Pela própria posição que ocupa João vai perdendo energia vital, vai definhando, sobretudo depois do golpe da morte do jovem Artur que se mata para não ser morto. Os dons da Fortuna de João passam a golpes do Destino. Quem sobe, como deve ser, no empenho, na obstinação do ódio, na constância e no trabalho árduo, é Ricardo Plantageneta que, no final, até quase parece um herói. Ao longo da acção, o elegista da Commodity acaba por se converter em fidalgo de gema. Enquanto João se revela incapaz, Ricardo descobre-se mais do que capaz, indo muito para além da linha do dever, aproveitando todas as oportunidades de heroísmo que se apresentam, mas sem nunca perder a pele de rufia, de Bastardo – no que se parece bastante mais com uma caricatura de Coração-de-Leão, do que com uma sua imagem sadia. De mãe reconhecidamente adúltera e pai “irreal”, é com essa figura fantasmática que ele se identifica. Como herói, não começará da melhor maneira, mas no final, entre mortos e feridos, é o mais consistente, o novo-nobre, o novo-rico, o fidalgo de uma nova ordem. Sem o compromisso do sangue legítimo, mas um empenho escolhido, o neófito apõe o sêlo à dinastia que ele criou.
Depois há a fúria das mães, como em nenhum outro texto de Shakespeare: Leonor de Aquitânia, Constança da Bretanha, a própria Lady Faulconbridge, que ao aparecer a cavalo faz o filho Filipe, aliás Ricardo, exclamar: “Ai, que é a minha mãe!”. E ela diz-lhe das boas, antes de ser forçada a admitir o adultério. São rainhas afiadas em vidas de conflito e tribulação. Presenças temíveis à volta das quais por vezes os reis giram e bichanam, com mil cuidados, para não lhes acordar a raiva e as retaliações. “Ui, a Constança vai ficar furiosa!” ou “Ih, que ela vem toda desgrenhada!”. Tudo para não lhes aturarem as cenas e as chantagens emocionais. E elas põem e dispõem, atiçam filhos uns contra os outros, querem fazer deles homens à altura, querem salvá-los, barafustam, zaragateiam, esgatanham-se umas às outras e atiram a suspeita suprema: que o filho que a outra quer elevar ou salvar não é legítimo, é bastardo, e elas adúlteras. É o mistério genealógico que atravessa o texto todo, o da única legitimidade que importa, a genética, a prova do sangue, pesadelo dos maridos, prestígio das mulheres que lhes são infiéis.
Vida e Morte do Rei João põe em cena o processo de sucessão de João Sem Terra, que reinou entre 1199 e 1216 e cujo trono foi discutido por Filipe II de França, campeão do direito de um sobrinho de João, Artur da Bretanha, filho de Jofre. A peça baseia-se muito latamente na História e é intrigante que não refira os momentos mais marcantes do reinado de João Sem Terra, nomeadamente os vários conflitos com o pai e os irmãos, sobretudo com Ricardo I, as sucessivas deslealdades e alianças, processos obscuros ou abertamente aberrantes, e o processo que havia de levar à assinatura da Magna Carta. É verdade que a família Plantageneta não primaria pela delicadeza de sentimentos. Mas João Sem Terra é o rei em que se pensa quando se pensa em abuso de poder. Trata-se de um rei impopular e antipático, na vida e na Arte, e na peça mesmo assim não sai mais maltratado que qualquer figura de opereta.
Publicada no folio de 1623, Vida e Morte do Rei João já circulava em 1598. Imagina-se que date dos primeiros anos da década de noventa. Despertou um interesse inicial, sendo depois esquecida até 1730, altura em que foi redescoberta e representada por todo o século XIX. O século XX esqueceu-a de novo, tornando-se sinónimo de “peça obscura: não-lida, não-representada, mal-amada” (Lander&Tobin, 2018) até à encenação de 1970 em Stratford-upon-Avon, em versão collage e de sátira burlesca, com Patrick Stewart no papel de Rei João. Considerada na época libelo anti-papista (no que omite a fidelidade final de João ao Papa), vista como recuperação da figura de João Sem Terra, espécie de Henrique VIII avant la lettre, também se leu Vida e Morte como o retrato de um Rei fraco, batido por contextos adversos, ou como elogio de um Rei forte em guerra com os seus barões católicos, como hino à liberdade religiosa. Chamaram-lhe a “peça mais política de Shakespeare”, texto patriótico, apologético da independência e do isolacionismo britânicos; mas também a leram como comédia burlesca sobre a legitimidade do poder, os bastidores da política e a anarquia gerada pelo Interesse Próprio.
Em Portugal, que se saiba, é esta a sua primeira encenação. Do texto existem várias traduções brasileiras, em Portugal há uma antiga de Henrique Braga, da Lello &Irmão e uma muito recente de Nuno Pinto Ribeiro, editada em 2019 na Relógio d´Agua. Esta minha versão para palco é escrita para ser dita, o que quer que isso queira dizer, e foi traduzida originalmente em verso branco a partir da edição da Arden, (Lander e Tobin, 2018).
VIDA E MORTE DO REI JOÃO
Sinopse
O Rei Ricardo Coração de Leão morreu e o infante João, seu irmão mais novo, tornou-se Rei de Inglaterra. Chatillon, embaixador do Rei de França, Filipe II, vem à Corte exigir a abdicação do “Usurpador” João em favor do sobrinho, Artur da Bretanha, filho de Godofredo da Bretanha, irmão mais velho de João. O Rei de Inglaterra despacha o enviado com uma declaração de guerra e segue para julgar uma estranha querela entre os irmãos Faulconbridge. Leonor de Aquitânia, mãe de João, reconhece em Filipe Faulconbridge as feições e o porte do filho, Ricardo Coração de Leão, João diverte-se com o seu espírito e desassombro e acolhe-o na família como Bastardo do irmão.
Encontram-se os exércitos de França e de Inglaterra diante da cidade de Angers. Pelo direito de Artur reúnem-se Filipe II de França, seu filho o Delfim Luís, e o Duque de Áustria, renomado assassino de Coração de Leão. Os cidadãos de Angers dizem aceitar ser vassalos do Rei de Inglaterra. Quem é o Rei de Inglaterra é coisa que não lhes cabe decidir. Instados a escolher entre João ou Artur, garantem que tanto se lhes dá, os senhores que decidam. Os exércitos dispõem-se no campo e lutam por Angers. No fim, dizem os cidadãos de Angers, os senhores equivalem-se, não se consegue escolher. O Bastardo tem, então, um dos seus “momentos” e sugere que Ingleses e Franceses se aliem e destruam a cidade de Angers em comunhão. Perante o argumento, os cidadãos vêm a Razão e propõem uma aliança matrimonial entre o Delfim de França e a Infanta Branca de Espanha, sobrinha de João. Faz-se o casamento a toda a pressa antes que todos mudem de ideias, sendo João entretanto excomungado pelo enviado do Papa, Pandolfo, por não concretizar a investidura do Arcebispo de Cantuária nomeado por Roma. A paz é o mais transitória possível, sendo conseguida à custa de Artur e de Constança, a viúva que depende do poder de França para fazer valer o direito do seu filho. Excomungado, o aliado João passa a ser um risco para a França. Os recém-casados vêem-se divididos, o enviado do Papa incita os Franceses à guerra santa contra o Excomungado, João volta para casa, Artur é levado para Inglaterra e João sugere encapotadamente a Huberto que execute o rapaz. Confusos? É a vida. Artur é aterrorizado por Huberto em cenas de selvajaria que seria gratuita não fosse o seu imenso poder simbólico, revelador de toda a imaginativa discricionariedade dos pequenos poderes. Traumatizado, o angélico Artur acabará por se matar na fuga. Anterior a todo o Interesse Próprio, Artur é a criança, o seu reino é Amor, o seu destino é ser sacrificado. Os barões ingleses, escandalizados com tal barbaridade, suspeitando de mão assassina, desertam e juntam-se aos franceses. João, desamparado dos seus vassalos, acaba por aceitar o poder papal para mediar a paz com os franceses, que estão a ganhar a guerra. Quando se sabe que afinal os reforços franceses naufragaram, já o rei João fugiu da guerra e está perdido, doente, envenenado por um monge numa das abadias que ele mandou o Bastardo saquear. Cá se fazem, cá se pagam. Muito a propósito aparece do nada um príncipe Henrique, filho de João, que receberá o reino limpo de dúvidas e conflitos. Cabe ao Bastardo salvar a honra do convento e dizer umas coisas patrióticas sobre a independência da Inglaterra que, à luz de tudo o que vimos esta noite, soam a intervalo, pausa para o café, antes das cenas dos próximos episódios.
O REINO DOS OPORTUNISTAS
Para o oportunista, a Oportunidade é veneno doce. Dando o que não se espera, parece graça divina, parece eleição do fado. Abre-se um mar que não havia. Mas ao elevar, planta a dúvida: terei direito? terei mérito? serei capaz? A sorte, diz-se, protege os audazes. Mas, não tendo razão de ser, é uma força que enfraquece os fracos. Há quem não tenha unhas para a Fortuna. Ela dá e desampara. É mãe potente e volúvel, que pode abandonar a qualquer momento e retirar o privilégio: ajuda quem se ajuda a si próprio. Filho mais novo de um par poderoso, Leonor de Aquitânia e Henrique II de Inglaterra, benjamim e favorito de uma ninhada de oito príncipes e princesas, João vai ter de discutir, vai ter de negociar, aliar-se, trair e voltar a trair. É assim que o drama começa: vem o embaixador do rei francês exigir a abdicação do “usurpador” João Sem Terra. Há um herdeiro, Artur da Bretanha, filho primeiro de um irmão mais velho, Jofre. João reage com característica bravata: aceita o desafio e ameaça chegar a Calais com os exércitos ainda antes do emissário! Leonor põe os pesos na balança: “fio-me na força da posse, bem mais que no direito”. E com tal brutalidade revela as fundações da legitimidade de todos os poderes. Como as outras peças históricas baseadas na crónica, Vida e Morte do Rei João tematiza a “sequência justa e sucessão”. O que este texto propõe de único em Shakespeare é uma atmosfera sem qualquer grandeza. Um ambiente de bastidores fedorentos das fachadas da História. Não há heróis, não há grandes tiradas sobre a vida (“a vida é um tédio”, diz o Delfim), nem grandes tiradas sobre o Ser. Não há um personagem que se aproveite, uma figura forte e sadia, tudo é governado pelo comezinho Interesse Próprio. É um tema de comédia que rebaixa quem o toca. O tempo é dos negociadores, dos troca-tintas, dos sofistas, dos políticos. Fica-se dependente do interesse próprio e do interesse próprio dos outros. Vida e Morte do Rei João, a grande peça histórica malvista de Shakespeare, não desliga a vida do monarca da sua morte: pulula de oportunistas, alianças de engolir-sapos, traições, sinistros núncios papais, vira-casacas e de toda a panóplia de caracteres sem carácter e de situações reversíveis. É uma espécie de fast forward de um reinado em que cada traição, cada aleivosia, cada monstruosidade se anula pela monstruosidade seguinte. Onde não há rectidão, todos discutem, ninguém tem razão. E as alianças, desalianças, amiganços e desamiganços, dizeres e desdizeres, juras e perjúrio, a partir de certa altura, mostram a sua verdadeira natureza. É a mesmidade cansativa do interesse próprio, da Commodity, do bom proveito, a mecânica desprezível da politiquice. O cómico no texto de Shakespeare é dado por essa sequência rápida de mudança de perspectiva em que um personagem sai pela direita em grandiloquências de lealdade a um partido e entra pela esquerda com protestos de terno afecto ao partido oposto. Ninguém leva a mal, é o jogo a ser jogado. Onde o direito não impera, nem a força única e consensual domina, lê-se a instável cartilha do sobrevivente. A vida é vista na perspectiva da subida agreste, feita sobre o princípio do jogo de cintura e da facada-nas-costas. Isto provoca agilidade, ziguezagueando na tentativa fútil de escapar à faca que outrem empunha. Tanta fuga dá fraqueza. Dá doenças psicossomáticas (e envenenamentos reais). Quem acudirá ao pobre João, que já foi amigo destes, dos outros, ameaçou, traiu, conspirou, destruiu, raptou, torturou, matou, e tudo isto sem culpa, sem sentido da responsabilidade, nem consciência, nem coerência, nem exigência moral – sem espinha dorsal. E vive deste recurso: a melhor maneira de fugir à faca é não ter costas, não haver onde espetá-la, como descobre Huberto, o factótum de João, quando se descobre mal pago pelos seus serviços. O Oportunista não age, reage. É um jogador sem a grandeza do vício, aproveita a mão que recebe. Percebe o curto-prazo, não tem fôlego. Não vai à procura de batalhas perdidas e não tem princípios severos. Nisto, há nele uma empatia com o espírito da época. No grego antigo havia duas maneiras de falar do Tempo, Chronos e Kairós: este último era o Momento Certo, o tempo da intuição do cruzamento propício das circunstâncias. O Oportunista vive da circunstância e não na História: é o homem que está no lugar certo, no momento certo. Saber reconhecê-lo não é para todos. Infelizmente, o Momento Certo de uns é também o Momento Amargo de outros. E eminentemente volátil. Daí esta jigajoga, a Dança de Cadeiras que constitui tão bom entretenimento para os espectadores e é a matéria dramatúrgica desta obra.
O Aprendiz de Oportunista é Filipe Faulconbridge, aliás Ricardo Plantageneta, aliás o Bastardo. A troca de nomes é essencial e ascensional: ele sabe “transformar-se”, como hoje diríamos em gestão de imagem pessoal. Começa por vir à Corte em conflito com o irmão que o acusa de bastardia, e acaba o dia com uma família muito melhor. O Rei trata-o por “primo”, parente, e chama-lhe Ricardo como o pai, Coração-de-Leão. O Bastardo, apanhando-se sozinho, compõe um ditirambo ao Interesse Próprio que governa o mundo e promete aprender pelo menos a não ser enganado. Ele está com o pé no primeiro degrau da escada que o levará ao topo: agarrou a oportunidade, agora é uma questão de posicionamento, só ele tratará do seu “percurso”. Toda a discussão na peça é sobre esta legitimidade do poder que é dado por vias menos próprias: um filho mais novo que ascende no vazio, um bastardo que sobe na Corte como o mais ferrenho dos convertidos aos “valores da família”. A matriz da peça é a figura da escada: que se sobe e que se desce. Quem está no topo, João, só pode descer no processo de legitimação. O seu percurso é uma queda em que vai batendo os costados em cada novo degrau, declinando a cada novo desafio, incapaz de se legitimar, querendo as regalias do poder sem ter de lhes pagar o preço ou sofrer as consequências. No Rei João vemos o percurso de um homem minado pelo poder. Não é um alucinado à Macbeth, não sofre a grandeza da Solidão do Escuro, em João o medo é miúfa, todo ele é esganiçado e nevrótico. É um que não cresce com a desgraça. Aquele que tinha a posse, tinha a Mãe, mas não é a mãe-protectora a que mais desconfia do verdadeiro mérito do filho? Pela própria posição que ocupa João vai perdendo energia vital, vai definhando, sobretudo depois do golpe da morte do jovem Artur que se mata para não ser morto. Os dons da Fortuna de João passam a golpes do Destino. Quem sobe, como deve ser, no empenho, na obstinação do ódio, na constância e no trabalho árduo, é Ricardo Plantageneta que, no final, até quase parece um herói. Ao longo da acção, o elegista da Commodity acaba por se converter em fidalgo de gema. Enquanto João se revela incapaz, Ricardo descobre-se mais do que capaz, indo muito para além da linha do dever, aproveitando todas as oportunidades de heroísmo que se apresentam, mas sem nunca perder a pele de rufia, de Bastardo – no que se parece bastante mais com uma caricatura de Coração-de-Leão, do que com uma sua imagem sadia. De mãe reconhecidamente adúltera e pai “irreal”, é com essa figura fantasmática que ele se identifica. Como herói, não começará da melhor maneira, mas no final, entre mortos e feridos, é o mais consistente, o novo-nobre, o novo-rico, o fidalgo de uma nova ordem. Sem o compromisso do sangue legítimo, mas um empenho escolhido, o neófito apõe o sêlo à dinastia que ele criou.
Depois há a fúria das mães, como em nenhum outro texto de Shakespeare: Leonor de Aquitânia, Constança da Bretanha, a própria Lady Faulconbridge, que ao aparecer a cavalo faz o filho Filipe, aliás Ricardo, exclamar: “Ai, que é a minha mãe!”. E ela diz-lhe das boas, antes de ser forçada a admitir o adultério. São rainhas afiadas em vidas de conflito e tribulação. Presenças temíveis à volta das quais por vezes os reis giram e bichanam, com mil cuidados, para não lhes acordar a raiva e as retaliações. “Ui, a Constança vai ficar furiosa!” ou “Ih, que ela vem toda desgrenhada!”. Tudo para não lhes aturarem as cenas e as chantagens emocionais. E elas põem e dispõem, atiçam filhos uns contra os outros, querem fazer deles homens à altura, querem salvá-los, barafustam, zaragateiam, esgatanham-se umas às outras e atiram a suspeita suprema: que o filho que a outra quer elevar ou salvar não é legítimo, é bastardo, e elas adúlteras. É o mistério genealógico que atravessa o texto todo, o da única legitimidade que importa, a genética, a prova do sangue, pesadelo dos maridos, prestígio das mulheres que lhes são infiéis.
Vida e Morte do Rei João põe em cena o processo de sucessão de João Sem Terra, que reinou entre 1199 e 1216 e cujo trono foi discutido por Filipe II de França, campeão do direito de um sobrinho de João, Artur da Bretanha, filho de Jofre. A peça baseia-se muito latamente na História e é intrigante que não refira os momentos mais marcantes do reinado de João Sem Terra, nomeadamente os vários conflitos com o pai e os irmãos, sobretudo com Ricardo I, as sucessivas deslealdades e alianças, processos obscuros ou abertamente aberrantes, e o processo que havia de levar à assinatura da Magna Carta. É verdade que a família Plantageneta não primaria pela delicadeza de sentimentos. Mas João Sem Terra é o rei em que se pensa quando se pensa em abuso de poder. Trata-se de um rei impopular e antipático, na vida e na Arte, e na peça mesmo assim não sai mais maltratado que qualquer figura de opereta.
Publicada no folio de 1623, Vida e Morte do Rei João já circulava em 1598. Imagina-se que date dos primeiros anos da década de noventa. Despertou um interesse inicial, sendo depois esquecida até 1730, altura em que foi redescoberta e representada por todo o século XIX. O século XX esqueceu-a de novo, tornando-se sinónimo de “peça obscura: não-lida, não-representada, mal-amada” (Lander&Tobin, 2018) até à encenação de 1970 em Stratford-upon-Avon, em versão collage e de sátira burlesca, com Patrick Stewart no papel de Rei João. Considerada na época libelo anti-papista (no que omite a fidelidade final de João ao Papa), vista como recuperação da figura de João Sem Terra, espécie de Henrique VIII avant la lettre, também se leu Vida e Morte como o retrato de um Rei fraco, batido por contextos adversos, ou como elogio de um Rei forte em guerra com os seus barões católicos, como hino à liberdade religiosa. Chamaram-lhe a “peça mais política de Shakespeare”, texto patriótico, apologético da independência e do isolacionismo britânicos; mas também a leram como comédia burlesca sobre a legitimidade do poder, os bastidores da política e a anarquia gerada pelo Interesse Próprio.
Em Portugal, que se saiba, é esta a sua primeira encenação. Do texto existem várias traduções brasileiras, em Portugal há uma antiga de Henrique Braga, da Lello &Irmão e uma muito recente de Nuno Pinto Ribeiro, editada em 2019 na Relógio d´Agua. Esta minha versão para palco é escrita para ser dita, o que quer que isso queira dizer, e foi traduzida originalmente em verso branco a partir da edição da Arden, (Lander e Tobin, 2018).